Ecorâmicas: das praças aos bairros, o espaço público pode ser muitas coisas
Assim que a sucessão de documentários para a tarde de domingo encerrou e as luzes se acenderam, as dezenas de presentes no Auditório da Fraterna, em Couros, trocaram impressões sobre o que viram e partilharam as experiências do dia a dia; o panorama da habitação em Portugal e a escassez de oferta de transportes públicos como alternativa ao automóvel emergiram como problemas a montante do acesso ao espaço público, tema central da nona edição das Ecorâmicas, organizadas pela Associação Vimaranense para a Ecologia (AVE).
A mostra de cinema documental retratou, em 18 vídeos curtos e dois filmes mais longos, os princípios que orientam uma cidade acessível às relações humanas e ao usufruto ao ar livre, o embelezamento de espaços urbanos em várias cidades, tornando-os mais verdes ou repletos de arte em substituição das filas de carros estacionados junto aos passeios, e a transformação de alguns dos bairros de Guimarães, através do projeto Mapa2012, levado a cabo no âmbito da Capital Europeia da Cultura, e do Alquimia, um projeto mais recente da Câmara Municipal de Guimarães, da Sol do Ave a da Fraterna para reforço do sentido de pertença através das artes.
"Foram interessantes as curtas com a transformação da nossa cidade. Pode não ser o que a gente idealizava, mas foi muito interessante vermos que as coisas podem ser transformadas. Não há nada que não seja imutável. Podemos perceber que a nossa vida futura depende muito das ações de hoje e de acreditarmos que as coisas podem ser diferentes", considera o presidente da AVE, Paulo Gomes, em declarações ao Jornal de Guimarães.
“Aprender outras visões do espaço público”
A apresentação desses projetos antecedeu justamente o debate de sábado à tarde, com Nuno Machado, artista responsável pela plataforma Fuga pela Escada que esteve na coordenação do Alquimia, Ricardo Rodrigues, arquiteto da Câmara Municipal de Guimarães envolvido no projeto Mapa 2012 e também no processo que conduziu à extensão da área classificada como Património Mundial da UNESCO a Couros, e Ivo Oliveira, investigador do Laboratório de Paisagens, Património e Território (Lab2Pt) e ainda vice-presidente da Escola de Arquitetura, Arte e Design da Universidade do Minho (EAAD).
Conhecedor do espaço público do Porto, de Santa Maria da Feira, território sobre o qual fez doutoramento – tem uma rede viária tão extensa como Lisboa face à dispersão urbana -, e de Guimarães, município também pautado pela dispersão, Ivo Oliveira referiu que os pequenos exemplos de ganho de espaço para usufruto público nas cidades devem ser incentivados e considerou que as ruas devem caminhar para uma maior variabilidade de usos sem necessariamente se retirar os automóveis de todas elas. Ricardo Rodrigues recordou a transformação do Bairro de Nossa Senhora da Conceição em 2012, com os moradores a participarem num processo que incluiu obras de requalificação, com ganhos a nível de passeios, e uns murais coloridos da artista Agatha Ruiz de la Prada, ainda hoje visíveis. Abordou também algumas pistas para o futuro do espaço público de Couros. Já Nuno Machado vincou, a partir da experiência do Alquimia, que a arte pública pode congregar pessoas vizinhas em torno de um espaço comum, valorizando-o.
O debate suscitou várias questões do auditório, com Rosana Pereira a lamentar o abate de árvores em áreas como a Nossa Senhora da Conceição, o Salgueiral e o centro histórico e a falta de melhorias de Guimarães nesse âmbito. A consideração mereceu a discordância de Ricardo Rodrigues, pelo menos no que respeita ao centro histórico, e de Carlos Ribeiro, diretor do Laboratório da Paisagem, a dar conta de que 18% do território vimaranense é coberto por área verde e que o número de árvores abatidas num ano é sempre superado pelo número de novas árvores.
