Há um relógio que não dá horas e uma "relíquia" adormecida com respostas
Vimaranenses e forasteiros mais atentos já devem ter dado por eles. No topo da torre da basílica de São Pedro, em pleno Largo do Toural, há quatro óculos preenchidos com quatro mostradores voltados para os quatro pontos cardeais. Pontuam o tempo, norteiam vidas – pelo menos três daqueles quatro círculos continuam a levar a cabo a tarefa. E o outro? Está parado, em repouso com os dois ponteiros a indicarem sempre a mesma hora: 10:47. Está assim desde o verão de 2018. Para aqui chegar, há que conhecer outros capítulos de uma história que envolve “uma relíquia”.
É que dentro daquela torre está “uma cirurgia industrial absolutamente extraordinária”, salienta o historiador António Amaro das Neves. “O principal valor é o relógio em si, aquela máquina tem uma dimensão histórica”, aponta. Esse mecanismo – um relógio-carrilhão – é propriedade da Câmara Municipal de Guimarães e foi colocado ali em 1938. Agora, retirá-lo é o maior problema. Segundo a Irmandade de São Pedro, a reparação do mostrador que não funciona só é possível após a máquina ser evacuada. E o processo pede ação lesta. “É preciso retirar [a máquina], uma vez que o piso está degradado, para precaver algum problema. Há infiltrações nessa sala e o piso tem de ser reparado, algo que só é possível quando a maquinaria for retirada”, refere o capelão da basílica e vice-Juiz da Irmandade, José Silvino. Mas como se chegou até aqui? É preciso recuar mais de 80 anos.
Entra em cena um computador
O mecanismo que durante várias décadas foi responsável por dar as horas aos vimaranenses é obra de Manuel Francisco Cousinha, um fabricante conceituado que engendrou aquele que foi considerado o primeiro relógio-carrilhão em Portugal. Em tempos áureos, o relógio comandava um carrilhão de 15 sinos. “A máquina em si é fantástica, uma coisa digna de ser vista porque não existe nada assim por Portugal fora”, enquadra Amaro das Neves. O relógio que fazia funcionar um carrilhão e quatro grandes mostradores foi inaugurado nas Gualterianas de 1938, após concórdia entre o município e a Irmandade de São Pedro e Irmandade das Almas. O acordo era claro: a câmara, proprietária do equipamento, assegurava o seu funcionamento, as revisões e reparações de que necessitasse, enquanto a Irmandade cedia o espaço. A resolução foi selada numa escritura de protocolo “perpétuo”. “Fez-se questão de elencar um conjunto de condições a respeitar, sobretudo no que se refere ao uso dos sinos, trabalho do sineiro e conservação do espaço, condições que estão mencionadas num livro de atas”, resume Olga Maria da Costa, coautora da obra "Uma viagem no tempo - A história de uma Irmandade".
O Toural recebia, assim, um relógio há muito esperado, até porque “havia necessidade de algo que marcasse as horas e se ouvisse na cidade toda” – as horas eram dadas ao som de fragmentos do hino da cidade de Guimarães, pontua António Amaro das Neves. As horas foram sendo dadas e o relógio ficou ao cuidado de Artur Silva, o zelador. E foi o próprio que, segundo uma notícia do Jornal de Notícias datada de maio de 2002, testemunhou, sem qualquer aviso, a troca do aparelho mecânico por um computador. “Há um mês, quando ia dar corda ao relógio, encontrei-o todo partido. Os cabos dos pesos estavam cortados, os martelos inutilizados, no lixo, e os tirantes de toque dos sinos desligados. Sou o responsável do relógio e ninguém me disse nada”, indicava o zelador ao jornalista Armindo Cachada.
“Efetivamente, [a troca] deu-se sem que a pessoa responsável à data pela irmandade tivesse feito qualquer comunicação ao município ou ao zelador”, explica Olga Maria da Costa. A operação de substituição foi feita por uma mesa anterior. Nessa altura, foram acenadas razões de segurança para justificar a intervenção. O mecanismo continua, no entanto, na torre da Basílica de São Pedro e, de acordo com a doutorada e professora, a atual mesa tem encetado contactos com a Câmara Municipal de Guimarães (CMG) no sentido de encontrar uma solução “para a questão do relógio”. “Esta nova mesa que entrou já há uns anos tentou pôr as coisas no sítio, está a tentar arrumar a casa”, enquadra; e isso inclui o relógio. “Temos feito obras de beneficiação e o padre José Silvino tem esta vontade de querer fazer mais, de melhorar. Temos tentado dialogar com a CMG, temos um chorrilho de e-mails trocados para tentar chegar a uma solução. A CMG vai protelando a retirada da máquina e o espaço está completamente podre, as tábuas estão podres, pode acontecer uma desgraça”
Questionada pelo Jornal de Guimarães, a CMG explica, por escrito, que “os serviços competentes estão a desenvolver o procedimento necessário à retirada do mecanismo do relógio existente”, mas não aponta para datas em que isso possa acontecer.
Desmanchar para trabalhar
A Boa Construtora - Fábrica Nacional de Relógios Monumentais, empresa de Manuel Francisco Cousinha, já não existe. Mas a Cousinha, criada em 1999, deu continuidade ao trabalho do relojoeiro. Ao leme está o neto, Luís Cousinha, que continua o trabalho do avô. No sítio da internet do fabricante de Almada ainda são visíveis referências à empreitada de Guimarães: “O primeiro relógio com carrilhão, que construiu, foi o que lhe encomendaram para a basílica de São Pedro, de Guimarães. Toca o ‘Avé’ dos Pastorinhos de Fátima, a ‘Canção das Ceifeiras’ e o hino da cidade. Foi premiado na Grande Exposição Industrial Portuguesa, de 1932”.
A centenas de quilómetros de distância, Luís vê a máquina que repousa na torre através de uma fotografia – “É irmão de um que está em Castelo Branco”, assinala. Não demora a dar o veredicto: “Para sair dali, tem de ser todo desmanchado, peça por peça”. O restauro envolve outra logística. Não basta desintegrar, é necessário fotografar, etiquetar e levar para oficina. Seriam precisos, estima o relojoeiro, “cerca de seis meses” para trabalhar a máquina e desembolsar “vários milhares” de euros para o restauro.
O estado atual da maquinaria não se conhece. Até porque aceder ao espaço onde está “hospedada” é quase impossível – uma futura retirada só será possível com a ajuda de uma grua. Segundo António Amaro das Neves, este esquecimento é sintomático de “ignorância” relativamente à “história do património”. Não só a Irmandade ignorou “que o relógio não era sua propriedade” quando fez a substituição e optou por “modernizar” o sistema, em 2001, mas também o município descurou o “valor patrimonial” do relógio mecânico. “Naquela altura, a câmara, quando foi alertada para o que se estava a passar, não deu a importância que devia ter dado. Não tiveram a noção clara do valor patrimonial e tecnológico muito relevante em causa. Como o relógio está meio escondido, pouca gente o viu por estar lá na torre, acho que não têm noção da importância”, sublinha.