Com “Corpo Clandestino”, CCVF vai ser palco para quem foge ao “padrão”
O espetáculo “Corpo Clandestino” dá palco a intérpretes que “não fazem parte do padrão a que estamos habituados”, realça o coreógrafo Victor Hugo Pontes ao Jornal de Guimarães: “Não estamos habituados a ver pessoas com nanismo em cima do palco. Não estamos habituados a ver pessoas muito grandes. Não estamos habituados a ver muitos corpos negros ou corpos trans em cima do palco. Não estamos habituados a ver corpos sem membros em espetáculos de dança contemporânea profissionais”, detalha o vimaranense de 43 anos.
Os corpos de Ana Afonso Lourenço, Andreia Miguel, Gaya de Medeiros, Joãozinho da Costa, Mafalda Ferreira, Paulo Azevedo e Valter Fernandes são assim “a força do próprio espetáculo” que sobe ao palco do Grande Auditório Francisca Abreu, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), a partir das 21h30 de sexta-feira, 17 de março. A performance de uma hora e 20 minutos é composta por “momentos muito diferentes e muito disformes”, a partir dos quais emerge “uma imagem nova”, a que os espetadores não estão habituados. “Ele vai passando por diferentes atmosferas e diferentes paisagens que estes corpos vão compondo. Não temos uma narrativa linear. Não há uma história. Há um conceito que deixa espaço ao espetador para construir a sua narrativa ou várias narrativas”, antecipa.
Influenciado pela obra de Franz Kafka “A metamorfose” e desenvolvido em Setúbal, numa residência artística ao abrigo da plataforma de criação artística municipal “Rota Clandestina”,, com direção artística de Renzo Barsotti, o espetáculo tem um nome que visa lembrar precisamente a “discriminação” de que corpos como os dos intérpretes são alvo. “Chamo a este corpo de clandestino, porque é como se ele não estivesse legalizado. Na maior parte das vezes, são discriminados. Há uma cena do espetáculo em que há um confronto direto com o próprio público”, observa.
“Tomei consciência política à medida que fui alargando o meu mundo”
A obra tem assim um cariz político, cada vez mais presente no trabalho de Victor Hugo Pontes. “Esse trabalho pode ter começado mais a partir do espetáculo “Margem” (2018), em que trabalhei com crianças institucionalizadas a partir do romance do Jorge Amado, “Capitães de areia””, situa.
Mas essa consciencialização só se tem tornado possível devido ao contacto com outras realidades que o “levaram a outras perspetivas” e também à constatação de que sempre foi “privilegiado” no seu caminho. “Tomei consciência política à medida que fui alargando o meu mundo: viajando mais, tomando contacto com pessoas muito diferentes. Em Portugal, contactei com contextos socioeconómicos muito diversos do meu”, salienta.
Victor Hugo Pontes sente que pode tirar partido desse privilégio para “amplificar a voz de algumas pessoas”. “Não digo dar voz, porque a maior parte das pessoas têm-na. Essa voz não é ouvida, porque não lhes dão espaço. Faz parte do meu percurso dar espaço a temas não abordados ou mais fraturantes na sociedade”, esclarece.
“Construir espetáculos é como fazer desenhos em tempo real”
O percurso artístico de Victor Hugo Pontes começou em Guimarães, com a participação em “A grande serpente”, peça de teatro encenada pelo malogrado Moncho Rodríguez, ao abrigo da Oficina de Dramaturgia e Interpretação Teatral (ODIT), em 1994, e foi cedo influenciado pelo teatro e pelas artes plásticas. “Se me dissessem há 20 anos que seria coreógrafo, provavelmente não acreditaria. O meu percurso não estava ligado à dança. Estava mais ligado ao teatro e às artes plásticas”, realça.
A formação em pintura influenciou assim a estética que apresenta nos espetáculos criados ao longo das últimas duas décadas, de “caráter mais abstrato e não tão concreto”. “A minha estética é influenciada pela minha visão plástica de cinco anos a estudar pintura. Esse estudo de composição foi aplicado na construção do espetáculo. Construir espetáculos é como fazer desenhos em tempo real, que se vão fazendo e apagando”, descreve.
Nessa carreira, Victor Hugo Pontes foi ganhando várias casas, ao sentir-se “bem acolhido pelo país todo”, mas volta “recorrentemente a Guimarães”, a sua primeira: o espetáculo de sexta-feira é o terceiro que o coreógrafo apresenta na cidade-berço no último meio ano, depois de “Meio no meio”, a 30 de setembro, e “Porque é infinito”, a 26 de novembro.