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“A recuperação do Centro Histórico de Guimarães foi inteligente”

Redação
Sociedade \ quarta-feira, setembro 28, 2022
© Direitos reservados
António Emílio. É uma das mais longas, lúcidas e precisas memórias de Guimarães. Foi, é, essencialmente, um cidadão empenhado na transformação da sua cidade.

António Emílio Abreu Ribeiro fundou e militou ativamente em entidades como o Cineclube, Assembleia de Guimarães, Unidade Vimaranense, Infantário Nuno Simões, Muralha, Irmandade de São Nicolau e Associação de Apoio à Criança, entre outras. Fez parte da Comissão Administrativa da Câmara de Guimarães em 1974.

Terceiro de seis filhos, nasceu em pleno centro urbano e viveu à “sombra do Castelo”. Estudou no Liceu de Guimarães, fez-se economista em Lisboa, deu aulas na Escola Industrial e Comercial e foi gerente da Casa dos Linhos, uma das mais icónicas lojas da segunda metade do século XX vimaranense.

Casou com Maria do Céu Oliveira Gonzalez de Abreu Ribeiro e é pai de 4 filhos e avó de 11 netos.

Aos 93 anos, António Emílio é uma referência vimaranense que insiste em continuar a pensar a cidade.

 

ENTREVISTA e FOTOS: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva

 

Tem uma vida de participação e cidadania. Esteve em variados acontecimentos, fóruns, associações... O que destaca como mais importante ?

Fiz uma juventude como todos, com os estudos, trabalhos, passeios, asneiras, estupidez e, em 1957, quando acabei os meus estudos regressei a Guimarães para dar aulas. Nessa altura encontrei na Escola Industrial, onde dava aulas, um grupo de primeira com o Santos Simões à cabeça. E preocupamo-nos com a criação de um Cineclube. Precisávamos de cinema, assim como de cultura de qualidade e decidimos trabalhar nisso. Claro que tínhamos a polícia política e não há dúvidas que aquilo era um contrapeso brutal. Depois de muitos problemas no licenciamento do Cineclube, apareceu um polícia na casa Teixeira de Abreu, a Casa dos Linhos, onde eu era gerente. Apresentou-se como funcionário qualificado da Pide para ver a contabilidade do Cineclube. E eu, aí, cometi uma asneira monumental. Disse-lhe: “Olhe, vamos fazer o seguinte: o senhor vai ver o que quer, mas não vou lá ficar ao seu lado porque eu tenho que trabalhar… Faz o favor leva a chave e veja o que quiser…”.

 

E depois?

Liguei ao Santos Simões a contar o que tinha feito e ele desancou-me: “Então você confia num homem desses?” Então não hei-de confiar num polícia?, perguntei-lhe. “Não pode ser! Eu vou lá!”. E foi à sede do Cineclube e, claro, estragou tudo… Mas eu aprendi a tratar com essa gente. Não se podia confiar realmente … O Santos Simões tinha razão. Isto foi o meu começo em Guimarães. Apareci aqui com um curso mas com um mundo a descobrir.

 

Chegou economista depois de estudar no Liceu…

Em 1939 entrei para o Liceu e saí em 1945. Fui para Lisboa, formei-me no Instituto Superior de Economia e Finanças e regressei para dar aulas na Escola Comercial e Industrial depois de estagiar. Aí é que encontro toda aquela gente estupenda.

 

Como é que era a cidade na altura?

Era uma cidade mais restrita do que é hoje, mas já se movimentava. Tinha acabado a Guerra que transformou muito as pessoas. E a cidade começou a abrir-se. Nessa altura os nossos industriais tiveram de pegar na tenda às costas e ir vender para a Alemanha mesmo não sabendo alemão. Eles lá se conseguiam fazer entender. Eram uns aventureiros, não há dúvida nenhuma.

 

Contactou com muitos industriais na altura?

Muitíssimos. A Casa dos Linhos era representativa da indústria. Vendíamos muito para hotéis, mas também vendíamos muito ao balcão. Era excecional porque vendia enxovais completos. As meninas que iam casar compravam ali o seu enxoval. Do Alentejo vinham anualmente dois ou três de propriedades com mais de 15 mil hectares. Integrei-me sempre bem na cidade, era conhecido, mas eu comecei a apreciar a nossa gente, o nosso povo. Repare: no terceiro domingo de junho tivemos a ronda da Lapinha. E é o terceiro domingo de junho, porquê? Porque nessa altura define-se se o milho vai vingar ou não. Se vingar, não há fome; se o milho não vingar, há fome.

