A partir de Guimarães, Joana Ferreira descobriu o guião para Hollywood
Verão de 2016: o curso de Produção para Televisão e Cinema da Universidade de York chegava ao fim na mesma altura em que a população do Reino Unido aprovava, com 51,89% dos votos no referendo, a saída da União Europeia. O Brexit no horizonte e a insatisfação com a fase final do curso precipitaram o regresso de Joana Ferreira a Guimarães. “Foi difícil para mim. Sempre quis ir estudar para Inglaterra, fiz o curso e depois não estava contente com ele”, recorda ao Jornal de Guimarães.
Aos 25 anos, tinha formação em humanidades, mas “não sabia bem o que fazer”, até que os pais a aconselharam a fazer Línguas e Literaturas Europeias, na Universidade do Minho. No primeiro ano, Joana ainda “estava um pouco em baixo”; afinal, “nada tinha acontecido” com a carreira de guionista até então. Mas a propensão para a escrita em inglês voltou, despertando a ideia de tentar algo nos Estados Unidos. Entre 2018 e 2019, começou o guião para The runaways (As fugitivas, na tradução para português), sobre “quatro raparigas num orfanato em Nova Iorque”, na década de 1920, que decidem fugir e se veem enredadas “num mundo de máfia”. “Como não há grande representação de mulheres na área do noir ou em filmes de gangsters, achei interessante. Na área do guionismo e de escrita, uma das regras é: se não existe, podes escrever”, explica, ao Jornal de Guimarães.
Doravante, sucederam-se vários episódios que a deixaram a um passo do final prometido: a indústria de Hollywood. Foi finalista em duas competições norte-americanas de guionismo, conheceu a mentora, arranjou um manager e contactou com argumentistas através do Twitter. Em 2020, contava visitar Los Angeles pela primeira vez, mas a pandemia estragou-lhe o plano. “Na semana em que a pandemia chegou cá, ia buscar o meu passaporte. Só passados muitos meses é que o pude ir buscar. O timing não podia ser pior”, lembra.
Neste momento, tem em carteira um outro piloto de televisão – Voluspá, sobre uma guerreira viking e a sua filha – e duas séries de uma produtora norte-americana para as quais há a hipótese de escrever como freelancer. Aliás, o trabalho como freelancer é a estratégia para ganhar o dinheiro necessário para Los Angeles, onde as rendas mensais ultrapassam os mil euros. Pelo próximo ano, conta lá estar. “Ainda não tenho data definida, porque preciso do visa de trabalho para me mudar. Já me disseram que demora três meses, mas são precisos muitos documentos. Estou a trabalhar com uma advogada de imigração. Até ao fim de 2022, é para estar lá”, antecipa.
“É importante a escrita ser muito boa, mas também a capacidade de vender quem és”
A ligação de Joana Ferreira à escrita remonta pelo menos à adolescência; ainda recorda desse tempo um poema que saiu no jornal da Escola Secundária Francisco de Holanda. Mas o cinema também já lhe era familiar, até pela ligação do pai ao Cineclube de Guimarães, instituição para a qual trabalhou como voluntária na Capital Europeia da Cultura. Nessa altura, já frequentava a licenciatura em Som e Imagem da Universidade Católica, no Porto. Daí surgiu a oportunidade para fazer Erasmus em York. Como queria estudar em Inglaterra, tentou a transferência e conseguiu-a, fruto das “boas notas” que obteve no primeiro ano. Esse primeiro ano fora de Portugal foi “muito bom”, fruto do “trabalho colaborativo” desenvolvido. “Tinha muito aquele espírito de equipa que no cinema e na televisão tens. Até escrevíamos ideias para séries e para filmes”, realça.
Como o segundo ano se focava mais na produção televisiva e em talk shows, com guiões escritos de antemão que constituíram entrave à criatividade, Joana ficou progressivamente desiludida com o curso. A ambição inglesa frustrava-se, mas o outro lado do Atlântico começou a aparecer no horizonte com o regresso a Portugal.
