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“Esta democracia dá progressão de carreira partidária e clientelismos”

Redação
Sociedade \ sexta-feira, março 25, 2022
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Fundadora da Desincoop, cooperativa voltada para a ação no campo social, Luísa Oliveira fala das disparidades no usufruto dos direitos humanos, da desilusão com a política e dos perigos das crises.

* Esser Jorge Silva e José Luís Ribeiro

 

Mulher de armas, convicta e determinada, Luísa Oliveira, vimaranense de 62 anos, é a presidente da Desincoop, uma cooperativa que atua no âmbito do Desenvolvimento Económico, Social e Cultural. Já trabalhou em mais de uma centena de projetos para jovens, entre outros no âmbito dos direitos humanos.

 

Como surgiu a predisposição para participar em projetos comunitários de índole social?

Foi um processo natural. Tive o exemplo do meu pai, sempre ligado ao associativismo, muito atento e crítico em relação a problemas sociais, ao desenvolvimento económico do país e da região, ao tipo de decisões políticas que não tinham em conta os interesses da mesma. Seguia a sua atividade, lia e dava opinião sobre o que ele escrevia. Também fui “arrastada”, era eu uma miúda, para a manifestação, do que viria a ser a Unidade Vimaranense. Há factos que marcam.

 

Foi no contexto familiar …

A minha mãe é voluntária há muitas décadas e, ainda antes de o ser formalmente, era também muito ativa sempre que havia alguém em situação de injustiça ou fragilidade. Uma das recordações que guardo, que na altura me fazia confusão, era da enorme regularidade com que doava sangue, o que já lhe foi reconhecido publicamente.

 

Verdadeira educação para a cidadania?

Em nossa casa sempre se discutiu tudo, mesmo quando havia a recomendação de que não se podia contar a ninguém. Algo que só percebi na manhã do dia 25 de abril e nos dias seguintes, em que a euforia do meu pai não condizia com a dor que a família estava a viver. Os meus tios faleceram a 21 de abril, o dia 25 seria o meu primeiro dia de aulas após esses dias trágicos. 

Depois surgiu o Padre Miguel Ângelo e a dinâmica que ele criou nos seus alunos. Foi com resistência que comecei a frequentar as suas aulas, mas, depois, nunca mais faltei. Na nossa ida a Taizé, em 1977, a decisão estava tomada, já há muito que sabia que era por aí que queria ir, sobretudo, depois de ler o livro “Enterrem-me com as botas”.

 

Quais as áreas dos direitos humanos em que mais intervém?

As questões das pessoas com deficiência no início da minha carreira profissional deixaram um vínculo muito forte. Aos 18 anos fui madrinha de uma menina com síndrome de Down e percebi que o seu futuro e o dos seus pais iria ser muito duro. Essa consciência tornou-se mais forte durante o processo de encerramento do Lar da Senhora da Hora, uma estrutura que pertencia à psiquiatria, onde estagiei e tive o meu primeiro emprego. Durante algum tempo, mesmo já não trabalhando nessa área, mantive-me ligada a redes de pais com quem fiz formação e que representei em algumas lutas.

 

Por essa altura foi convidada para o Núcleo de Guimarães da UNICEF ?

Quando voltei a trabalhar como assistente social, já em Guimarães, julgo que o meu interesse por estas questões levou a esse convite. Nesse período, as questões das mulheres ganharam um maior peso nos meus interesses e passei também a colaborar com a Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres, hoje CIG. Acompanhei a Prof. Luísa Ferreira da Silva e a Dra. Ana Maria Braga em diversas iniciativas como o lançamento, em Guimarães, do livro “Entre Marido e Mulher alguém meta a colher” e um colóquio sobre a Conferência de Pequim e a situação das mulheres em Portugal.

 

Mas não se ficou por aí …

Ainda nessa fase, o interesse pelas minorias levou-me de novo à Universidade e aos projetos de investigação. A minha participação no projeto Romeurope, sobre a saúde das comunidades ciganas na Europa, deu origem ao convite para participar no grupo de trabalho sobre Direitos Humanos dos Médicos do Mundo Internacional, no âmbito do qual apresentamos propostas às Nações Unidas sobre proteção da população civil em tempo de guerra. Todas estas áreas têm estado, desde a década de 90, presentes nos projetos em que participo.

 

Que competências são necessárias para trabalhar nessas áreas?

