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Uma vida de berços que flui agora entre Guimarães e Abidjan

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ quarta-feira, outubro 19, 2022
© Direitos reservados
São cerca de 30 os países que Ruthia Portelinha, viajante e blogger, já contemplou. Com uma vida agora distribuída entre Portugal e Costa do Marfim, subsiste a ânsia pela Namíbia, país em que nasceu.

Setembro e outubro são meses de regresso à base para quem já aterrou em cerca de 30 países. A vida de Ruthia Portelinha entrelaça-se com a de Guimarães desde os 10 anos, mas esta viajante, sócia da Associação de Bloggers de Viagem Portugueses (ABVP), já antecipa novo voo para sul, rumo à cidade em que se fixou no ano passado, com o marido e o filho: Abidjan, a maior urbe da Costa do Marfim, cuja população ronda os 6,3 milhões de habitantes.

Já visitara outras nações africanas, mas é a primeira vez que está a viver no continente. E “está a ser um desafio”. “A Costa do Marfim não é o destino mais fácil de África, em comparação com Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe, em que o povo é, por norma, muito acolhedor, mesmo não nos conhecendo de lado nenhum”, descreve ao Jornal de Guimarães.

Em resumo, as pessoas que encontrou em Abidjan não são “tão prontas a mostrar afeto” como noutros destinos que já visitara, e ilustra-o com um exemplo: “Das primeiras vezes que fui comprar fruta, a senhora mostrou-se um bocadinho carrancuda comigo. Só com o tempo, depois de voltar lá, é que mudou. Agora já me recebe com um sorriso. Não se abrem ao estrangeiro, ao outro com tanta facilidade”, prossegue.

 

Trabalho em olaria em Abidjan, a maior cidade da Costa do Marfim © Ruthia Portelinha

Trabalho em olaria em Abidjan, a maior cidade da Costa do Marfim © Ruthia Portelinha

 

Pese a diversidade paisagística, cultural e étnica do continente, África entranha-se na vida de Ruthia desde que veio ao mundo, num nascimento atribulado; a época, a mãe encontrava-se numa Angola em guerra civil e “houve um dia em que lhe bateram à porta, a dizer que tinha de abandonar o país, pois aquela área iria ser toda bombardeada”. Com a gravidez perto do fim, Teresa entrou num camião para cruzar a fronteira com a Namíbia e “começou o trabalho de parto” durante a viagem.

“Quem assistiu ao parto foi um cirurgião militar que nunca tinha feito um parto na vida. Nasci já no outro lado da fronteira, na atual Namíbia, que, na altura, estava sob administração da África do Sul. A minha mãe saiu diretamente da maternidade para um campo de refugiados. Fui registada, metida num avião e cheguei a Portugal com sete dias de vida. Nunca cheguei a conhecer o sítio onde nasci”, conta.

É dessa África ainda por reencontrar, berço pessoal e berço da humanidade, que provém o nome do seu blogue: O Berço do Mundo. Aí encontram-se textos relativos às pirâmides de Gizé e ao templo de Abu Simbel, no Egito, a urbes marroquinas como Tânger, Tetuão, Fez e Chefchaouen – a “cidade azul”, a Luanda e ao embondeiro, a “árvore sagrada”. Das visitas a África, Angola é o único país onde se sentiu próxima das raízes.

Mas também já se veem entradas para a Costa do Marfim: há textos sobre a floresta de Banco, em redor de Abidjan, sobre a capital política, Yamossoukro, sobre o Grand-Béreby, primeira área costeira protegida do país, e sobre o Domaine Bini, projeto de ecoturismo.

 

“A maior parte da população não passa aquela fome clamorosa, mas passa necessidades; por exemplo, uma família inteira de 10 a 12 pessoas pode viver numa única divisão”

 

Ruthia Portelinha escreve ao ritmo do voluntariado em associações radicadas em Abidjan, cerca de uma dezena. Uma delas é a Association Internationale des Femmes en Côte d’Ivoire (AIFCI), que “apoia essencialmente mulheres e crianças em situação vulnerável”. Ainda que “criar filhos sozinha” seja difícil para uma mulher em Portugal, há, por norma, “ajudas do Estado”, num contraste evidente com a Costa do Marfim. “Em África, a quantidade de mulheres a criarem os filhos sozinhas é tão grande e não há praticamente ajudas do Estado. Mesmo as organizações não-governamentais, que são muitas, não chegam. São uma gota no oceano”, descreve.

A AIFCI apoia 10 entidades, entre as quais um centro que acolhe centro que acolhe mulheres vítimas de violação ou portadoras do VIH, causa da SIDA, e um centro de acolhimento de crianças e jovens com deficiência, gerido por freiras católicas na localidade de Anyama. Algumas das crianças têm parentes que as deixam de manhã e vão buscar ao fim do dia, mas a maioria “não tem retaguarda familiar”. “Estes meninos dizem-me mais, porque os vou ver todas as semanas. Quando volto de férias, eles agarram-se a mim a dizer que lhes fiz falta. Criou-se um laço afetivo”, realça. No regresso temporário a Guimarães, tem recolhido materiais para apoiar aquele centro.

 

Biodiversidade na floresta do Banco, na região de Abidjan © Ruthia Portelinha

Biodiversidade na floresta do Banco, na região de Abidjan © Ruthia Portelinha

 

Esses esforços de caridade são respostas a um quotidiano em que se vê crianças a pedirem bens nos cruzamentos ou nos semáforos das ruas; a fome nem sempre é “clamorosa”, mas sente-se. “Por exemplo, uma família inteira de 10 a 12 pessoas pode viver numa única divisão, ou ter uma alimentação que passa só por arroz, algum legume ou o attieké, o prato típico de lá, parecido com o couscous”, detalha.