Ao submeter The runaways a duas competições norte-americanas – o Screencraft Fellowship e o Page -, a vimaranense criou uma conta no Twitter, onde viria a conhecer Eva González Szigriszt, escritora espanhola que vive em Los Angeles. Isso deu-se em 2020. “Ela reparou nas competições em que fui finalista. Perguntei-lhe se queria ler um argumento meu. Ela leu, gostou bastante e disse-me que conhecia um manager que seria muito bom para mim”, conta.
A partir desse contacto, Joana mostrou o argumento do episódio piloto de The runaways e passou a ser representada por um manager da Zero Gravity, agência de argumentistas, de realizadores e de atores, que também produz séries, com Ozark (2017), da Netflix. Mas a colaboração com Eva González, sua mentora, não se limita a mostrar os seus guiões. Tenciona igualmente promover a imagem da guionista.
“Ensinou-me muitas coisas, principalmente como me apresentar. É importante a escrita ser muito boa para quando chegar a oportunidade de a mostrar aos managers, mas também a capacidade de vender quem és”, reconhece. Para ilustrar a relevância desse fator, a autora lembra que alguns vencedores dessas competições não conseguiram managers.
O Twitter acabou por se revelar meio privilegiado para arranjar contactos em Hollywood. Mesmo impossibilitada de rumar à Califórnia no último ano e meio, ensombrado pela pandemia, Joana Ferreira conheceu Jeff Howard, argumentista de Haunting of Hill House (2018), da Netflix. A recente abertura de Hollywood para argumentos com protagonistas femininos, na sequência do Me Too, movimento contra o assédio sexual difundido a partir de 2017, também ajuda, reconhece.
O mais importante num guionista? “Ler muito” e “encontrar a voz”
Após anos e anos de contacto com a escrita, a leitura e o cinema, Joana Ferreira diz que um argumentista deve, em primeiro lugar, dar prioridade à leitura. “Na licenciatura, fiz muita pesquisa e li muitos argumentos. É preciso ler muitos guiões, e romances, e poemas. Ler muito. E também ter a noção da formatação de um guião”, realça.
Outro ingrediente a seu ver necessário para um guionista se afirmar é a voz – encontrar uma voz própria entre as várias vozes que ecoam no setor. No caso de Joana Ferreira, esse processo demorou. “Às vezes demora anos, como artista e escritor, a encontrares-te e a perceber que temas queres explorar. Foi o que me levou mais tempo”.
Quando olha para o que cria, a escritora vimaranense já sabe descrever as características que a definem: a inclinação para o detalhe no worldbuilding (construção de mundos, em português) – para The runaways, pesquisou mapas da Nova Iorque de 1920, para saber quais os edifícios e os nomes das ruas de então – e para a escrita de cenas de ação, ganha também pela prática de taekwondo, de jiu-jitsu, de kickboxing e de artes marciais mistas. “Vejo as cenas de luta como uma oportunidade para mostrar a personagem. Ela mostra o seu lado cru. E a experiência nas artes marciais faz com que seja mais fácil a escrita”, descreve.
A vimaranense realça ainda que “enfrentar o medo” de ir além das “curtas-metragens”, escrevendo guiões mais longos, foi outra das evoluções que registou como argumentista. “Tinha medo de escrever longas-metragens. Escrever para televisão aconteceu por acaso. Quando estava a escrever The runaways, pensei que estava a escrever um filme e, depois, tinha escrito 50 páginas. Como percebi que ainda estava no primeiro ato, era uma série e não um filme”, esclarece.
Até às transições um guionista deve ter atenção, diz. Nessa série noir feminista, há uma cena “inspirada em filmes clássicos noir” em que o ecrã se torna preto e branco quando “uma das raparigas olha para uma fotografia a preto e branco” e ganha novamente cor com a mudança para Times Square. Na vida de Joana Ferreira, o verde e o cinzento de Guimarães, familiares desde criança, estão em vias de se transformar numa megalópole delimitada por palmeiras, praias e o azul do Pacífico.