Maio traz uma “universidade” para pensar o mundo no “bolso” de Guimarães
O tecido universitário de Guimarães difunde-se hoje pelo campus de Azurém da Universidade do Minho, com as escolas de engenharia, ciências e ciências sociais, pelo Instituto de Design, em Couros e pelo polo das artes no renovado Teatro Jordão, para lá dos cursos técnicos superiores profissionais do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, no Avepark.
Entre 27 e 29 de maio, todavia, a cidade vai dar palco a um outro tipo de universidade, que questiona o “paradigma da alta especialização” e que busca a “troca entre saberes populares e cultura contemporânea”, entre “o arcaico e o moderno”, mostrando-se aberta a cidadãos que “pensam diferente”, académicos ou não. Essa é a Universidade de Bolso, proposta do artista e professor universitário João Sousa Cardoso.
“Tenciono fazer de Guimarães o lugar anual de encontro para uma experiência. Foi essa a minha resposta ao convite da Fátima Alçada, para fazer deste encontro um laboratório da transmissão do conhecimento no século XXI”, vincou, na conferência de imprensa de apresentação do evento.
O encenador de O bobo, peça de teatro baseada no texto de Alexandre Herculano sobre a Batalha de São Mamede, estreada em Guimarães no ano de 2006, realçou que a Universidade de Bolso quer ser uma “experiência transgeográfica e transhistórica” num tempo em que a universidade se transforma devido “às tecnologias e às instituições”. E o cartaz, repartido por oradores, por habitantes e por “observadores”, procura refletir as mutações que fervilham nos campos da arte, da antropologia e dos estudos sociais.
Os oradores serão três. Françoise Vergès é cientista política, ativista e historiadora francesa, com origem na ilha de Reunião, discursando no dia 27. Debruça-se particularmente sobre “pensamento radical negro”, “anti-imperialismo” e “feminismo decolonial” – se a descolonização tem a ver com a legitimação formal de soberania aos países africanos que eram colónias europeias, a “decolonização” está associada a leituras sociais, esclarece João Sousa Cardoso.
Seguem-se, no dia 28, o brasileiro Vladimir Safatle, filósofo e cronista na Folha de S. Paulo, que “tem trabalhado relações entre política, comunitarismo e liberdade”, e a norte-americana Mary Enoch Elizabeth Baxter, para falar sobre “exploração étnica”, “policiamento numa sociedade” e “detenções em massa”.
Artista no campo da música, do cinema e das artes visuais, Mary Baxter já foi premiada pelo seu trabalho relativo ao tratamento das mulheres negras no sistema jurídico norte-americano e foi capa do The Philadelphia Inquirer, o jornal mais conhecido da sua cidade – Filadélfia -, quando deu conta de que Thomas Eakins, reconhecido pintor norte-americano do século XIX, era um predador sexual. A partir de fotografias de menores negras, o artista foi também dado a conhecer como “uma figura do abuso sobre quem não se pode defender”.
Já os dois habitantes conectam Guimarães e o resto do mundo: são eles Svitlana Baptista, ucraniana de Dnipro que trabalhou na central nuclear de Rivne e que veio para Portugal em 1990, depois de o marido ter morrido de um cancro suscitado pela radioatividade da explosão nuclear de Chernobyl, trabalhando hoje na indústria têxtil, e Niranjan Sapkota, nepalês com família ligada ao folclore, que deixou o seu país por razões políticas e se instalou em Moreira de Cónegos, trabalhando numa empresa de fruta. Está também a tirar o doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho.
Responsáveis por acompanharem os três dias de trabalho, os observadores são Yvane Chapuis, historiadora da arte francesa que se tem debruçado principalmente sobre a dança contemporânea, António Guerreiro, professor da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, crítico literário no Expresso entre 1990 e 2013 e cronista no Público, bem como o próprio João Sousa Cardoso.
Convencido de que a edição inaugural da Universidade de Bolso pode “afirmar Guimarães como palco de novos modelos de universidade e de transmissão de experiências de saberes”, o artista frisou ainda que os três dias vão encerrar com uma “revisão crítica e autocrítica pensada a quente”, porque, a seu ver, é “assim que se pensa melhor”.
“Pensar o quotidiano”
Aberta a toda a gente, independentemente dos interessados serem ou não agentes culturais, a participação na Universidade de Bolso tem um custo diário de 20 euros ou um custo geral de 50 euros, avançou o diretor executivo da Oficina, Ricardo Teixeira Freitas. “Com a Universidade de Bolso, vamos cumprir um objetivo da Oficina: poder pensar sobre o quotidiano e sobre os problemas que vão surgindo à sociedade, verificando com que urgência vamos respondendo”, frisou.
Já o vereador municipal para a Cultura e presidente da Oficina disse que o “pensamento e a reflexão conjunta são fundamentais para uma resposta de participação ativa e de cidadania”. Paulo Lopes Silva sugeriu até que a partilha e a “transversalidade” de conhecimentos contribuem para cidadãos “mais humanos”, com reflexos até nos próprios climas de paz ou de guerra. “Se todos habitássemos numa transversalidade mais humana, a invasão russa da Ucrânia não estaria a acontecer. Alguém que está para lá da fronteira não deixa de ser o meu par, o meu próximo. Isso é importante para uma cidade que se dedica a um projeto cultural tão forte como a Oficina”, sugeriu.