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Memórias de um Velho Nicolino, por Henrique Pinto de Mesquita

Redação
Sociedade \ quinta-feira, novembro 25, 2021
© Direitos reservados
O Jornal de Guimarães vai publicar, entre domingo e sexta-feira, artigos de opinião acerca das Festas Nicolinas escritos por diferentes autores. O quinto fica a cargo de Henrique Pinto de Mesquita.

Pediram-me que escrevesse um texto sobre as minhas memórias de Comissão. Estou há trinta minutos a olhar para o computador com medo de tocar na primeira tecla. Dou um gole na cerveja e ganho balanço, começando a escrever estas memórias com plena consciência de que ficarão aquém do que vivi. Uma angústia que, por si, já é definidora da magia que é pertencer a uma comissão: a absoluta incapacidade de escrever acerca de um assunto diz muito sobre ele. Darei o melhor de mim. O Nicolino de mim.

Se começo por falar nos meus tempos de comissão, começo por falar na minha comissão. A de 2015. Dez rapazes vestidos de negro a serpentear as ruas de uma cidade como se estas fossem veias e estes fossem o seu sangue. A cidade é Guimarães. Os rapazes são o Nuno, o Diovo, o Afonso, o Pizarro, o Fonseca, o Magalhães, o Fred, o Nico e o Rui. O sangue é a Comissão.

Os dez rapazes vestidos de negro. Entrámos franzinos, penso que todos de cabelo rapado menos o Nicolau. Sabíamos para o que íamos – uns mais do que outros. No chafariz do Toural, rodeados de amigos, ex-amigos, namoradas, protonamoradas, ex-namoradas, pais, mães, primos, avôs e avós, fomos eleitos. “Está eleita a Comissão”. Lembro-me que a disputa para Presidente foi renhida: nessa tarde, institucionalmente, ganhou o Rui; Nicolinamente, todos nós e, no campo da vida, os dez rapazes vestidos de negros. Nessa tarde, em cima daquele chafariz, sob o olhar de desaprovação dos Deuses do bom-comportamento, pariu-se uma Comissão. Ou seja, pariu-se amor, amizade, alegria e irmandade. Pariram-se Nicolinas. Amor, amizade, alegria e irmandade é Nicolinas. Amor, amizade, alegria e irmandade é pertencer à Comissão.

 

Os dez rapazes vestidos de negro. Os dias foram avançado. Era outubro e as noites começavam a chegar mais cedo. Trocámos as nossas casas pela casa que a noite passou a ser. As certezas de um jantar em família pela incerteza das horas de chegada (para muitos choros abafados das nossas mães). Aprendemos o hino da cidade, sentimos calor das suas castanhas e o calor das suas gentes. Vestimos trajes a condizer com a cor do seu chão, não se tivesse tornado ele, de tão percorrido, quase que como uma extensão do próprio traje. Pertencer à Comissão é ser a cidade: o cinzento das suas ruas, os segredos dos seus becos e as histórias das suas vielas.

 

Os dez rapazes vestidos de negro. Desses dez, dois ficavam a fumar cigarros e a beber cerveja na Torre enquanto os restantes iam para peditório. O peditório começava logo pela boleia (Kika e Cristina, quantas vezes nos safaram!). Pedir dinheiro para “se fazerem as festas em honra a São Nicolau” era um mero adereço da peça principal que decorria ao lado: não ser atropelado, lanchar leitão, fugir de cães, mergulhar em piscinas de solteironas em pleno novembro (Diovo...). Conhecer os cantos à cidade e os dentes às suas gentes. Sorrisos, muito sorrisos. Insultos, alguns. Pobreza, beleza e muita, muita, folia. De capa traçada, como que pequenos Tarzans a saltar de liana em liana, lá íamos nós, a saltar de porta em porta, cantando a ladainha Nicolina. Após juntarmos trocos e ajudarmo-nos uns aos outros – “quanto tens, quanto tens!?” - voltávamos ao cinzento do centro, que, apesar da negritude do traje, enchíamos de cor com a nossa alegria. Nicolino, Infusões, Tio Júlio, Dois Arcos, Torre dos Almadas, Cano e Rua Nova. Tudo casas. Tudo cenários desta peça. Muita comida, muita bebida: como o povo gosta. Todas as noites, entre as vielas, uns a decorar oitavas, outros com medo da reunião e outros a falar com vinte raparigas diferentes no Instagram (Diovo...). Muitas vezes acabando, a altas horas, numa tasca perto de si. Sempre com vida para viver, comida para comer e bebida para beber. Pertencer à Comissão é isto: lambuzar-nos da vida.

 

Os dez rapazes vestidos de negro, que agora se vestem de branco e assaltam, com os seus amigos e em cortejo, as ruas do burgo. É tempo de Moinas: as camisas brancas acastanham-se de sujidade, as mitras desaparecem e os lenços tabaqueiros acabam molhados. Miúdas giras. Muito toque: afinado e desafinado. Muitos pais babados, percebendo que passariam outras mil noites sem dormir para poderem ver de novo a felicidade bruta na cara dos seus filhos. Abraços, lágrimas, beijos, promessas de amor, Filinto Elísios com Macieira. Tara-tara-tum. Corações a bater, pulmões a encher, caixas a rufar. Pinheiro de pé, Rui sóbrio, e a lágrima que não consegui chorar e disse ao Nuno. Roubalheiras, tentativa de ‘roubar’ um cavalo, dois a esquivarem-se para dormir no carro e o Rui quase a ser alvo de um impeachment Nicolino. Mãos dadas para as Posses, qual passo galopante de dez cavalos felizes e uma quase eletrocussão na Clarinha. Pregões recitados, qual Pavarotti Coelho Lima a deixar uma cidade ajoelhada ao seu charme. Maçãzinhas, Mãe e Pai unidos em torno de uma caixa aberta onde foi uma galinha que de lá saiu viva e deu ovos radiativos. Danças no ar, tudo pessimamente decorado e um Castelar Ornelas furioso connosco em palco. Baile, com uma amiga para a vida e amigos para duas. Festas, muitas festas, lágrimas, muitas lágrimas, histórias, muitas histórias. Eis pertencer à Comissão: festas, lágrimas e histórias.

Chegamos ao final. Passando a redundância, as minhas memórias são minhas. Contudo, apesar de minhas, pertencem a um universo partilhado: o universo Nicolino. Apesar de minhas, são, também, do Pistolas, do Kiko, do Domingos ou do João Nuno. Apesar de minhas, são, também, do Gaspar, do Ruivo ou do Xavi. Pertencem à nossa memória coletiva, ao nosso amor uno. Talvez este amor uno, esta vontade de entrelaçarmos rojões nos corações, este chamamento pela terra, seja o que nos senta à mesa, ano após ano, 29 após 29. Tal como dizia no início, o sentimento resiste às palavras. Talvez por isso – por ser algo tão blindado às palavras - seja, de facto, amor: amor à Comissão, amor às Nicolinas. Amor aos Nicolinos.

Aqui vivemos muitos anos. Esperem-me a 29.


Lisboa, 18 de novembro de 2021
Henrique Pinto de Mesquita

1º Vogal de Festas 2015

Sócio nº 159 da ACFN

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