A história do Teatro Oficina está mais rica: para já, deve-o a um “assalto”
À porta da viagem que o Espaço Oficina propunha pelas memórias do Teatro Oficina, as mensagens eram claras: os “ladrões” estavam a sujeitos a um “código de ética”, que lhes permitia “roubarem” aquilo que podia ser “roubado” e manterem no sítio aquelas peças que se identificavam como “arquivo único”.
Se fossem benevolentes, podiam até doar coisas ao longo de um caminho com início em A grande serpente, a peça inaugural da companhia, encenada por Moncho Rodríguez em 1994, repleta de fotografias em papel lustroso, e fim nas anti-leituras, as sessões em que o teatro se exprime a várias vozes, informais, numa roda, sob a orientação da diretora convidada para 2022, Sara Barros Leitão.
De lanterna em punho, os assaltantes orientavam-se através das setas no chão, encontrando imagens de algumas das peças mais antigas – Assim se fazem as coisas (1996), O Bobo (1997) e Auto do Amor e do Inferno (1998), com registos que não podiam de forma alguma levar -, adereços de obras como A queda dos cutileiros (2003) e uma sucessão de cartazes das peças exibidas no Vila Flor, a partir de 2005, com a memória já mais consolidada; brochuras de obras como Pigmalião, com dramaturgia de Pedro Mexia e encenação de Marcos Barbosa (2010) pediam para serem “roubadas”.
“Quando chego aqui em janeiro, há uma parte do arquivo que está tratada, sobretudo desde que foi inaugurado o Centro Cultural Vila Flor. Mas também há um passado, sobretudo dos anos 90, até em que não havia fotografia digital e se fazia tudo de outra maneira: imprimiam-se as fotografias e os atores, no final dos espetáculos, levavam aquelas em que apareciam”, observa a diretora do Teatro Oficina, comparando as duas eras de uma companhia “a dois anos dos 30”.
Mas o Assalto ao Arquivo foi mais do que o reviver de um passado com várias camadas; permitiu reaver mesmo parte dele, graças aos “adereços, fotografias, folhas de sala, memórias” e até “retificações de coisas escritas em post-it”, que não “constavam em lado nenhum do arquivo” oficial. Até “espetáculos mais curtos de verão” ou “coisas mais esporádicas” sem qualquer referência no site da Oficina que vieram à tona com o assalto.
“De repente, já existe um post-it com o nome e com o ano. Percebemos que havia uma fotografia perdida que afinal é de lá. Temos um adereço que já ninguém sabia o que era e que afinal é de lá”, detalha.
Assim o plano de assalto é também um plano para robustecer a própria história do Teatro Oficina, estando já engendrados os próximos passos: a “catalogação profissional do arquivo”, a realizar-se a partir do verão, e um eventual “Assalto ao Arquivo: parte 2”, em dezembro.
Imbuída de um “fascínio muito grande” pelo passado, até por uma noção de “respeito” por quem lhe “abriu as portas” do teatro, Sara Barros Leitão vinca que o trabalho em curso, de catalogação de arquivo e de livros, em parceria com a Biblioteca Municipal Raul Brandão, está a criar “raízes demasiado profundas” que dificilmente podem ser “destruídas” no futuro. Sara Barros Leitão crê que o facto de ser “alguém de fora”, que nunca trabalhou antes no Teatro Oficina, pode dar um “olhar muito enamorado” e de “cuidado” às tarefas em curso.
“Às vezes, as pessoas de fora conseguem ver as preciosidades que as pessoas de dentro não conseguem. Tento trazer esse olhar, esse fascínio, esse cuidado. Quero cuidar de tudo o que veio antes de mim e que as sementes para uma nova fase do Teatro Oficina possam surgir nestes 28 anos”, confessa.
Na Primavera, o reavivar de uma “noite de Verão”
O Assalto ao Arquivo não se fez apenas de memórias estáticas, contudo. Ao entardecer, passou no Espaço Oficina o filme de Sonho de uma noite de verão, drama de William Shakespeare com encenação de Cristina Carvalhal, em 2010. “Pensei que, na gravação, perder-se-ia imenso, porque era ao ar livre, mas consegue-se perceber o texto todo. Fiquei mesmo feliz por ver o espetáculo”, diz a encenadora, ao recordar uma peça em exibição de 14 a 18 de julho, no jardim do Centro Cultural Vila Flor.
As imagens despertaram-lhe as memórias de ensaios debaixo do calor, com “as pedras da calçada ainda quentes”, e do “trabalho com felicidade” de “atores incríveis”, reunindo num só palco várias proveniências.
“Os atores que entraram nas peças tinham feito workshops de voz, de locução, de máscara, de improvisação. O espetáculo era o culminar dessas formações. Alguns atores estavam a terminar a formação na ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto], outros já tinham terminado e havia pessoas da comunidade de Guimarães nas oficinas de teatro”, lembra.
Cristina Carvalhal disse-se assim “muito comovida” ao rever a peça, tal como Teresa Arcanjo, uma das atrizes da peça, depois de um Assalto ao Arquivo que catalogou de “genial”, ao dar a ilusão de “quilómetros e quilómetros de memórias e de histórias” num espaço até pequeno.