 

Que era o grande alimento popular…

O pão aqui era de milho, não de trigo. Engraçado é que quem vêm de fora, afirma que os de Guimarães chamam pão à broa. Aqui em casa, eu e a minha mulher - que é de Carrazeda de Ansiães - quando dizemos “o pão” rimo-nos porque nos referimos a coisas diferentes. A ronda da Lapinha - voz do povo - era a Senhora da Lapinha que vinha visitar a sua prima, a Senhora da Oliveira, e pedir-lhe para interceder para chover, para não haver fome. Aquela ronda chama-se um “clamor”, um pedido forte.

Ver as pessoas chegar aqui, a Guimarães, naquele dia !… Depois da missa, elas marchavam 11 quilómetros. Vinham esfalfadas com o calor, suadas, sem comer. Traziam o farnel, normalmente numa cesta, e iam comer por esses jardins da cidade debaixo de uma sombra. Isto são as pessoas a dizerem quem são.

 

 

Revê-se nisso?

Perfeitamente! É uma vivência extraordinária para as pessoas de Guimarães. Em 1949 ou 1950 a abertura de uma “rota” de saneamento deixou a rua da Arcela intransitável e, por ser estreita, não dava para passar por lá o andor da Senhora da Lapinha. A Arcela era uma rua onde viviam muitos trabalhadores. O andor, muito armado/pesado, era em regra transportado aos ombros por surradores de couros, geralmente homens muito fortes, porque não sendo a Volta a França em bicicleta, é uma “voltinha” e dura. As crianças de lá quando avistavam a ronda bradavam “Senhora à vila!”. Nesse ano, com a rua impedida, ia ser feito um desvio. Mas os moradores da Arcela não aceitaram qualquer mudança de percurso e foram eles a transportar o andor ao lado da rota com uns três ou quatro metros de profundidade, sem exagero. Os homens da Arcela fizeram a rua toda, que é muito grande, e chegados à Igreja de São Dâmaso entregaram o andor aos transportadores. Uma exigência como quem diz: na minha rua a Senhora tem de passar! A Senhora vem aqui à cidade, “toma o seu chá” com a Senhora de Oliveira, mas às cinco da tarde, como qualquer donzela, antes do sol se pôr, quer estar em casa, na sua capela na Abação. Fica bem a toda a senhora Virgem não entrar em casa depois de escurecer. É feio. Costumo contar estas histórias aos meus netos.

 

Tem um olhar antropológico sobre Guimarães…

Sem dúvida.

 

Tinha “estatuto” mas misturava-se com o povo. Isso era habitual ou era só consigo?  

Acontecia regularmente, não havia essa diferenciação. Havia esse jogo de confraternização entre todos. Temos por exemplo as Festas Nicolinas que são festas de igualdade...

 

Aliás, é Nicolino…

Nicolino fervoroso ! Aliás, estive na reconstrução da capela de São Nicolau, em 1998. Em 1968/72 houve obras, não de reconstrução, mas de reposição na Igreja da Oliveira. Estava muito degradada. A Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais condenou a capela de São Nicolau que estava adossada à Igreja da Oliveira. Eles é que sabiam, tinha-se que mostrar respeito… Ora, a capela condenada era propriedade da Irmandade de São Nicolau mas a Direção Geral mandou deitá-la abaixo porque estava a estragar sabe-se lá o quê.  Fizeram-no sem falar com ninguém, inclusive desprezando os donos da capela. Desarmaram a capela, um absurdo porque tinha sido oferecida pela Colegiada à Irmandade de São Nicolau, na chamada Horta do Sacristão, em 1663.

 

E como se reverteu isso ?

Em 1972 a Irmandade estava adormecida, mas as pessoas começaram a acordar e um dos que acordou fui eu. Decidiu-se reconstruir a Capela e, então, aparece outra vez a Direção Geral a dizer que ali é terreno “Non Aedificandi”. O pintor Adelino José Jordão de Sousa Felgueiras, que era professor de Belas Artes recomendou o Fernando Távora, um indivíduo muito influente. Ele interessou-se e demonstrou que não havia razão para terem deitado a capela abaixo. E a capela foi reconstruída em dois anos. Em 1998 abriu ao público e hoje está lá.

