Crianças estão cada vez mais “desengonçadas”: É preciso “pô-las a brincar”
“Antigamente é que era”, é comum ouvir-se: “As crianças iam a pé para a escola, saltavam, subiam as árvores e corriam”. Estas são, também, realidades que vão sendo transmitidas como se práticas de uma geração longínqua se tratassem. Mudam-se os tempos, as tarefas acima mencionadas deixaram de ser uma prática frequente, e daí advém uma realidade preocupante que vai para lá do quadro de obesidade que se coloca: “As crianças são cada vez mais descoordenadas”, refere José Fidalgo Martins, coordenador do Centro de Estudos do Desporto de Guimarães – Tempo Livre. “Não sabem correr, correm de forma desengonçada e as bicicletas, então, há cada vez menos crianças a saber usar”, complementa a médica Catarina Magalhães.
Este cenário tem vindo a tornar-se cada vez mais comum, notando-se nos mais novos em contactos básicos com brinquedos que outrora eram corriqueiros. Uma simples raquete complica, assim como andar sobre rodas – de skate ou patins – e as bicicletas são cada vez mais aparelhos para manusear em contextos altamente controlados. Estas certezas saltam à vista em duas vertentes: académica e empírica. Por um lado, a nível académico, destaca José Fidalgo Martins, “há vários estudos que comprovam isso”. Por outro lado, faz-se valer da sua experiência enquanto professor de Educação Física para dar conta da “perceção empírica no terreno, de observação, que faz perceber que os níveis de motricidade dos miúdos têm diminuído”.
No entender de José Fidalgo Martins, a explicação para este fenómeno é “fácil” de traçar. “Há mais crianças a praticar desporto, mas há menos crianças a fazer atividade física no dia a dia de forma informal”, explica. Catarina Magalhães é neurologista pediátrica no Centro Pediátrico de Guimarães e ajuda a complementar o quadro. “Principalmente com a pandemia, notou-se um aumento de pedidos de observação de crianças com dificuldades, que não são graves, mas que se verificam na coordenação, na motricidade, como o equilíbrio, isto em contexto-pré-escolar”, explica. Nos mais velhos, é percetível que “cada vez brincam menos”, a não ser em clubes ou em desportos específicos.
“Falta o imprevisto”. É preciso “consciencializar as famílias mais jovens”
Na visão da pediatra, há premissas que são essenciais nesta equação. “Falta o imprevisto” às crianças, uma vez que o desporto é praticado quase sempre “de forma muito programada e em contexto controlado”. No 1.º Ciclo, também conhecido como escola primária, a prática de desporto, assim como a expressão artística, é considerada uma atividade extracurricular. Este estigma leva a que possa ser desvalorizada, mas não devia, segundo Catarina Magalhães. “Tentamos fazer ver as famílias que a prática de atividade física é tão importante – para o desenvolvimento motor e até cognitivo das crianças –, quanto a matemática ou o português”, sustenta, dizendo que, ao ser extracurricular, há famílias que abdicam dessa oferta para que os filhos estejam menos tempo na escola, ou em clubes a desenvolver um desporto específico.
“Desportos como a natação, ou o futebol, entre outros, são excelentes”, reconhece, mas levam-nos para a tal vertente “controlada e programada”; isto leva a que “as crianças tenham menos oportunidades de treino motor”, diz. “Há pouca liberdade e criatividade motora”, também porque as famílias deixaram de levar os miúdos aos parques”. A médica diz, por isso, que “é preciso consciencializar as famílias mais jovens”. Uma visão em tudo semelhante à de José Fidalgo Martins, que considera que “o número de horas de prática desportiva é cada vez mais reduzido e a atividade física limita-se, muitas vezes, à prática nos clubes, direcionada para modalidades específicas, com capacitação específica e sem competências gerais”.
O coordenador do Centro de Estudos do Desporto de Guimarães acrescenta que a “dinâmica do dia a dia das crianças” condiciona o seu desenvolvimento físico. “A mobilidade para a escola, ou para outros locais, por exemplo, também dificulta, ao ser quase exclusivamente de carro”, sugere, constatando que “há pouca atividade física espontânea e livre”.
“Não é preciso gastar dinheiro”, e morar num apartamento não é desculpa
José Fidalgo Martins realça que o Plano Municipal de Promoção da Atividade Física 2023/2030, em desenvolvimento pelo Tempo Livre, numa parceria com a Câmara Municipal, vai considerar esta realidade e “dar sugestões de boas práticas, de forma a que – quer no espaço escolar, quer fora dele –, possa ser corrigida esta questão da atividade física”. O documento deverá ser publicado no final do ano, sendo que, para a sua elaboração foi feito um diagnóstico nas escolas, inclusive com as associações de pais.
Enquanto isso, aconselha Catarina Magalhães, “o controlo do tempo de ecrãs é indispensável, porque quanto mais tempo estão nos ecrãs, menos ativos estão”. Este é um primeiro princípio a ter em conta, sendo certo que deve reforçar-se a necessidade de praticar desporto. “Não é preciso gastar dinheiro para praticar atividade física”: “Basta aproveitar aquilo que a escola oferece, que é gratuito e variado, e deixar que os miúdos brinquem ao ar livre, em espaços públicos”. Uma brincadeira que deve ser acompanhada de outras crianças, uma vez que “desenvolve-se não só a capacidade motora, mas também outras capacidades cognitivas e sociais muito importantes para a vida”.
Por último, Catarina Magalhães aponta que morar num apartamento não é desculpa para que se privem as crianças de práticas exteriores. “Não preciso morar numa casa com muito terreno para as crianças poderem brincar no espaço exterior; mesmo quando não há condições económicas para se avançar para um desporto de competição, digamos assim, num clube, é sempre possível proporcionar atividades físicas ao ar livre, nos espaços públicos”, conclui. A receita é, portanto, simples: “Temos de pensar nisto com relevância, tirar as crianças dos ecrãs e dos sofás e pô-las a brincar”.