As restantes intervenções abordaram a participação cidadã, o papel das comissões de moradores num bairro ou numa rua e o acesso à informação de entidades como as câmaras municipais, detentoras do poder público local. Ivo Oliveira, que abordara o papel do associativismo como uma possibilidade de intervenção no espaço público, reconheceu que as comissões de moradores podem desempenhar um papel, sendo muitas vezes prejudicadas pela conotação político-ideológica que acarretam.
Num balanço ao debate e aos vídeos exibidos, Paulo Gomes admite que o fim de semana permitiu ainda desmontar “alguns preconceitos” face ao espaço público. “Aprendemos a ver outras visões e enriquecemo-nos. Saio com outra ideia daquilo que é o espaço público, daquilo que representa trabalhar o espaço público. Tem acontecido isso nas edições todas, mesmo que não fosse aquilo que era a nossa ideia”, esclarece.
Envolvida na organização das Ecorâmicas, Alexandra Fernandes concorda que os filmes e o debate servem para as pessoas se questionarem e cultivarem o espírito crítico. Sublinha também a relação entre espaço público e saúde mental, dando conta de médicos de países do Norte da Europa que passaram a receitar passeios pela natureza a doentes no período pós-pandémico, e crê que a cultura também tem um papel a desempenhar, conforme se viu na curta acerca de dois bairros na Argentina unidos por escadas rolantes.
"Elas não serviram principalmente o propósito da mobilidade, mas para outras coisas. Aquilo está com grafitti e desenhos coloridos para as pessoas do bairro se identificarem e sentirem orgulho. Esse é um chamariz para turistas visitarem aquela zona, num turismo de inclusão em sítios habitualmente associados a exclusão. Isso serve para desmistificar a carga negativa associada ao espaço público. A cultura traz-nos isso", refere a sócia da AVE.
O contraste entre o espaço público e o condomínio fechado
O público das Ecorâmicas deixou o auditório no domingo de manhã para caminhar pela cidade, avaliando alguns dos seus espaços públicos. A Avenida D. João IV foi um dos lugares escolhidos; nesse itinerário, os membros da AVE contrastaram o espaço público entre dois edifícios de apartamentos, junto ao Instituto dos Registos e do Notariado e a outros serviços, utilizado pelos moradores, e o condomínio fechado vizinho, sem gente no seu espaço exterior. "Temos esse contraste. No condomínio fechado, nunca se vê ninguém a usar o espaço exterior, que é bastante grande, mas não tem espaço para as pessoas se sentarem. Deve ser por isso que eles não usam", frisa Luís Gonçalves, dirigente da AVE.
Paulo Gomes lembra que os condomínios fechados são espaços “estranhos à maior parte das pessoas”, incapazes de usufruir do seu espaço exterior. “Questionamo-nos se faz sentido haver zonas assim que poderiam ser usadas. Há essa perceção de que se vai estragar o espaço se abrirmos ao público. Muitas vezes nem é isso que acontece. Enriquecem-se esses espaços", realça.
O dirigente crê ainda que o Toural, outro espaço visitado, poderia ser “muito mais usufruído” sem o tráfego automóvel e o consequente ruído de que padece. Muito do tráfego ao domingo de manhã é causado por pessoas que estão simplesmente a passear, mas de carro. “Apercebemo-nos que as pessoas que passam ali de automóvel não vão comprar nada nem para parar. Passam pelo Toural e pela rua de Santo António para dar a volta pela cidade. O Toural torna-se uma zona pouco agradável por causa do imenso tráfego automóvel”, salienta, numa avaliação a outro dos espaços públicos de Guimarães.
Escolas também podem intervir no espaço público
À boleia da edição deste ano, “Espaço público – a quem pertence?”, a AVE lançou um desafio às escolas públicas e privadas para apresentarem um projeto de intervenção no espaço público, dentro ou fora do recinto escolar. Organizado em parceria com o Lab2PT - Laboratório de Paisagens, Património e Território e a FNAC Guimarães, o concurso atribui um prémio de 200 euros à escola vencedora. As fases do projeto devem ser registadas a nível fotográfica para ser submetido a concurso.