“As artes precisam de estabilidade, de liberdade para poderem criar”
É a promessa sonora ou a ambiência de um rock de quem quer contar histórias deste tempo. Aos 34 anos, o vimaranense e fundador do estudiodomeio.pt, músico, auto ditada, não tem dúvidas que Guimarães da atualidade está para a arte e cultura. É uma consequência da “parte boa do bairrismo”, cuja parte má está em “não saber escutar” enquanto indivíduo. Nos intervalos da música, outra paixão: a bicicleta que serve a criatividade e oferece experiências mais radicais, como ser largado no “sopé duma montanha, como foi o caso da viagem à Geórgia”, para só passados cinco dias ser recolhido.
ENTREVISTA: José Luís Ribeiro e Esser Jorge Silva
FOTOS: Giliano Boucinha e Bruno Carreira
O seu nome artístico, Captain Boy, parece ser uma contradição em si. Pode ver-se aí uma provocação a estes tempos de fragmentação?
O nome “Captain Boy” surgiu como uma forma de encontrar um equilíbrio na contradição do processo criativo. Por um lado, existe o rapaz, irrequieto e com vontade de experimentar todos os sons e a parte do capitão que procura dar uma ordem nesta viagem porque a composição pode tornar-nos, por vezes, um barco à deriva. Andei muito tempo a pensar que esta seria uma personagem e que tinha criado esta dualidade para o meu alter ego, mas cheguei à conclusão que está sempre presente na minha vida (risos).
Como chegou a música até si? Teve formação ou é uma descoberta sobre dar sentido aos sons?
A música sempre esteve presente na minha vida como “ouvinte”. Contudo, a inspiração para a vontade de querer ser músico foi o meu pai. O meu pai era baixista e lembro-me de, em criança, ir a alguns ensaios dele e sentir a mesma energia quando acontecia algo naquela sala como a que sinto hoje a criar a minha música ou num palco. Foi ele que me ofereceu a primeira bateria e me ensinou a tocar os primeiros ritmos.
Parece querer ser um cantautor? Há uma mensagem que atravesse a sua música ou é a sonoridade que mais atrai?
Ser cantautor nunca foi uma escolha premeditada. Tive uma banda em Barcelos, em que tocava bateria durante os meus estudos lá. Quando o curso terminou, a banda também terminou. Regressado a Guimarães comecei a explorar a guitarra, coisa que não sabia tocar e fui compondo temas que acabaram por ser o primeiro EP de Captain Boy. Portanto, inevitavelmente, ao criar tudo pelos meus sentidos posso concluir que, de certa forma, seja um cantautor. Essa liberdade para viajar sem um lugar definido é algo que me atrai muito.
Uma das suas músicas, “Dissolver”, por exemplo, tem um ritmo “hard” mas apela ao “frágil”. É a palavra e a vida em estado de contradição como o seu nome?
Lá estou eu novamente na dualidade (risos). Diria antes que a “Dissolver” é a condição humana em estado de dissolução para algo mais transcendente.
A sua voz tipo “Joe Cocker depois da forja no álcool” precisou de substrato ou foi dádiva da natureza?
Já que não posso passar esta pergunta à frente … brindo com vocês!
Os seus vídeos parecem ser cuidadosamente produzidos. É como se todo o som precisasse de imagem para se autenticar, ou será que ainda há som só por si?
Eu gosto muito da parte da criação dos videoclipes e tenho sempre comigo o meu companheiro de banda e de bagagem, Giliano Boucinha, dos Utter, Paraguaii e Tyroliro. Geralmente o que faço é tentar ouvir o tema que gravei e imaginar uma narrativa e depois passar para as gravações do vídeo. Acho que é interessante oferecer a quem está a ver outra visão, a minha, daquela música em vídeo.
É possível viver exclusivamente da música ou, na maior parte das vezes, não pode passar de um hobby?
É sabido que a música em Portugal é complicada, bem como em muitos lugares no mundo. É possível viver da música, mas se calhar não só da nossa música. Vemos músicos extremamente talentosos que dão aulas ou têm estúdios de gravação. Por isso vivem da música, mas não só da música deles.
Pois …
É difícil explicar às pessoas que, do meu ponto de vista, um músico deveria ter um rendimento assegurado e a partir daí poder criar. Obviamente dando provas de que está a trabalhar em algo. Esta medida já existe noutros países e não só para os músicos, claro.
Estabilidade …
As artes precisam de estabilidade, de liberdade para poderem criar algo com sentido! Não é possível um artista criar uma obra com liberdade e olhar para a conta bancária e verificar que não tem dinheiro para sobreviver esse mês. Além disso, esta forma precária de vida leva os artistas a trabalhos em que o objetivo é a rentabilidade, o negócio, quando deveria ser uma criação e não uma obrigação.
Até onde vai o seu projeto? Ser profissional? Internacional?
Não tenho metas definidas dessa forma para ser sincero. É claro que quero tocar muito, mas neste momento estou focado em escrever em português e explorar a língua nos próximos tempos … aliás, como foi o caso do meu último disco e o primeiro que escrevi em português, “Domingos Lentos”.
Sente-se artisticamente reconhecido em Guimarães?
Sim, sinto bastante! É sempre um prazer quando alguém passa por mim e diz “Só se estraga uma casa” (risos).
