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Bouça ou creche, a área ladeada pelo Tapado é sempre de primeiros passos

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ sábado, outubro 23, 2021
© Direitos reservados
Várias das infraestruturas sociais de Sande São Clemente estão na área encostada à vila das Taipas, incluindo uma creche, herdeira de décadas a brincar-se num monte, à margem de um caminho de terra.

A rua do Tapado começa e termina na Estrada Nacional 310, ligando o Arquinho às imediações da Escola EB 2 e 3 das Taipas. Num dos seus pontos - 41.482247 N, -8.353979 W, mais concretamente -, vislumbra-se uma artéria revestida com o típico paralelo granítico do Norte; por causa de uma curva que lhe encobre o fim, é preciso subi-la para se ver até onde vai. Ou dar uma olhadela de relance ao Google Maps para se perceber que a outra extremidade não tem saída. A identidade daquele lugar, porém, desvenda-se passo a passo: à direita, as casas rasas, em pedra, com mais de meio século de vida, dão lugar a volumes mais recentes na cota mais acima; à esquerda, um parque infantil e duas construções em tons de branco e laranja: a creche e a Junta de Freguesia de Sande São Clemente - integrada em união de freguesias com Sande Vila Nova desde 2013.

A porta da creche é um vislumbre para as primeiras brincadeiras de meninos e meninas de bata verde. Propriedade do Centro Sócio-Cultural e Desportivo de Sande São Clemente, o equipamento tem 42 vagas para três salas – 10 no berçário, 14 na das crianças com um ano e 18 na sala dos dois anos –, sendo 35 delas comparticipadas pelo Instituto da Segurança Social. Apesar de receber crianças de Sande Vila Nova, Sande São Martinho, Caldas das Taipas ou Ponte, prioriza as que vivem na freguesia, avança a diretora técnica.

“A creche é uma resposta social de extrema importância aqui nesta freguesia", afirma Marisa Freitas ao Jornal de Guimarães (JdG). "Às vezes, até temos inscrições de outras crianças, mas os de São Clemente, pelo critério, têm prioridade mesmo que se inscrevam no último dia”.

Aquelas instalações prolongam no tempo a vocação que aquele lugar já tinha: a de ser um ponto de recreio para crianças, adolescentes e jovens, mesmo quando era mera bouça. Ali residente desde que nasceu, há 58 anos, Maria da Graça Cardoso ainda lembra uma meninice a jogar à “macaca”, à “rolha”, ao “pião”, que, além de reunir os habitantes do Tapado, chamava os vizinhos da travessa do Arquinho e da rua das Pereiras. “As pessoas concentravam-se aqui, porque havia aqui um monte. A canalha juntava-se aqui a brincar, até à noite. Das outras ruas, vinham todos ter aqui”, descreve.

 

Edifício da creche do CSCD de Sande São Clemente, inaugurado a 01 de julho de 1995.

Edifício da creche do CSCD de Sande São Clemente, inaugurado a 01 de julho de 1995.

 

Panco, “Índia”, Nossa Senhora da Saúde

Em décadas idas, a divisão do território por quintas era fenómeno habitual no Minho e Sande São Clemente não era exceção. O terreno que inclui a rua e as instalações do CSCD Sande São Clemente era propriedade de dois familiares entre si no princípio do século XX, revela ao JdG a presidente da instituição, Conceição Marques.

Um deles, Domingos da Silva, deixou a denominada Quinta do Panco à Junta da Paróquia de Sande São Clemente, num testamento datado de 28 de Agosto de 1925; essa Junta correspondia às divisões administrativas estabelecidas pela Igreja Católica e não pelo Estado, que só viriam a surgir posteriormente, explica. Assim, a Junta de Freguesia só ficou com os terrenos porque a paróquia não exerceu os seus direitos. “Se a Igreja tivesse aproveitado aquele testamento, ficaria com todos esses espaços. Como nunca reclamou coisíssima nenhuma, isto passou para a Junta. Quando entrámos, viemos ressuscitar esses terrenos”, disse a responsável, numa alusão à sua eleição para presidente da Junta em 1985.

