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Guimarães Jazz: a busca da superação num livro sempre aberto

Tiago Mendes Dias
Cultura \ quinta-feira, outubro 30, 2025
© Direitos reservados
A pluralidade estilística marca a 34.ª edição do festival, entre 6 e 15 de novembro. Cada cartaz exige intuição e razão, com respeito pelo legado, mas sempre à procura do risco e da novidade.

Cada concerto do Guimarães Jazz é uma oportunidade de usufruto de uma linguagem artística que se popularizou no século XX, adquirindo novas roupagens com o passar do tempo. Mas não só. Para Ivo Martins, é barómetro do caminho que está a ser trilhado e do que pode eventualmente ser corrigido. O programador do festival desde 1996 vinca, em conversa com o Jornal de Guimarães, que a experiência lhe traz maior responsabilidade e crê que o espetáculo de Ambrose Akinmusire, no ano passado, foi o concerto de uma década; a tal superação que “abriu ainda mais o livro” do festival, que regressa para a 34.ª edição, com 12 concertos.

 

No final do Guimarães Jazz de 2023, disse ao Jornal de Guimarães que o público estava "sedento de coisas boas", no rescaldo da edição, marcada pela forte afluência aos espetáculos. Na antecâmara da edição de 2025, a expetativa também é a de um público sedento pelo que aí vem?

Não sei se a procura de bilhetes é um sintoma, mas há mais procura em relação ao ano passado. Mas isso não é o mais relevante. É uma variável, mas não é tudo. Procuramos estabelecer um cartaz equilibrado, com músicos de diversas gerações, com diversas fórmulas musicais, músicos com experiências distintas, parcerias com associações de músicos ou instituições importantes. São formas de integrar o festival numa cena jazzística. O festival não tem decrescido, antes pelo contrário. São 34 edições, e muitas vezes estas coisas sofrem com o desgaste do tempo. Por outro lado, o evento está testado. Estamos muito rodados em termos de máquina organizacional. Temos uma experiência muito grande. Tudo isso facilita o nosso trabalho. Estamos sempre a gerir possibilidades.

 

Mencionou essa diversidade de programação: temos artistas que regressam, artistas que vêm pela primeira vez, como o Fred Hersch Trio, um dos nomes mais reconhecidos da cena nacional, a Maria João, artistas na linha mais clássica e outros com abordagens experimentais, juventude e experiência. Que linhas nortearam a programação deste ano?

É um bocado intuitivo. Quando acabamos um festival, já temos muitas ideias. As ideias, por vezes, surgem nos concertos. Depois, há uma relação entre projetar e praticar. Ao vermos os concertos, percebemos o que excedeu as expetativas, o que não excedeu, o que cumpriu, o que não cumpriu, o que foi para além do que tínhamos imaginado. Esses fatores nem sempre têm a ver com a qualidade dos músicos. Têm a ver com cada momento. Os músicos são pessoas, têm os seus problemas e podem estar mais disponíveis para tocar num determinado dia e menos noutro. Estão em digressões, por vezes mais cansados. É impossível calcular o que vai acontecer. A ver os concertos é que podemos projetar edições futuras. Há processos de correção extremamente pormenorizados e invisíveis. Esta relação de projetar, antecipar e fazer dá-nos informações úteis para dar passos em frente. É tudo ano a ano. Não há uma ideia de futuro a longo prazo. Há a ideia de ir caminhando.

 

"Há intuição e razão para estabelecermos um equilíbrio e fazermos algo com coerência. A ideia do festival está praticamente fechada em janeiro ou até no ano anterior. Já temos uma ideia de festival para o próximo ano [2026]"

 

Quando parte para a programação de cada Guimarães Jazz, o arranque assemelha-se a uma folha em branco ou carrega, desde o primeiro esboço, um legado com mais de 30 anos?