A primeira é a curiosidade. Nunca me contentei com as respostas que me davam, tentava sempre saber se havia outras respostas. Na vida académica não me fiquei pelas orientações dos professores, deambulei sempre por outras fontes e, como tive a oportunidade de praticar línguas estrangeiras, comecei muito cedo a ler autores que, na época, não estavam traduzidos. Depois há aquelas competências que não se aprendem nos livros nem na formação académica.

 

Como por exemplo?

Trabalhei numa empresa da família e tive que lidar com a tensão dos prazos e com o rigor das tarefas. Assumir os riscos das decisões, lidar com pessoas - com as suas estratégias e interesses pessoais - e não perder o foco. Mas as competências também se treinam e tive dirigentes muito frontais que me ajudaram a ultrapassar o medo de falar em público e de me expor, que me ensinaram técnicas, me deram ferramentas que qualquer um pode utilizar.

 

“Bastou um vírus e as prioridades foram todas alteradas. Novos problemas surgiram e outros agravaram-se. Outros adiaram-se”

 

Para haver trabalho na área dos direitos humanos tem de haver, forçosamente, geografias de direitos desumanos. É assim?

As desigualdades têm geografias. O conceito de direitos humanos, com o qual lidamos e que está na base do Serviço Social, é um conceito relativamente recente, que tem evoluído. Nas últimas décadas observamos quanto os direitos de alguns acabaram por violar os direitos de outros. O conflito Israel/Palestina é um exemplo, entre tantos. A hipocrisia do mundo ocidental na ajuda a países pobres, encobre a exploração e a degradação das condições de vida, que os mesmos países infligem a esses povos ... Costumo perguntar aos jovens que reclamam pela última versão dos telemóveis: sabem quantas crianças com os mesmos direitos que vocês, perdem a sua infância e a sua saúde para extraírem o cobalto que é usado numa bateria que, ao fim de pouquíssimos anos, será lixo?

 

A dádiva conforta mais o espírito de quem dá ou de quem recebe? 

Sempre gostei de dar prendas, de ver a surpresa e a alegria nos outros. Dar a esse nível é uma forma de não morrermos, é uma expressão do nosso amor. As minhas filhas ainda hoje referem pequenas prendas, como os marcadores de livros que lhes comprava no estrangeiro. Tem a ver com o significado que colocamos no que damos e que esperamos seja significativo para quem recebe.

 

Mais do que dar e socorrer, a guerra na Ucrânia parece ter sido oportunidade para a afirmação pública de solidariedade. Sentiu isso ou esta afirmação é manifestamente exagerada?

Todos os dias me surpreendo e me regozijo com todas as manifestações e acredito que são genuínas. É um sinal de esperança.

 

Falemos mais concretamente de Guimarães: o concelho transitou da indústria para os serviços. Mas há muita gente em “serviços” básicos. Essa mudança não fez aumentar a perceção de pobreza em Guimarães?

O maior acesso aos serviços básicos deu uma maior visibilidade à pobreza. Esses serviços são importantes, mas ainda não são suficientes. Existem problemas graves, sobretudo, quando lidamos com situações que tendem a ter cada vez maior expressão, como o envelhecimento da população e as doenças que a acompanham. O mesmo se passa com alguns tipos de deficiência. Eu sou a favor de uma escola inclusiva, desde que essa escola proporcione um desenvolvimento de qualidade e não seja um depósito.

 

Quem são as pessoas que necessitam de apoio?

Em primeiro lugar as que estão mais isoladas, mais esquecidas. Provavelmente nem todas estarão sinalizadas. O Município tem um Plano de Desenvolvimento Social que caracteriza as necessidades e identifica medidas. Estes instrumentos devem ser dinâmicos. Olhemos para os últimos dois anos: bastou um vírus e as prioridades foram todas alteradas. Novos problemas surgiram e outros agravaram-se. Outros adiaram-se.

 

Estão identificadas na região questões de direitos humanos em que seja necessário intervir?

Certamente. As crises propiciam novas formas de violência no seio das famílias, exploração da mão-de-obra, falta de alojamento condigno, mais dificuldades no acesso a serviços…

 

 

Foi vereadora da Câmara Municipal de Guimarães e, em 2006, defendeu que a autarquia deveria investir mais no sector da economia social para gerar emprego, em parceria com outras entidades. Isso aconteceu?

Hoje há mais organizações a intervir no concelho, mas não tenho informação sobre se o seu aparecimento se deve, ou não, a um impulso do Município. O concelho viveu períodos de forte desemprego e o que na altura pretendia transmitir - e ainda hoje acredito – é que uma resposta possível era o apoio à criação e ao desenvolvimento de respostas inovadoras. Julgo que a Câmara pode fazer mais e deve respeitar quem no terreno procura a sustentabilidade das suas organizações e o esforço tremendo que é feito para evitar a subsidiodependência.