As falhas de eletricidade e de Internet também são peripécias regulares da vida em Abidjan, até para “a classe privilegiada, a viver na melhor zona da cidade”, num contraste evidente com a vida em Guimarães, cidade em que, por norma, “é fácil morar”, com “boas acessibilidades para todo o lado” e “condições básicas de água, de luz e de Internet”. “Quando em África, falha-nos a luz, se o condomínio não tiver gerador, não há luz. Às vezes, a Internet falha e a espera pode demorar dois dias ou mais. E o mais provável é o problema não ficar resolvido à primeira visita”, diz, a título de exemplo.

Há um ano a mais de 4.000 quilómetros de Guimarães, Ruthia sente principalmente falta do centro histórico – “é lindo” -, dos espaços verdes, de “ter tudo em termos culturais, de educação e de saúde” sem as “chatices de uma cidade grande”. Esse apego à cidade-berço estende-se ao filho, que faz sempre questão de “defender o património da cidade” quando recebe visitas, e ao marido, natural de Vila Nova de Foz Coa. “Temos casa em Guimarães e vamos mantê-la. Quando chega, gosta de dar uma volta maior e passar no centro da cidade para matar saudades. Guimarães entranha-se-nos”, reitera.

 

Em Chefchaouen, a denominada "cidade azul" de Marrocos, em 2019

Em Chefchaouen, a denominada "cidade azul" de Marrocos, em 2019

 

Na Turquia, encontrou um “destino simpático” para a mulher. No Egito, nem por isso

O mapa das viagens de Ruthia inclui ainda várias das latitudes da China, cidades europeias e uma das antigas civilizações do Médio Oriente: a egípcia. Deslocou-se pela primeira vez ao país há 16 anos, com “expetativas muito grandes”, que se concretizaram “em termos de património”. Mas não nas circunstâncias “sociais e culturais”: o assédio e os comportamentos “invasivos”, como sentiu na biblioteca de Alexandria, são “encarados com normalidade”.

“Enquanto explorava a biblioteca, dei uma voltinha e voltei logo para o pé do meu marido. Os olhares e os comentários, mesmo não os percebendo, eram muito invasivos”, realça. Ainda assim, o fenómeno não chega a ser “perigoso” para quem vai em turismo, por motivos económicos. “Têm uma polícia para turistas. Numa noite no Cairo, metemo-nos num táxi. Ao sairmos do hotel, estava um guarda à porta, que, na altura, usava farda branca. Foi apontar a matrícula do carro, quantas pessoas iam e de que nacionalidade. O turismo faz-lhes falta e querem preservá-lo”, explica.

Ruthia tinha o mesmo receio quando, mais tarde, viajou para a Turquia, numa rota por Istambul, Tróia, Izmir, Pamukkale, onde tem o castelo de algodão, e Capadócia, onde “se fazem os voos de balão”, mas os ambientes com que se deparou foram outros. “Vi de tudo. Vi mulheres completamente tapadas, quase sem se verem os olhos, e vi o contrário: raparigas sozinhas, em viagem, de calções, sem grandes problemas”, retrata.

Nessa viagem, teve a companhia do filho, Pedro, que, aos 14 anos, lhe dá um “olhar novo” sobre lugares que já conhece: assim aconteceu em Milão, em Paris ou em Madrid, onde reuniu as visitas a museus de arte, como o Prado e o Rainha Sofia, algo de que “gosta muito”, e atividades lúdicas, como o indoor skydiving ou a visita ao Santiago Bernabéu, estádio do Real Madrid.

 

Uma escultura de Buda, em Hong Kong © Ruthia Portelinha

Uma escultura de Buda, em Hong Kong © Ruthia Portelinha

 

As origens, o Japão e a “ética” de um viajante

Ao viajar com o selo da ABVP, associação de que é fundadora e que realiza o próximo encontro anual em Guimarães, o Travel Fest, no ano de 2023 – fico “muito feliz por ver que vai acontecer”, confessa -, Ruthia Portelinha tem de cumprir um “código de ética”, que prevê a divulgação explícita de artigos patrocinados e a atenção a problemas sociais e ambientais, mesmo que os destinos sejam “lindos ou muito badalados”.

“Em muitos destinos do sudeste da Ásia, que agora começam a despertar para a questão de se proibir o plástico. O lixo é deitado ao chão, a chuva leva-o para o mar e depois o mar leva o lixo para todo o lado”, especifica. Mesmo na Costa do Marfim, o lixo é comum nas praias, a não ser pertençam a hotéis ou resorts. E há “sítios paradisíacos” que encobrem “trabalhadores de turismo em condições indignas”, outra circunstância que merece olhar crítico. “É preciso olhar os destinos para além do óbvio. Tentamos incutir isso aos nossos membros”, afirma.

Esse cuidado articula-se à experiência que já leva como viajante. Mas há muito mais para conhecer; afinal conheceu cerca de 30 entre mais de 190 países. Quando olha para o que resta, o Japão é um destino que sobressai; a razão é “o contraste entre tradição e tecnologia”. “Parece-me algo de muito diferente em termos culturais. Infelizmente, é um destino muito caro”, frisa.

O outro, ainda mais prioritário, é a Namíbia: “Tinha viagem marcada para 2020, mas não a fiz por causa da pandemia. Preciso de voltar ao país onde nasci”.

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