Enquanto a fundação do CSCD de Sande São Clemente esperou até 18 de dezembro de 1987, aquele lugar sem dono para o reclamar foi usado informalmente; com o passar dos anos, os moradores tomaram conta do monte e transformaram-no em bouça, à medida que iam apanhando lenha. “Isto ficou um terreno árido chamado de Índia. A situação portuguesa era miserável. As crianças eram pequeninas: andavam na rua, meias vestidas, meias por vestir”, descreve Conceição Marques.

Num enquadramento social sem saída a não ser, em muitos casos, a emigração, os habitantes locais amanhavam-se como podiam: utilizavam a lenha para cozinhar e criavam animais – “um porquito”, por exemplo. As mais pobres criavam-no para venda na feira dos porcos das Taipas, enquanto aquelas um “bocadinho mais abastadas” comiam a sua carne ao longo do ano.  “A carne de porco tem uma duração muito grande: gasta-se na hora, gasta-se mais tarde e dá quase para o ano seguinte, através de chouriços ou de presuntos”, frisa. Mesmo com os apertos do dia a dia, aquele não deixava de ser um espaço para brincar, acrescenta.

 

“[Em meados do século XX, isto ficou um terreno árido chamado de Índia. A situação portuguesa era miserável. As crianças eram pequeninas, andavam na rua, meias vestidas, meias por vestir”, Conceição Marques, presidente do CSCD de Sande São Clemente

 

Só no final da década de 80, desbloqueado o processo de certidão de óbito de Domingos da Silva, falecido em Moçambique, a Junta de Freguesia e o recém-criado centro social começaram a idealizar o uso que fariam de terrenos que se estendiam até à rua batizada com o nome do benemérito, que acolhe o lar e o novo centro escolar. Para o Tapado, idealizou-se a creche, a sede da Junta, o centro de Atividades de Tempos Livres (ATL) e o rinque de futebol. Já o caminho de terra que ali existia transformou-se na rua de Nossa Senhora da Saúde tal e qual se conhece hoje; o aparecimento dos carros despertou a necessidade, recorda a presidente do CSCD de Sande São Clemente.

“Alargámos esta estrada e fizemo-la corretamente. Com a emigração, algumas pessoas começaram a fazer das casas pequeninas casas melhores. E os carros apareceram. A estrada estava larga, mas não havia vedação. Ainda era um caminho da terra. Ao fazermos a vedação, surgiu a rua”, esclarece.

Para financiar as infraestruturas a nascer, a Junta vendeu uma outra parte dos terrenos doados por Domingos da Silva e recorreu aos subsídios estatais que, pouco após a entrada na então Comunidade Económica Europeia (União Europeia), abundavam. “Fizemos isto tripartido: com dinheiros do Estado, através da Junta, da Segurança Social e da delegação dos desportos na altura”, acrescenta. O ATL começou a funcionar em 1992 e a creche em 1994, antes de todo o investimento a rondar os 500 mil euros à época ser formalmente inaugurado a 01 de julho de 1995.

 

Marisa Freitas, diretora técnica, e Conceição Marques, presidente do CSCD de Sande São Clemente

Marisa Freitas, diretora técnica, e Conceição Marques, presidente do CSCD de Sande São Clemente

 

Uma rua pacata. Até demais?

José Maia caminha pela alcatroada rua do Tapado entre os resquícios da antiga sede da Belo Inox, empresa de cutelaria que agora labora na zona industrial da Gandra, em Barco, e uma casa esverdeada com a menção “Vivenda de António Marques”: antigo dono da fábrica de talheres e faqueiros, era precisamente o pai da presidente do CSCD de Sande São Clemente.