É um misto de intuição e de razão. Não queremos repetir músicos, mas há músicos que nos obrigam a repetir pelas suas qualidades e pela sua importância. Não há tantos músicos assim que nos levem a uma obsessão de não repetir. Não podemos é mostrar permanentemente os mesmos artistas. Estamos atentos ao que os outros festivais e as outras salas de espetáculos do país fazem. Não nos adianta muito replicar nomes e projetos que já foram vistos, observados e sentidos. Há intuição e razão para estabelecermos um equilíbrio e fazermos algo com coerência. A ideia do festival está praticamente fechada em janeiro ou até no ano anterior. Já temos uma ideia de festival para o próximo ano [2026]. Temos datas fixas e os músicos têm de ser colocados nas datas. Não podemos adaptar-nos à disponibilidade dos músicos. Seria mais fácil construir um festival assim, em que diríamos as datas aos músicos, e os músicos adaptavam-se a nós. Temos de nos adaptar às digressões dos músicos. Isso dificulta o nosso trabalho.

 

Além da sensibilidade artística, a programação também tem em conta os constrangimentos logísticos...

Muitas vezes, não sabemos o que vai acontecer. Temos conseguido colocar os bilhetes à venda em finais de julho ou princípios de agosto. Para o cartaz ser publicitado em julho ou agosto, temos de ter o festival fechado em março. Depois há todo um processo burocrático e contratual. Já há contactos feitos para 2026. Se tivéssemos de colocar cá fora o cartaz um mês antes do festival, era uma coisa. Divulgar o cartaz quatro meses antes do festival é algo distinto. Isso também marca o festival. As pessoas aprendem a conviver com o cartaz. Hoje é fácil as pessoas conhecerem o que aqui vem. Já não acredito que as pessoas venham aos concertos às cegas. Na Internet e nas redes sociais, está lá tudo. Conseguimos ver concertos completos de quem vem a Guimarães. No passado, era muito mais difícil.

 

Em 2025, Ivo Martins programa o festival pela 30.ª vez © Miguel Estima

Em 2025, Ivo Martins programa o festival pela 30.ª vez © Miguel Estima

 

Esta edição reúne várias correntes do jazz. Dentro dos espetáculos mais experimentais, voltamos a ter exemplos de cruzamento com outras linguagens artísticas?

Sim. Neste ano, a Associação Porta-Jazz faz um projeto com um poeta, o Vasco Gato. Já fizemos um espetáculo de homenagem à Alice Coltrane com spoken word. Já fizemos um projeto muito interessante de cruzamento de fórmulas musicais com o Ambrose Akinmusire, em que tinha um quarteto de cordas, um rapper e um quarteto de jazz. Neste ano, trabalhamos a ideia de misturas de géneros. Quando apresentamos o Immanuel Wilkins com três cantoras para fazer um projeto baseado no blues, no gospel e na música afro-americana, importantíssima no contexto do jazz, queremos apontar caminho para outras coisas que não são exclusivamente jazzísticas. Estamos sempre a procurar confluências entre formatos diferentes.

 

Ainda é tão entusiasmante programar o Guimarães Jazz como na primeira vez em que o fez, em 1996?

É diferente. Nos primeiros anos, havia mais insegurança e falta de passado. Vivíamos muito o momento. Pouco havia para trás que nos desse apoio e suporte. Havia muito mais risco e receio de falhar. De qualquer maneira, a gente fracassa sempre, por mais que tente. Isso faz parte do processo e humaniza-nos. Torna-nos mais humildes. Precisamos de ser muito humildes aqui. Hoje é diferente, porque há toda uma história atrás, todo um passado, toda uma certeza que se foi adquirindo. Essas questões que, no princípio, eram muito importantes para nós. Os fantasmas estão mais diluídos. Temos uma grande responsabilidade perante tudo isto que fizemos e está a acontecer. Temos de ter capacidade e competência para manter isto, para acreditar nisto e para continuar a dar o melhor que soubermos às pessoas. Temos uma espécie de mochila ética em cima de nós que nos pressiona e nos obriga a ser competentes, rigorosos, disciplinados, atentos, informados. Quando fazemos isto há mais de 30 anos, temos de ter alguma experiência, obviamente.

 

"Quantas vezes os artistas fracassaram completamente no seu tempo e foram redimidos 30, 40, 100 ou 200 anos depois. Se se vulgariza tudo, não criamos condições para haver superação"

 

Em tantos anos de Guimarães Jazz, algum concerto que o marcou especialmente, onde sentiu que tudo deu certo?

