A agulha ecoa no vinil. Numa coleção vimaranense há “dezenas de milhares”
Foi vendo crescer o número de títulos e tem hoje um verdadeiro museu, em que tal como a agulha percorre o vinil, é possível passear-se por um pouco da história da música.
As estantes cuidadas perdem-se de vista. Estão catalogadas por ordem alfabética, dividem-se em géneros musicais e há até pequenas secções para determinados países. Rogério Barbosa de Matos movimenta-se quase de olhos fechados enquanto mostra a sua coleção ao Jornal de Guimarães, ao mesmo que tempo que pega em mais um vinil e desdobra a capa. “Esta capa dos Beatles só foi editada nos Estados Unidos e acabou por ser retirada do mercado; por isso tem mais valor”, explica, mostrando o álbum The Beatles Yesterday and Today. É impossível quantificar, mas tem naquele espaço “dezenas de milhares de discos”.
Muito provavelmente é o maior colecionador de discos em vinil do país. O muito provavelmente deve-se à dificuldade de o poder assegurar, mas, para quem anda no meio as dúvidas, são poucas. Falamos de uma coleção com um valor “inestimável” que começou a ser construída no início da década de 60, quando o dinheiro era escasso para jogar matraquilhos na Adega dos Caquinhos. Mas o gosto pela música estava lá e Rogério foi trilhando o caminho. “Eu era quase o que se chama agora o DJ. Naquele tempo se queríamos ouvir música ou era no rádio, ou então nos bailes de garagem que fazíamos antigamente, em que tinha de ser com os discos. O gosto do vinil vem por força disso: de gostar de música num tempo em que não havia outra opção”, complementa.
Falamos dos tempos em que, com 12 ou 13 anos, frequentava o Liceu de Guimarães. Rogério Barbosa de Matos sorri com um ar pensativo quando questionado pelo primeiro disco. Hesita: “Ainda não havia LP’s – os Long Players (explica) – e os que tinha era os que hoje se chama Singles, de 45 rotações. Comprava porque gostava de ouvir, não com qualquer intenção de colecionar”, pensa em voz alta. O que mais se ouvia em Portugal era música francesa e italiana, e a dúvida cifra-se entre a francesa Françoise Hardy e o italiano Peppino di Capri. “Penso que o primeiro terá sido de Peppino di Capri”, aposta.
As “raridades quase intocáveis” e os discos que “iam para o lixo”
É quando começa a trabalhar, em Lisboa, que as viagens profissionais abrem horizontes. “Viajava com frequência, para destinos como Alemanha e França, e é aí que começo a comprar mais discos”. Nessas viagens “trazia sempre discos, já os LP”. “Já os havia em Portugal, mas lá fora comprava muito mais barato. Às vezes pelo preço que dava por um cá, trazia três ou quatro”, elucida o colecionador. Quando regressa ao norte do país em 1983, “teria uns 300 ou 400 LP’s”; é aí que começa a despertar o gosto pela coleção. “Fui passando por algumas lojas, uma que havia em Santo Tirso, e uma que havia em Guimarães, na Rua de Santo António, e fui comprando”, recorda, complementando que “em poucos anos já tinha milhares de discos”.
Nesta fase, Rogério Barbosa de Matos embarcara numa viagem similar à da agulha a percorrer as ondas sonoras cravadas no vinil. Uma viagem sem destino e sem rota traçada, sempre acompanhada pela música. “O que me fez crescer de forma desmesurada foi o facto de ter posto anúncios nos jornais locais, e no Público, a dizer que comprava discos”. Numa altura em que o CD surgia e ganhava terreno, as pessoas desfaziam-se dos vinis e entravam em contacto após ver os anúncios. “Num lote de 50, ia aparecendo sempre alguma coisa que interessava”, conta, lamentando a época em que chegou a “ver discos no lixo”. “Por vezes, as pessoas iam deitar tudo fora, mas, como tinham um ou outro de interesse, acabava por ficar com tudo e comecei a expandir a coleção para coisas que nunca pensei colecionar, ainda que certas coisas é mais arquivo do que coleção propriamente dita”, pontua.
Passou a ser frequentador assíduo de feiras, quer em Portugal quer no estrangeiro, nas viagens que continua a fazer. A Feira da Ladra, em Lisboa, ou a Feira da Vandoma, no Porto, faziam parte do roteiro de quem chegou a um ponto em que é raro encontrar algo que ainda encaixe na coleção. “O que dá valor a um disco é a raridade com que foi feito; as primeiras edições, que normalmente têm melhor qualidade e há em menor quantidade”, dá conta. Hoje procura raridades, que “quase chegam a ser intocáveis”. O entusiasmo de há 20 anos também já não é o mesmo, até porque as tais raridades não se encontram com facilidade. “Na altura encontrava com frequência discos que me interessavam, agora não”, desabafa.
“O vinil foi semicondenado pelo CD”
Aficionado da música em primeiro lugar, colecionador de discos como segunda premissa, Rogério Barbosa de Matos está a par das tendências. Costuma falar regularmente com outros colecionadores e até com produtores. “Não me surpreende”, atira quando introduzimos na conversa que no ano passado foram vendidos mais vinis do que CD’s. “Não foi só na América: foi em todo o mundo”, corrige-nos. “O vinil foi semicondenado pelo CD”, dá a sua opinião, lembrando a “corrente de aficionados do vinil que defende que os discos são melhores. “A música é mais quente e mais natural”, realça. Ouvir um bom vinil exige um ambiente “muito próprio” para se perceber a qualidade: “Pessoalmente, gosto mais de ouvir um vinil em bom estado do que um CD, que me parece que está condenado”, destaca.
Num canto está o primeiro leitor de discos de Rogério Barbosa de Matos. O primeiro gira-discos, como é comum chamar-se. “Ainda funciona, ligado à corrente ou a pilhas; era o que levava para os bailaricos, muitos deles na Assembleia de Guimarães”. Está junto um pequeno laboratório de limpeza de discos. Continua a comprar exemplares - “os que gosto”, esclarece. Noutro canto há uma pequena leva de discos para apreciar; “Ainda nem tive tempo de os ouvir”. “Vou comprando o que gosto, o que tem saído, ou se aparecer alguma coisa que procure a um preço que entenda que faz sentido ainda compro, mas não entro em disparates”, reforça. São esses disparates que o fazem “abrandar muito”.
Mesmo com um ritmo mesmo frenético que outrora, a agulha continua a percorrer o vinil com a sua sonoridade. “No local onde ouço música tenho uns 300 discos, os que mais gosto”, refere. Olha com agrado para o “algum entusiasmo, até na juventude” que se vai sentindo em torno do vinil. Esse entusiasmo move-se no limbo, com a convicção que “não há nenhuma fonoteca de jeito em Portugal”, e “apenas particulares” têm coleções dignas de serem apreciadas. Como a sua, em que pelas estantes se percorre um pouco da história da música.