Como vê o “estado da arte” da cultura em Guimarães ?
Falando da música, que é a parte da arte na qual consigo ter uma opinião concreta, acho que Guimarães oferece todos os meios necessários para um artista poder fazer arte (muito bem).
A Capital Europeia de Cultura, analisada doze anos depois, deixou raízes ?
Na altura da Capital Europeia da Cultura estava a estudar fora e não acompanhei como gostaria, mas noto muitas infraestruturas e a própria “educação cultural” que tornam Guimarães um marco na cultura.
O que ainda não foi feito e que era importante que tivesse sido?
Não tenho resposta para essa questão. Sinceramente acho que Guimarães, enquanto município, tem imensas formas de apoio à cultura. Na altura da Covid, por exemplo, criaram-se em Guimarães, através do Impacta, mais apoios para a cultura do que em termos nacionais. Não quero com isto criticar “outros” apoios, mas, pelo contrário, salientar o que o município tem dado aos músicos comparativamente com outras cidades. Por outro lado, Guimarães na parte artística, e esta é uma das (poucas) partes boas do “bairrismo”, une-se muito e desenvolve bastantes projetos por si só.
Quais são as partes “más” do bairrismo ?
A parte má do bairrismo é, por exemplo, não escutarmos a respiração do Carlos Paredes na música “Verdes Anos”. Não acharmos que a fragilidade é uma força incrível que nos liga muito mais do que um berrar sem saber bem o que se está a gritar. Acho que o mau do bairrismo é não sabermos escutar por nós próprios e não considerar uma opinião que foi sentida na pele.
“Verdes anos …”
O que quero dizer com “Verdes Anos” é simples: mesmo sendo, para mim, a música que passa em frequências a gema de um português, tem também nos seus silêncios momentos para pensar e só ouvir a própria respiração.
Além da música, outra paixão é a bicicleta …
Sim, aos 14 anos comecei a praticar Trial Bike e participei em bastantes provas. Só de pensar na ansiedade de voltar a competir fico mais nervoso do que ir para palco (risos). É uma paixão que perdura e, sempre que posso e me apetece, vou ao reencontro de velhos amigos e pego na bicicleta. É uma sensação incrível de liberdade que, como descreve David Byrne, permite que uma parte do inconsciente emirja, surgindo algo do trabalho criativo “desses afloramentos do inconsciente”.
É mesmo uma paixão !
É algo que, além da música, está sempre presente na minha vida. Hoje em dia não pratico Trial Bike mas BTT Enduro, como hobby. E todos os anos faço uma viagem de bicicleta com um amigo.
Experiências, certamente, marcantes ?
É algo indescritível! Sermos “largados de jipe” no sopé duma montanha, como foi o caso da viagem na Geórgia, e dizerem-nos que só passados 5 dias nos vão buscar a outro ponto é algo único. São horas e dias sem rede no telemóvel, sem distrações, com quilos às costas, pernas a tremer… mas com paisagens nunca vistas e uma mescla de chãos onde nunca ninguém pisou sem ser com o esforço de caminhar até lá. Existe, como disse, uma forte conexão entre o processo criativo e estas viagens. A fragilidade humana e o deslumbre que sentimos é igual, tanto na viagem como na composição de uma música. Ao criar entramos numa viagem sem saber bem o que vamos encontrar e para onde vamos.
Nessas viagens, de bicicleta ou não, a Galiza é um “porto seguro” ?
Há algo mágico na Galiza e quando vou tocar à Galiza! Na primeira vez que lá fui em digressão, ao tentar falar castelhano, para ser simpático (achava eu), o pessoal que estava a ver o concerto quase me expulsou do palco (risos). No final vieram ter comigo e disseram-me em galego: “Somos vizinhos e companheiros, galegos e nortenhos. Devíamos ser um só!”.
Grande surpresa ?
Não, foi o culminar dum sentimento que estava cá dentro há muito tempo a marinar. Reconheço, ainda assim, que foi algo que me tocou bastante. Porque acredito mais nas ligações do que nas fronteiras, mas também porque, cultural e humanamente, sinto que somos muito próximos (os minhotos) e os galegos. Por isso me revejo bastante numa união entre o Minho e a Galiza.
Com uma perspectiva de "cidadão do mundo", como é ser jovem em Guimarães ?
Não tenho viagens e conhecimento suficientes para conseguir responder. Mas vou tentar (risos). Tive a sorte de fazer parte do Westway Lab de 2019 e integrei uma residência artística com vários artistas do mundo todo. Foi incrível sentir o carinho que eles adquiriram por Guimarães.
E então ?!
Nós damos muito a quem vem cá com a curiosidade de turista. E ser turista é uma condição que poucos turistas atualmente têm. Guimarães é a cidade onde eu quero sempre voltar quando faço uma viagem. Faço as viagens com tempo programado porque sei que é aqui que quero voltar. Por isso, Guimarães é a cidade que me faz jovem, ou mais jovem. Tenho pena (genuinamente) de todos os que não nasceram cá, pois também não sentem o que é “voltar a casa”. Agora fui bairrista. Mas com bom bairrismo (risos).
É uma pessoa de fé ?
Sim. Penso que todos temos a nossa. Mesmo que ainda esteja por descobrir.
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[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de fevereiro de 2024 do Jornal O Conquistador.]