
Na Casa do Povo, utentes e artistas encontram-se na “poesia do quotidiano”
“Não pensei que ia chegar aqui e ver aquele panorama. Pensei que era uma reunião”, confessa Manuela Silva, de 58 anos, residente no bairro municipal de Mataduços. Numa das entradas da Casa do Povo de Fermentões, um banner anunciava a oferta de Consultas Poéticas; no corredor, pessoas de bata deslocavam-se de um lado para o outro, enquanto as portas se abriam para uma sala a meia-luz; nesse amplo espaço, os biombos separavam os consultórios, dando privacidade aos pacientes e aos clínicos.
Esses clínicos não eram médicos, mas artistas: Ana Arqueiro, Maria Soares, Nuno Pacheco, Ricardo Pinho, Sabrina Rebelo, Victor Castro eram os seus nomes. Das suas receitas, não constava qualquer fármaco. Ao invés, eles desencadeavam conversas serenas com os pacientes e efetuavam as prescrições consoante o fluxo dessas conversas: poderia ser a leitura de um poema, a escuta de uma canção, uma dança. Foi precisamente o que aconteceu com Manuela: acabou a consulta a dançar.
“Estava a fazer umas perguntas e eu respondi. Deu-me uns poemas para eu ler e perguntou-me se eu gostava de música. Dançámos uma música. Tentei fazer as mesmas coisas que ela. Acho que lhe dei um jeito. Fiquei bem encaminhada com a consulta que tive”, descreve.
A habitante de Mataduços confessa que nem sabia da existência de consultas poéticas; na verdade, a edição de sábado foi a primeira que a associação Paisagem Periférica organizou no concelho de Guimarães. A proposta integra o COMvivência(s), projeto que se distribui pelos territórios de Guimarães e de Braga, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Fundação la Caixa ao abrigo da terceira edição do Partis & Art for Change.
A sua coordenadora artística destaca a adesão ao longo da tarde de sábado, entre as 15:00 e as 18:00, a sensação de surpresa dos pacientes quando se deparavam com o espaço e as emoções desencadeadas pelas consultas, com pessoas “sempre muito tocadas”, a expressarem “aquela sensação de que tiveram um momento, um tempo especial nas suas vidas, um tempo para poder partilhar as suas coisas”. “As pessoas emocionam-se. Essa conexão com a poesia do quotidiano, das coisas simples, sobressai neste tipo de experiências”, realça, ao Jornal de Guimarães.
Depois das consultas poéticas com utentes da Cruz Vermelha de Braga, em dezembro de 2024, que terminaram com vários pedidos para a experiência se repetir, Manuela Ferreira diz ter encontrado feedback semelhante em Fermentões. “À saída, uma senhora, muito tímida, disse que isto devia haver mais vezes, porque sentiu a vontade de continuar a conversa, de ter estes momentos mais vezes”, realça, a título de exemplo.
Os biombos, note-se, foram criados na oficina de design colaborativo nas Coradeiras que abriu o COMvivência(s), em 27 de janeiro, com a prática de carpintaria, serralharia e costura. Manuela Silva foi uma das artífices desses biombos, sob a orientação do designer Patrick Hubmann. O trabalho das primeiras iniciativas reflete-se nas seguintes, vinca Manuela Ferreira.

Consultório na Casa do Povo de Fermentões @João Cunha e @Maria Medeiros
“Ter uma experiência estética fora do teatro”
Embora as consultas poéticas estejam abertas a qualquer pessoa e Manuela Ferreira seja cada vez mais avessa “a separar públicos”, a atriz e encenadora reconhece que é essencial levar a experiência “a lugares onde normalmente nada chega”. “A Paisagem Periférica movimenta-se neste tipo de intervenção mais social, mais periférica, mais fora dos grandes centros e encurtando esta dificuldade de acesso aos meios culturais e artísticos”, frisa.
O COMvivência(s) estende-se até ao final de 2025, mas a associação quer dar a conhecer as iniciativas a possíveis financiadores, até porque não é especialmente onerosa, ao contrário de um espetáculo numa sala equipada para o fim. As consultas poéticas surgem, aliás, para criar uma experiência artística fora dos espaços convencionais.
“É intenção da Paisagem Periférica disseminar as consultas poéticas. Estamos a fazer este trabalho de produção de levar a outros contextos. A velha questão é o financiamento. É conseguirmos encontrar alguém, que não tem de estar relacionado com os teatros. Esta iniciativa nasceu da ideia de ter uma experiência estética fora do espaço do teatro. Vamos a qualquer lado”, projeta.