
A força do fraco: SillySeason revisitam a liberdade aos olhos de Fassbinder
O coletivo SillySeason celebra 13 anos de existência com a estreia do espetáculo “O Direito do Mais Fraco à Liberdade”, no dia 18 de outubro, às 21h30, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), coincidindo também com os 20 anos de atividade do espaço cultural vimaranense. Inspirada na obra de Rainer Werner Fassbinder, a criação conta com interpretação de Cátia Tomé, Duarte Melo, Ivo Saraiva e Silva, Rafael Carvalho, Ricardo Teixeira e Soraia Chaves, e tem direção e criação de Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira.
Não é a primeira vez que o grupo estreia em Guimarães, sendo que, em 2023, apresentaram "Palco Principal" no mesmo local, mas o novo projeto assume um peso simbólico especial. "A magistral obra de Fassbinder sempre como pano de fundo e as pessoas que juntámos numa mesa oval e que humildemente desafiámos, resultam numa das obras mais desafiadoras para o coletivo SillySeason", confessam os criadores.
"Construir um processo como se Fassbinder estivesse no nosso lugar"
Em diálogo, após o ensaio realizado esta quinta-feira, dia 9 de outubro, o coletivo revelou que o espetáculo nasceu da vontade de construir um processo como se Fassbinder estivesse no lugar dos SillySeason. "Como é que ele faria um filme sobre ele próprio?", questionaram. Essa ideia de apropriação crítica e desconstrução lógica guiou todo o processo criativo, que se desenvolveu em torno das tensões entre poder, liberdade, desejo e direito.
A subversão do título original, “O Direito Mais Forte à Liberdade”, é intencional. “Há uma provocação, mas também uma chamada de atenção para refletirmos sobre quem é esse mais forte, que não é necessariamente o mais forte, mas aquele que é lido como o mais forte”, explicam. A partir dessa reflexão, o coletivo propõe um diálogo entre o passado e o presente, entre a visão e o teor político de Fassbinder e as inquietações atuais.
Conceitos de liberdade e desejo como motores da criação
A peça situa-se simbolicamente em 1974, ano em que Fassbinder se prepara para filmar mais uma das suas obras. Nessa recriação, os atores assumem vários papéis - encenadores, argumentistas, produtores -, refletindo a rejeição de hierarquias e a defesa de uma criação verdadeiramente coletiva.
A liberdade surge como tema central no espetáculo, mas também como contradição. “A liberdade é sempre uma ideia e nunca é uma liberdade plena”, afirmam os intérpretes, sublinhando que mesmo o desejo, algo tão íntimo, é atravessado por forças sociais e políticas.
©️Mafalda Mendes
Essa reflexão liga-se à crítica ao capitalismo contemporâneo, que transforma o desejo em consumo. “O capitalismo apoderou-se dos nossos desejos. Hoje desejamos para consumir e até desejamos o próprio desejo”, dizem. Assim, a peça propõe um olhar sobre como a sociedade molda o que sentimos e o que acreditamos ser livremente nosso.
Nas variadas camadas do espetáculo, destaca-se ainda o amor homossexual, não como simples tema afetivo, mas como gesto político e de resistência. O coletivo recupera esse olhar, sublinhando que o amor, sobretudo quando nasce em contextos de desigualdade e exclusão, é também uma afirmação de liberdade e de luta pelo "direito ao amor".
Outro momento marcante é a relação entre um operário "sortudo" e um burguês, metáfora da persistente desigualdade social. A ascensão ilusória de quem acredita poder conquistar dignidade dentro de um sistema que o oprime reflete a crítica de Fassbinder às estruturas de poder. SillySeason transpõe essa tensão para o presente, questionando até que ponto a mobilidade social é real ou apenas uma miragem dentro de um ciclo contínuo de exploração.
Utilização da linguagem cinematográfica como denúncia
No espetáculo, a estrutura dramatúrgica constrói-se a partir de uma tónica inicial de denúncia: primeiro, das formas de operar em sociedade que se revelam problemáticas e excludentes; depois, num movimento reflexivo, da própria cumplicidade individual com essas mesmas lógicas, muitas vezes inconsciente. Ao colocar estas contradições em cena, o espetáculo convida o público não só a confrontar o mundo ao redor, mas também a reconhecer os mecanismos internos que perpetuam essas dinâmicas.
É neste contexto paradoxo, que o coletivo prossegue a sua pesquisa sobre a fusão entre teatro e cinema, uma linha de trabalho que desenvolvem desde 2020 com o projeto “Fora de Campo”. “Há um confronto entre a linguagem teatral e a cinematográfica”, dizem. O público assiste simultaneamente ao palco e à projeção, num jogo de duplos planos que questiona a própria ideia de liberdade de olhar.
©️ Mafalda Mendes
“Damos ao público toda a liberdade para escolher por onde olhar mas, na verdade, somos nós que escolhemos essa dinâmica”, afirmam. Essa ironia é também uma crítica à ilusão de liberdade na era digital, em que as escolhas parecem nossas e inesgotáveis, mas que são sempre pré-selecionadas.
Um espetáculo que viaja entre o pessimismo e a resistência
Se a obra de Fassbinder é marcada pelo pessimismo e pela denúncia, os SillySeason introduzem-lhe uma nota de esperança e resistência, algo considerado “inédito” no trabalho que tem sido desenvolvido pelo coletivo. “O que tentamos apelar é à reivindicação do coletivo, uma massa de pessoas que continua a querer resistir”, dizem. No final, o espetáculo é tanto uma homenagem ao cineasta como um apelo à dignidade e à empatia num tempo em que os direitos fundamentais parecem, novamente, em risco.
Com vídeo de Ricardo Branco e música de Ricardo Remédio, “O Direito do Mais Fraco à Liberdade” é uma coprodução d’A Oficina / Centro Cultural Vila Flor, RTP – Rádio e Televisão de Portugal, Teatro Diogo Bernardes e Teatro das Figuras, com apoio em residência n’O Espaço do Tempo, no Centro de Criação de Candoso (CCC) e na Fábrica ASA.
O espetáculo, dirigido a maiores de 16 anos, contará ainda com interpretação em Língua Gestual Portuguesa e audiodescrição, reforçando o compromisso do coletivo com a acessibilidade e a inclusão.