Hoje com 71 anos, o cidadão nasceu na vila de Caldas das Taipas, fez a escola primária no Pinheiral e brincou numa área que se estendeu à antiga bouça, tendo-se instalado na freguesia vizinha de Sande São Clemente. Ao percorrer aquela rua, sempre a mesma sensação: “Uso a rua para fazer uma caminhada, mas não há passagem assídua das pessoas. O que se passa aqui é o que se passa nas ruas de aldeia”, descreve.

De volta à creche, Marisa Freitas corrobora o ambiente sossegado daquele quarteirão, apenas interrompido pelos carros que deixam ou levam as crianças. “Aí a rua tem bastante movimento. A nossa creche abre às 07h30. A partir das 08h15 até às 09h00, há um movimento mais intenso. À tarde, a afluência é maior entre as 17h30 e as 18h30”, esclarece.

 

Casa verde no Tapado, onde residiu António Marques, antigo proprietário da Belo Inox

Casa verde no Tapado, onde residiu António Marques, antigo proprietário da Belo Inox

 

Vinculada à instituição desde 2007, a responsável salienta que, de resto, só se veem moradores e funcionários, mesmo com o crescendo de procura de que é alvo a instituição. “O facto de as pessoas nos procurarem, mesmo quando têm o segundo ou mesmo o terceiro filho ou por referências, é bom. No entanto, temos agora uma preocupação que tem a ver com o facto de que, cada vez mais, não conseguimos dar resposta a quem nos procura”, acrescenta.

Mais abaixo, Maria da Graça Cardoso confessa que “gostava mais da rua como antigamente” e menciona a creche como lampejo isolado de vida social. “Se não fosse a creche, a rua estava completamente apagada. Ao fim de semana, não se vê ninguém”, reitera.

Para a moradora, essa falta de ambiente agravou-se nos últimos dois anos, com o encerramento do campo de jogos e do café do CSCD de Sande São Clemente. “O campo de jogos e o café que estavam a explorar para os jogos davam vida. Isso fechou e a rua ficou a perder”, considera.

 

“Se não fosse a creche, a rua estava completamente apagada. Ao fim de semana, não se vê ninguém”, Maria da Graça Cardoso, residente na rua de Nossa Senhora da Saúde

 

O caso do relvado sintético contíguo à sede da Junta é temporário, promete Conceição Marques. Justifica o encerramento nos últimos dois anos com o novo coronavírus e espera abri-lo em breve, quando estiverem concluídas as pequenas obras em curso. “Havia uns remendos para se fazer e a empresa começou isso na semana passada. Ainda estão a decorrer as obras, daí o campo ainda estar fechado. Para a semana, o senhor ficou de vir cá, para dar por finalizados os trabalhos”, adianta. Na hora da reabertura, o campo deve abrir para grupos que marquem determinadas horas para jogar futebol, refere ainda.

Quanto ao café do Centro Sócio-Cultural e Desportivo, chegou-se à conclusão de que os utilizadores do campo não “faziam movimento de café”, entrando e saindo diretamente do balneário, frisa a presidente da instituição. Além disso, o serviço está pensado para sócios e não para a população em geral, que, a seu ver, pode tomar café num qualquer outro estabelecimento próximo. “O café não tinha assim tanto movimento à noite. Vinham cá três ou quatro pessoas que tomavam um café estavam aqui até à meia-noite. Não vinham para a atividade do centro, mas só para tomar café, o que pode ser feito em qualquer outro sítio”, diz. O espaço está agora arrendado para a confeção e venda de bolos e doçaria.

Mais ou menos viva, a área contígua à EN 310 é a que concentra mais gente na freguesia. E a tendência é para a população ficar ali concentrada, face às imposições do PDM, que impede construção em áreas mais distantes dessa rodovia estruturante. “Partes da freguesia estão a morrer. Na Cabreira, a população quase que desapareceu. As pessoas já estão concentradas nesta área”, sentencia.

* com Carolina Pereira

 

Campo de Jogos

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