 

Fez parte do movimento que, em 1960, deu origem à Assembleia de Guimarães?

Sim, sou o sócio número um, mas não me posso nomear em primeiro lugar do grupo. Era o Fernando Alberto, o Belmiro Jordão e depois estou eu. Éramos os três que empurrávamos aquilo. Foi por voto, eles é que me escolheram.

 

Identifica essa cidadania ativa, em Guimarães, noutros períodos?

Aparece e desaparece. Tem picos.

 

Assembleia, Irmandade de São Nicolau, Muralha, Cineclube, Associação de Apoio à Criança… Onde vai buscar tanta energia para esta participação cívica?

Tenho 93 anos ... um prazo muito grande ! Falta nomear aí um, o infantário Nuno Simões. Passei por lá, com muito gosto. Foi no ano de 1974 em que se realizou uma … “reposição” de pessoas. O doutor Nuno Simões era um indivíduo que precisava de ser apresentado. Ele passou pelo Liceu e ficou com muitas saudades de Guimarães. Falava da Senhora Aninhas, madrinha dos estudantes, como se fosse a mãezinha dele. Fez um jantar comemorativo dos 80 anos, assinalados no dia 28 de janeiro de 1974, e instituiu o Infantário Nuno Simões. Ele estava muito grato a Guimarães. Ele foi um aluno brilhante de direito e um republicano que não só deu a cara em 1910 como era, também, um dos sustentáculos do Partido Republicano. Dada a sua posição foi nomeado Governador Civil de Vila Real.

 

Daí o nome de Infantário Nuno Simões

Ele resolveu instituir para Guimarães (pela gratidão e por aqui ter estudado), para Famalicão (por ali ter nascido) e para Vila Real (por lá ter sido Governador), um infantário. E para isso dava 1400 contos a cada localidade. Quando vi aquilo disse: vamos fazer isto! Estávamos a três meses da revolução. Contactei o Veiga Simão, como ministro do antigamente, mas tinha falado antes com o Manuel Bernardino Abreu, Presidente da Câmara. Decidiu-se criar uma comissão de que também faziam parte o meu cunhado João Carneiro, o Fernando Conceição e mais alguns elementos. Pedimos um terreno à Câmara com a indicação que o terreno ideal seria um terreno a norte do liceu e o Manuel Bernardino cedeu-o. Veio cá o Veiga Simão, como Ministro da Educação, chamou o indivíduo que estava com ele e mandou tomar nota:  todo equipamento necessário é pago pelo ministério. Estava feito!

 

Fantástico, mas depois surgiu o 25 de abril …

Quando cá vem o Ministro da Administração Interna e vê as obras a andar disse-lhe que herdara uma coisa que tem um bivalente pai. Tinha um pé antes de… e um pé depois de. Veja lá o problema. E ele pergunta: “e o que é preciso?”. Desbloquear o dinheiro, disse-lhe. “Então está desbloqueado” retorquiu. Saiu-me logo um “viva o senhor ministro”… Vivi muito aquela instituição e fiz lá boas amizades.

 

Fez parte da Comissão Administrativa de 1974

Fui escolhido, a 15 de maio de 1974, pelo representante militar de Guimarães, Domingos Almada. Falou ao António Mota Prego e perguntaram-me se eu aceitava. Estive lá um ano. Estava a ser perseguido um cunhado meu, José Maria Gomes Alves, e isso chateava-me, pelo que decidi vir-me embora. Estive lá com o maior gosto. Não refiro aquilo como uma medalha, mas foi uma medalha para mim.

 

Esteve numa transição de regime político…

Sim, um Estado que exigia muito respeitinho. A primeira vez que saí de Portugal foi em 1952, fui a Paris onde estive três semanas. Depois fui fazer um curso a Inglaterra. O meu pai, apesar de ser do movimento, era um homem arejado que deixava que os filhos vivessem a sua vida. Tive também um grande amigo do Partido Comunista, o Carlos Campos Rodrigues da Costa, que me abriu os olhos. Era de Fafe. Esteve preso em Peniche e fugiu no mesmo dia que o Álvaro Cunhal. Ensinou-me muito sobre o mundo. Aos domingos perguntava-me se eu já tinha ido à missa… E dizia-me: “Arruma os livros e vai à missa, depois vens estudar comigo”.