 

Enquanto ex-vereadora e “agente social” como caracteriza o apoio social prestado pela Câmara Municipal de Guimarães?

Tem aumentado consideravelmente o apoio concedido às organizações no terreno. O que sinto, enquanto dirigente, é que não há uma preocupação em conhecer o que fazemos no quotidiano, o que leva a julgamentos e decisões com um preço enorme.

 

Foi fundadora e é Presidente da Desincoop - Cooperativa de Desenvolvimento Económico, Social e Cultural. É fácil trabalhar estas áreas de intervenção em Guimarães?

Nem sempre. Na Desincoop temos uma preocupação enorme em nos mantermos fiéis a um conjunto de valores e de princípios e não abdicamos daquilo que tem contribuído para a construção da nossa identidade. Isso não tem preço e é o que nos move todos os dias, nos faz abdicar de muito tempo junto da família, de alguma tranquilidade e segurança.

 

Depois de ter sido vereadora abandonou a política. Ficou desiludida?

Não abandonei a política. Continuo a trabalhar para criar espírito critico nos mais jovens, sensibilizá-los para as grandes causas que terão forte impacto nas suas vidas, para a importância de terem voz nas decisões que os afetam e tento proporcionar o contacto com pessoas de referência que possam servir de modelo e de incentivo.

Há muito que tinha percebido que ser vereadora na oposição estava longe do que eu entendo que deve ser a intervenção de um eleito. Mesmo que o tenham sido com poucos votos, há eleitos que têm uma grande e valiosa capacidade de intervenção. Contudo, a participação resume-se ao cumprimento de formalidades e isso é uma injustiça democrática. A oposição era chamada a pronunciar-se sobre documentos nos quais não tinha participação, nem lhe eram pedidos contributos.

 

A política partidária …

Não me revejo nas lutas partidárias. A partir do momento em que somos eleitos a nossa missão deveria ser servir a comunidade, contribuindo com a diversidade de olhares e conhecimentos.

Gostaria de transmitir aos jovens uma experiência diferente, mas … não me dá prazer exprimir este desencanto com esta democracia que abre lugar a uma progressão de carreira partidária, clientelismos e submissão. Tenho esperança no futuro, acredito que há muitas formas de termos voz, mantendo-nos livres.

 

Como avalia o papel da igreja católica, nomeadamente em Guimarães, na resolução dos problemas de natureza social? 

A Igreja Católica sofre do mesmo problema de ausência de participação. Historicamente muitas das respostas sociais mais estruturadas estão ligadas à Igreja Católica que também tem desenvolvido, por exemplo, através do escutismo, um trabalho notável. O seu papel é e deve ser o de um ator social que mobiliza. E nesse aspeto a proximidade é uma mais-valia importante. Eu continuo a ver na Igreja Católica uma função importante como instrumento de ética, de denúncia e de justiça social, matrizes inquestionáveis da sua intervenção.

 

Existe alguma figura da Igreja Católica que mais a tenha marcado e tenha influenciado o seu quotidiano?

O Papa João Paulo II pelo papel mobilizador junto dos jovens, pelas peregrinações que protagonizou, foi o líder que precisamos, que vai ter com as pessoas, que sai da sua zona de conforto. Estava em Roma quando faleceu, em abril de 2005, foi um dos momentos decisivos da minha vida. Após essa viagem regressei a Guimarães, trouxe a minha experiência para servir a minha comunidade, criei a Desincoop um mês depois. 

 

5 RESPOSTAS RÁPIDAS
  1. Sugestão gastronómica? Cozido à portuguesa, de preferência as sobras que sabem sempre melhor.
  2. Que livro está a ler? Vários, nunca leio um livro de cada vez! “Niketche. uma história de poligamia e “Non violent communication” são os dois que tenho mais adiantados porque tirei uns dias de férias.
  3. A música que não lhe sai da cabeça? Endless Love foi a minha música num determinado momento e tocou-me ouvir Zelensky e a esposa tocarem e cantarem juntos
  4. Um filme de referência? A Lista de Schindler.
  5. Passatempo preferido? Caminhar na natureza.

 

[Conteúdo produzido pelo Jornal O Conquistador, publicado em parceria com o Jornal de Guimarães. Entrevista da edição de março de 2022 do Jornal O Conquistador].

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