Em Fermentões, vai-se receitar muita criação teatral, mas também poesia
Desenhado para o encontro entre os moradores dos bairros municipais de Coradeiras e de Mataduços, em Fermentões, e um grupo de estudantes da Escola de Medicina da Universidade do Minho, o projeto COMvivência(s) arranca no sábado, com uma oficina de design colaborativo nas Coradeiras, com a prática de carpintaria, serralharia e costura sob a orientação de Patrick Hubmann, e estende-se até dezembro. O calendário inclui ainda oficinas de teatro, três sessões de consultas poéticas, com início a 11 de março – consultas nas quais o artista prescreve ao paciente-espetador alguma experiência relacionada com poesia ou outra forma de arte –, visitas à cidade de Guimarães, a iniciativa “Conversas no Bairro” ou um seminário, a encerrar o ano, em Braga.
O corolário do programa são os dois laboratórios de criação entre estudantes e moradores, que vão conduzir à apresentação pública de espetáculos novos: um realiza-se entre abril e maio, no auditório da Universidade do Minho (UMinho), no campus de Azurém, sendo “mais intensivo”, e o outro entre setembro e dezembro, em Braga.
Uma das 15 propostas financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação la Caixa ao abrigo da terceira edição do Partis & Art for Change, o COMvivência(s) é uma oportunidade para quem habita naqueles dois bairros de Fermentões – 158 fogos em conjunto – “conviver com outras pessoas”, no caso um grupo de alunos de medicina, numa ótica de realçar a “prática artística como prática do cuidado”, sublinhou a coordenadora artística, Manuela Ferreira, durante a apresentação do projeto, decorrida na quarta-feira, no Teatro Jordão.
“É muito desafiante atrair pessoas para o teatro, porque é uma prática que nos expõe muito e nos coloca num lugar de vulnerabilidade como seres humanos. É uma oportunidade para abrir os bairros à comunidade e os seus moradores conviverem com outras pessoas. Vamos trabalhar com comunidades bem distintas”, vincou. O usufruto da Casa do Povo de Fermentões para as oficinas de teatro semanais pode desempenhar um papel crucial, enquanto lugar onde diariamente se cruzam pessoas de todas as classes.
Também ligado ao projeto, Tiago Porteiro, docente da licenciatura em teatro da UMinho, salientou a junção de “universos que aparentemente não se cruzam”. O projeto abarca também os utentes do apartamento de autonomização de pessoas em condição de sem-abrigo, gerido pelo núcleo de Guimarães da Cruz Vermelha Portuguesa, ao abrigo do Centro de Acolhimento (CAES), em Atães.
Uma lufada de arte num lugar de “trabalhos e salários precários”
Familiarizados com a intervenção artística, seja através do projeto Alquimia ou do programa Bairros Saudáveis, os bairros das Coradeiras, com 98 fogos, e de Mataduços, com 60, deparam-se com cenários de “vulnerabilidade e precariedade social”, cerca de 25 anos depois da sua construção e subsequente aquisição pela Câmara Municipal de Guimarães. Coordenadora social do projeto, Carla Silva, da CASFIG, empresa que tutela o parque habitacional municipal, relata várias transformações no último quarto de século, junto de uma população que, em parte, foi desenraizada do modo de vida a que se habituara: quotidiano em barracas ou garagens, muitas delas localizadas em áreas mais periféricas do concelho de Guimarães. Uma dessas transformações foi a redução do desemprego, mas não nas condições ideais.
"Há 20 anos, havia mais gente desempregada. Via-se mais gente cá fora. Hoje, há mais gente a trabalhar, mas com salários precários", retrata. Entre os habitantes mais jovens, houve quem tenha seguido estudos e tirado licenciaturas, mestrados e até doutoramentos, tendo deixado definitivamente o bairro e até a cidade. Portanto, a população tende a ser mais velha do que há 25 anos, apresentando, não raras vezes, “habilitações literárias insuficientes”, “problemas com álcool e saúde mental”, “qualidade de vida insafisfatória” e “dificuldade no acesso aos serviços”, apesar da recente implantação da paragem em Mataduços para o transporte a pedido da Vitrusbus, uma reivindicação oriunda do programa Bairros Saudáveis.
Psicólogo da educação, Pedro Guimarães aponta que vários dos moradores viveram experiências que “os afetam para toda a vida nos comportamentos”. “É uma população com poucas retaguardas. Saíram da raiz, tiveram de construir novas relações e adaptar-se a novos modos de vida. Carregam histórias muito difíceis. Têm muitas barreiras. Conseguem sobreviver, mas não viver. São das pessoas mais resilientes que conheço”, frisou.
Contrariar “visão dissociada dos problemas sociais”
O projeto destina-se aos alunos do 2.º ano do Mestrado Integrado em Medicina, ainda no ciclo pré-clínico. Será uma das opções na disciplina de Percursos Complementares em Medicina. Os estudantes autopropõem-se a participar no COMvivência(s). Investigador no Instituto de Ciências da Vida e da Saúde, na UMinho, e psiquiatra no Hospital de Braga, Pedro Morgado realçou que o projeto é um exemplo de que “a ação dos médicos pode ir além da prescrição de exames e de medicação" e de que as artes podem ajudar os futuros clínicos a “aprofundarem as competências transversais e relacionais” através das artes.
A iniciativa também pode ajudar um universo estudantil cada vez mais confinado a classes altas, com menor proveniência da escola pública, a ter uma visão diferente dos problemas sociais, já estimulada em projetos vigentes, com a Cruz Vermelha Portuguesa de Braga e membros da comunidade cigana de Braga.
“Por norma, quando são questionados sobre quem tem mais problemas de saúde, dizem que são as pessoas mais pobres. Mas quando se lhes pergunta quem tem mais problemas de saúde mental, dizem que são as pessoas mais ricas. Não é verdade. Também são as pessoas mais pobres. Há uma visão do mundo dissociada dos problemas sociais”, referiu.