 

 

É uma pessoa de fé ?

Sem dúvida ! De resto a religiosidade manteve-se na minha família. Hoje há uma descompressão em relação à religião, mas, enfim, procura-se viver com isso. Esta pandemia foi terrível … recentemente fui a uma missa no Porto, em Cedofeita, ao meio-dia. Uma igreja grande e arejada e estavam lá entre 40 a 50 pessoas. Fiquei impressionado… Temo pelo futuro.

 

E as Nicolinas ?

Também temo. Os dois anos de pandemia fizeram com que a geração que devia fazer a ligação da tradição desaparecesse. É preciso acautelar o antes e o pós para não surgirem coisas ridículas.

 

Há muitas diferenças entre o espírito nicolino de hoje e o do seu tempo?

Há um espírito nicolino um bocadinho diferente, mas as manifestações têm partes que se identificam perfeitamente. A noite do Pinheiro é insubstituível e todos gozam à sua maneira. A noite do Pinheiro é dos velhos estudantes que aparecem na cidade para dizer aos novos que há que fazer a festa de São Nicolau. O Pinheiro é o mastro anunciador da festa, como se faz em todas as festas do Minho. Dantes púnhamos o retrato da Minerva, pintado pelo Professor José de Pina, um homem santo que desenhou várias coisas aqui em Guimarães. Não quero dizer uma barbaridade, mas o Toural era uma praça digna. Hoje, não é! Foi o Pina que a desenhou. Ele dedicou-se à Penha e deixou-me esse amor. Quando acabámos a capela de São Nicolau fiz uma promessa: levar a Mesa da Irmandade de São Nicolau à Penha, a pé, agradecer à Senhora da Penha ter-nos permitido reconstruir a Capela.

 

Além da intervenção no Toural, o que o aborrece mais em Guimarães?

Gostava de voltar a abordar a Penha e o meu Professor José Luís de Pina que era um homem apaixonado pela Penha. Hoje fala-se pouco da Penha, mas ela sempre foi um lugar sagrado de Guimarães.  A Penha “esmaga” Guimarães, quem chega à Senhora da Guia, vindo da Oliveira, olha para aquele monte e é uma coisa bestial. A Penha tinha uma porção de pessoas apaixonadas, até intelectuais, como o A.L. de Carvalho e o Arqueólogo Mário Cardoso. É um lugar nunca tanto visitado como agora, mas por pessoas estranhas à cidade. Dantes era a cidade que habitava lá em cima. Hoje nem tanto. A Penha deixou de ser sentida.

 

Qual a origem desse divórcio?

Não lhe sei dizer. Hoje até temos o teleférico que é estupendo e proporciona uma vista engraçada. Mas não é gente da cidade que anda lá em cima. Não se vive a Penha. É preciso destinar a Penha. Dar-lhe um destino. Não se procurou arranjar uma razão. O Museu Geológico era mais do que justificável. A Penha é um Museu Geológico natural.

 

Será este “divórcio” da responsabilidade dos agentes políticos que deixaram de a valorizar?

Não se pode responsabilizar ninguém mas importa chamar a atenção para a Penha. Ter respeito e justificação.

 

O hotel da Penha ...

É muito antigo! É boa ideia a da recuperação pela Irmandade, não garantirá muitos quartos, mas dará movimento. E como está o projeto?

 

A Irmandade tem o projeto, desenvolvido pelo arquiteto Noé Dinis.

Esse homem é bom!

 

Mas existem dificuldades para o aprovar…

É estranho. Não peso nada na câmara, nem tenho de pesar, são indivíduos diferentes e o meu tempo passou. Mas sofro.

 

Não terá sido, por exemplo, o Centro Histórico que se superiorizou à Penha na promoção da cidade?

É natural. A preocupação e recuperação do Centro Histórico foi inteligente e, globalmente, bem aplicada. Vê-se que há a fundamentação no Centro Histórico. Foi muito bem aproveitado e a cidade é um encanto. Mas eu ainda vi deitar abaixo muita muralha, acima dos Correios antigos, pelos Palheiros acima havia um pano de muralha brutal.

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de setembro de 2022 do Jornal O Conquistador.]

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