Festivais Gil Vicente: é na ideia de fim que está a raiz do novo começo
Os Festivais Gil Vicente aproximam-se com a promessa de uma viagem que busca as várias ideias de fim, mas também as várias possibilidades de “novos começos”, sugeriu o diretor artístico Rui Torrinha, durante a apresentação da 33.ª edição do evento, decorrida nesta tarde de quarta-feira, no Círculo de Arte e Recreio (CAR), entidade parceira da Oficina na organização.
Essa linha conceptual ancora a reflexão sobre temas deste tempo como a emancipação da mulher, o futuro da democracia e o excesso de informação, vertidos nas seis peças que compõem o cartaz, três delas em estreia absoluta. Cancelados em 2020, devido à pandemia, os Festivais regressam nas duas primeiras semanas de junho, com espetáculos entre quarta e sexta-feira que aproveitam os feriados pelo meio, repartindo-se entre o Centro Cultural Vila Flor e o Centro Internacional de Artes José de Guimarães, sempre às 19h30.
A abertura cabe assim à companhia lisboeta Sillyseason, que, a 02 de junho, apresenta Fora de Campo, uma obra que desafia o espetador a “focar-se no maior ponto de interesse” a partir dos três cenários que vai encontrar: o de uma biblioteca, o de uma casa de banho e o de um bosque. Inspirada na criação de Henrik Ibsen, dramaturgo norueguês do século XIX, a peça discorre sobre a emancipação da mulher e é “controversa”, admite Rui Torrinha.
É no feriado de 03 de junho que se apresenta em Guimarães a primeira estreia absoluta dos Festivais Gil Vicente; Marco Mendonça, Eduardo Molina e José Pedro Leal criaram Cordyceps, um espetáculo que parte da ideia de “um fungo que afetava um inseto e o imobilizava” para explorar a realidade que se espera caso o fungo cresça. Para o diretor artístico dos Festivais, esta é uma “peça profética”, que retrata como pode ser “o último dia de uma democracia”, anulando-se a “cultura” e o “pensamento crítico” daí em diante.
Os autores de Cordyceps são os mais recentes vencedores da Bolsa 5 Sentidos para Artes Performativas, retratando uma aposta da Oficina na “nova geração do teatro e nas novas dramaturgias”, explicou Rui Torrinha. Para o programador, esse é um dos “novos começos” propostos pelos Festivais.
As outras estreias absolutas fecham cada uma das semanas: a 04 de junho, A fragilidade de estarmos juntos é uma proposta de Miguel Castro Caldas, António Alvarenga e Sónia Barbosa que reage a Catarina e a beleza de matar fascistas, de Tiago Rodrigues, e inverte a reflexão sobre democracia inscrita em Cordyceps: o drama gira em torno de um casal cuja casa é invadida por um militar para lhes dizer que a partir daquele dia vai haver democracia, detalhou Rui Torrinha. “Eles contestam porque não sabem muito bem o que os espera”, acrescentou.
A 11 de junho, o mais recente vencedor da Bolsa Amélia Rey Colaço para Teatro, Tiago Lima, apresenta Ainda estou aqui, uma encenação que fala sobre o excesso de informação. Através de um “jogo teatral” entre os intérpretes e a banda que tocará em palco, a obra explora um tempo em que “tudo é entretenimento e tudo é aborrecimento”, adiantou Rui Torrinha.
A segunda semana dos Festivais Gil Vicente conta ainda com Memorial, uma peça de Lígia Soares que sobe ao palco a 09 de junho, com “um olhar retrospetivo” que propõe uma resolução para a “toxicidade deste tempo”, e com Off, uma proposta da companhia Mala Voador em que a “ideia de fim não tem sentido e merece ser celebrada”, prosseguiu o diretor artístico do festival.
CAR quer levar teatro às pessoas
Presente na apresentação da 33.ª edição dos Festivais Gil Vicente, Fátima Alçada, assumiu que o cartaz reflete a “edição do ano passado”, entretanto cancelada, face aos “compromissos com os artistas que se quiseram honrar e cumprir”. Apesar das restrições impostas aos Festivais – os espetáculos terão 50% da lotação e tanto as oficinas de teatro, como as masterclasses não se vão realizar -, a diretora artística da Oficina mostrou-se convencida de que o evento vai decorrer “num ambiente seguro e tranquilo para todos”.
A organização do festival decorre em parceria com o CAR, e Fátima Alçada manifestou a vontade de encetar “projetos de partilha e de colaboração que resultem num festival com mais força, mais presença e mais amplitude”. Do lado do CAR, o desejo é o mesmo; a presidente Filipa Pereira lembrou que o teatro está na génese da instituição, como o atesta o Teatro de Ensaio Raúl Brandão, e pode ser um catalisador para aproximar o teatro da população.
“O CAR quer muito ser um dinamizador e um parceiro ativo no terreno. Queremos que o teatro vá muito mais ao encontro das pessoas do que as pessoas vão ao teatro”, disse. “O teatro pode ser construído com os jovens e com a população mais periférica. Mas também queremos que estes festivais possam ser cada vez mais falados, em Guimarães e fora de Guimarães”, prosseguiu.
A vereadora para a Cultura complementou a apresentação com uma reflexão do papel da cultura no pós-pandemia. Para Adelina Paula Pinto, os Festivais Gil Vicente podem convidar o espetador a uma reflexão “serena e calma” sobre a vocação transformadora da ação cultural. “A pandemia veio-nos tirar os grandes eventos. Mas provavelmente são os eventos mais pequenos que nos provocam e nos convocam para discussões atuais, como a da emancipação das mulheres e a da democracia”, sugeriu.
© Alípio Padilha