João Felgueiras, padre que apoiou independência de Timor, celebra 100 anos
As portas da Casa da Seara, nas Caldas das Taipas, abrem-se e a máquina do tempo recua até 09 de junho de 1921, dia do nascimento de João, o mais novo dos irmãos Felgueiras. “Ele foi o único entre os irmãos a nascer aqui. O pai trabalhava como notário em Vizela e os irmãos nasceram lá”, diz Manuel Felgueiras, filho de António, o mais velho dos irmãos.
João ingressou na Companhia de Jesus em 1942, para o então Noviciado da Costa, onde está hoje a pousada de Santa Marinha, estudou em Espanha e foi ordenado sacerdote em 30 de julho de 1950, tendo celebrado a sua Missa Nova duas semanas depois, a 13 de agosto de 1950, na vila onde nasceu. Não era algo novo na família: o irmão José Maria era padre da Congregação do Espírito Santo e três das irmãs seguiram a vida religiosa.
Após duas décadas de trabalho pelo país, nas casas jesuítas de Lisboa, de Cernache, de Braga e de Santo Tirso, surgiu, em 1971, a missão que iria alterar a sua vida e definir o seu legado: a ida para Timor-Leste e o consequente apoio à população na luta pela independência.
Essa posição, merecedora da confiança e do respeito dos timorenses, caminhou de mãos dadas com o ênfase dado à educação de jovens e à vocação de pregador, “serena, mas firme”, diz o sobrinho ao Jornal de Guimarães. “Ele vivia o sacerdócio com serenidade, sem ser exaltado. Foi sempre muito calmo, mas evidenciava uma profundidade e uma firmeza que o ajudou a enfrentar aquele terror e aquela ocupação indonésia”, descreve.
“Um refúgio, um medicamento, umas horas de sono”
Na memória do irmão de Manuel, Luís Felgueiras, ainda persiste a data em que o tio pisou pela primeira vez solo timorense: foi a 21 de janeiro de 1971, meses depois da morte da sua mãe, recorda ao Jornal de Guimarães. Naquela ilha de “clima tropical”, do “outro lado do mundo”, o jesuíta encontrou “um país profundamente católico” e dedicou-se com “entusiasmo e empenho” à instrução dos jovens seminaristas, num ambiente sem “dificuldades de maior” até 1975, descreve.
Com o 25 de Abril, o clima político de Timor-Leste alterou-se e a vida de João Felgueiras também; face à “passividade” das autoridades civis e militares portuguesas, que ainda hoje gera ressentimento entre as “gerações de mais idade”, avisa Luís Felgueiras, os timorenses envolveram-se numa “curta, mas violenta” guerra civil com três fações: a independentista FRETILIN, a pró-Indonésia APODETI e a União Democrática Timorense, que defendia a “manutenção da ligação com Portugal”, mas “sem especificar os termos”.
A vitória da FRETILIN, politicamente de esquerda, deu um pretexto à Indonésia de Suharto para exibir o “fantasma do comunismo” e se tornar mais agressiva nas relações diplomáticas, até invadir a parte leste da ilha de Timor em 07 de dezembro de 1975, prossegue Luís Felgueiras, hoje procurador do Tribunal da Relação de Guimarães.
Confrontado com a hostilidade da nação ocupante, que, segundo o sobrinho, desejava “ver os padres portugueses pelas costas”, e com o fecho de quase todas as escolas em língua portuguesa, à exceção do Externato de São José, João Felgueiras foi apoiando como pôde uma população contrária à ocupação, mesmo que silenciosa, à exceção dos guerrilheiros. E tinha a companhia do padre José Alves Martins nessa missão. “Tanto um como outro sempre tiveram uma atitude de grande firmeza em relação ao opressor indonésio. Defenderam aqueles que, pela calada da noite, procuravam comer ou procuravam um refúgio, um medicamento, umas horas de sono”, descreve.
Um dos episódios que marca essa “intransigência” perante o vizinho de Timor-Leste foi o ano que passou em Jacarta, capital indonésia, após ter vindo a Portugal em 1987. As autoridades adiaram as viagens na tentativa de o demover do regresso a Timor, sem sucesso, refere Manuel Felgueiras. “Venceu-os pela persistência até que conseguiu regressar à ilha”.
A relutância das Nações Unidas em enfrentar aquele que é hoje o quarto país mais populoso do mundo (cerca de 270 milhões de habitantes), com a maior comunidade muçulmana num só país e muito petróleo, não ajudou. “A questão de Timor não era agradável nos grandes fóruns internacionais. Mesmo as Nações Unidas (ONU) e as autoridades portuguesas viam o assunto como algo que atrapalhava as relações diplomáticas e os contactos. Países democráticos da Europa cediam, por vezes, aos interesses indonésios”, recorda Luís Felgueiras, que veio a trabalhar na missão de paz da ONU após o referendo favorável à independência de 1999.