Há muitos. Isto é uma construção que se faz passo a passo. Todo o processo é uma espécie de cebola, com várias camadas. A cada ano, acrescentamos mais uma camada. Há um entrelaçamento entre experiência, espontaneidade, reflexão e vontade de fazer. Há uma grande responsabilidade. Ao escolhermos, podemos deixar de fora coisas boas e falhar. Um bom concerto é uma espécie de síntese. Parece que aquilo que andamos a fazer durante anos resultou em algo de forte e diferente. Justifica, no fundo, aquilo que fazemos. O concerto do Ambrose Akinmusire no ano passado foi charneira. Depois desse concerto, o livro abriu ainda mais. Gostamos muito mais de abrir livros do que de os fechar. Tinha um quarteto de jazz, um quarteto de cordas e um rapper, tudo muito bem estruturado. Os territórios misturavam-se, mas não em demasia. A fragilidade das cordas, a potência do quarteto de jazz e o discurso do rapper são mundos difíceis de conciliar em palco. Soube gerir isso muito bem, sem cair na confusão auditiva. Deu espaço para cada um desses mundos estarem vivos. Foi um concerto incrível, com uma simbologia por detrás, que envolve processos políticos, sociais e económicos dos tempos de hoje, com a eleição de Trump nos Estados Unidos e as guerras na Ucrânia e na Palestina. As pessoas estavam sensíveis a essas questões e colocaram naquele concerto muitas das suas formas de sentir, de protestar, de negar, de recusar. Foi altamente explosivo. Nem sempre acontece. No final, dizia às pessoas que aquele concerto vale uma década. Aquele concerto só adquire a potência que tem pelo passado de 33 anos do Guimarães Jazz.

 

Qual é o papel do jazz e deste festival no tempo em que vivemos?

A beleza da música, da cultura e da arte é a possibilidade de nós, de formas diversas, e respeitando a idiossincrasia de cada um, nos expressarmos livremente e colocarmos nas coisas que escutamos e vemos as nossas perspetivas sobre o mundo, as nossas formas de sentir, de protestar e de recusar. Isso faz-se através da música e de outros processos culturais. Isso é muito bonito. Por isso, tem de se ter muita cautela quando se fala da importância da cultura e se menorizam certos níveis de exigência em prol da aparente consensualidade. A grande música, a grande literatura, o grande teatro, a grande orquestra, o grande cinema, as grandes artes plásticas têm muitas vezes de falhar naquele tempo para serem redimidas 100 ou 200 anos depois. Quantas vezes os artistas fracassaram completamente no seu tempo e foram redimidos 30, 40, 100 ou 200 anos depois. Se se vulgariza tudo, não criamos condições para haver superação. A arte, na minha ótica, faz-se por processos de superação. Tenho respeito por todas as pessoas que trabalham de forma disciplinada e dedicada, dentro dos seus níveis de exigência, mas uma coisa é ser. Outra coisa é superar. Arriscar, ir para o lado desconhecido e assumir a possibilidade de fracassar é outra coisa. 

 

O Guimarães Jazz é uma marca reconhecida em Guimarães. Mesmo quem não acompanha a cena musical, sabe que o evento é reputado e procurado por espetadores de outros lugares. As plateias, por norma, refletem um acompanhamento por parte do público local, em coexistência com os espetadores que se deslocam propositadamente para os concertos?

Como não sou de Guimarães, nem sempre sei quem são as pessoas de Guimarães que assistem aos concertos. As pessoas da equipa que são de Guimarães costumam mencionar as pessoas que vêm de fora: "Muitos espanhóis. Gente de todo o país". Ouço dizer isso. "Neste ano, há mais jovens", ouço dizer noutra edição. Nos 15 dias de festival, estou completamente fora dessa dimensão. Mas sabemos que a hotelaria costuma ficar lotada nesta altura, não só com os músicos, mas com espetadores oriundos de vários pontos do país, da Galiza e até de outras nacionalidades.

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