Enquanto levavam a cabo o seu trabalho clandestino, enviando até mensagens para fora do país no interior de relógios de caixa, João Felgueiras e José Alves Martins só viram a opinião internacional mudar em 1992, quando o britânico Max Stahl divulgou filmagens do massacre de Santa Cruz.
Mesmo com o terror das milícias pró-indonésias que se seguiu ao referendo de 1999, obrigando João Felgueiras a fugir para as montanhas, o povo timorense ganhou definitivamente a independência em 2002, com a marca do padre enviado do Vale do Ave para o mundo.
“Pôr gasolina no carro”
Nascida e criada naquela ilha, Rosalina é irmã na missão jesuíta em Timor e tem acompanhado de perto o trabalho de João Felgueiras na comunidade. Quando recorda o processo que culminou na independência, não sabe responder se seria possível sem o padre, mas encontra de imediato a metáfora para descreve o seu papel e o do padre Martins. “O carro estava parado e eles começaram a pôr a gasolina e a consertar os travões e a direção. O carro começou a andar devagarinho. Foram os impulsionadores que forçaram os timorenses a lutar”, retrata.
Além de serem os canais entre Díli e a resistência timorense, quer no exterior do país, quer no interior, os dois sacerdotes eram também o “refúgio” para o povo “desabafar e manifestar o desgosto de não querer ficar na Indonésia”, o que abriu espaço para uma relação de “confiança”. “Sabíamos que poderíamos contar com o padre João e com o padre Martins. Com a força e a coragem dos dois, as pessoas começaram mesmo a trabalhar clandestinamente para a independência”, recorda.
Estudante do Externato de São José até 1979, Rosalina teve de ir estudar para a Indonésia, sob a “ameaça de não ter depois um emprego”, e começou a trabalhar com João Felgueiras a partir de 1989, após a morte dos pais – o pai morreu na prisão, enquanto opositor à invasão indonésia -, e enaltece a “força interior” com que o jesuíta incentivava as pessoas a trabalharem pela independência, até mesmo junto dos doentes e dos prisioneiros, enquanto capelão. Em 1999, diz ter tido o “privilégio” de o acompanhar na fuga para as montanhas.
Duas pátrias, a mesma língua
Maria Leonor é a mais jovem sobrinha-neta de João Felgueiras, com 26 anos, e as memórias da independência de Timor são “muito vagas”. Mas já se deslocou à ilha por duas vezes, embora a primeira tenha chegado para entender o porquê do tio ser tão acarinhado como é. “Impressionou-me o carinho que toda a gente tem pelo meu tio. O povo precisa mesmo dele. Quando o veem, as pessoas vão sempre atrás, pedem-lhe a bênção e querem tirar uma fotografia com ele”, descreve ao Jornal de Guimarães.
Mas essa ligação com o povo não é de estranhar, face ao conhecimento pessoal que tem do seu tio-avô. “Ele tem uma capacidade, que não sei muito bem explicar, de cativar toda e qualquer pessoa de modo muito subtil. Ele é muito aberto a todos: trata todos como iguais e faz qualquer pessoa sentir-se bem”, salienta.
João Felgueiras tem ainda “transversalidade” suficiente para chegar às pessoas crentes e às não crentes, mas também para conjugar a parte missionária da sua vida e a parte familiar. Aliás, uma das razões para manter esse contacto bem vivo passa por levar à família um país do qual já se sente cidadão. “Ele é literalmente um cidadão daquela terra. Foi-lhe dada a nacionalidade timorense que ele assume com grande orgulho. Diz-se tanto ou mais timorense do que português. Quando se lhe pergunta quem bate mais forte – Portugal ou Timor -, ele evita as respostas. Timor é certamente onde quer ficar”, confessa.
Mas João Felgueiras tem ainda mais dias para continuar a espalhar o seu testemunho de “fé, solidariedade e convicção”, como descreve o sobrinho Luís Felgueiras. Para já, a saúde continua a ajudar: apesar dos problemas auditivos que lhe causam “algumas perturbações na cabeça”, diz Rosalina, continua com uma “memória enciclopédica” e mantém a sua autonomia, mesmo com bengala.
“Todos os médicos perguntam-me quem é que, à noite, o acompanha para a casa de banho. Ninguém o acompanha; ele levanta-se da cama, vai para a casa de banho sozinho e volta sozinho. Toma banho sozinho; a gente só prepara a água, prepara a roupa, põe na casa de banho e faz tudo sozinho”, resume a irmã, sobre um homem cuja vida tem 100 anos e cujo legado terá certamente bem mais.