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Na pacatez de Oleiros, janeiro é de Reis. Com São Vicente e os Fanecos

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ segunda-feira, janeiro 24, 2022
© Direitos reservados
No oeste rural de Guimarães, uma família com música nas veias preserva umas Reisadas de vozes masculinas, a capella. Tradição sobressai numa freguesia envelhecida, à qual é difícil entrever futuro.

A partir do largo traseiro à igreja setecentista, vislumbram-se armações ao alto pela Avenida de São Vicente abaixo. Nas beiras, decorações com motivos florais e musicais esperam pelas mãos e as máquinas que as instalem no local exato. Anseiam pela hora em que se fazem luz.

Ali ao pé, as escadas dão para o templo que anuncia 1743 como o seu ano de origem. O interior, adornado em consonância com a era em que foi criado, guarda quatro andores bem cuidadosamente asseados. Um deles retrata precisamente São Vicente, o padroeiro de Oleiros, sempre celebrado em meados de janeiro. Neste domingo, a sua figura percorreu o breve trajeto igreja-cruzeiro-igreja, acompanhado por imagens como a de São Sebastião, outro santo desta época, também evocado nas festas da paróquia, porventura a época da maior congregação para uma comunidade em que os entretenimentos são parcos e os dias lentos.

“Antigamente, havia uma semana de sermões. No domingo da festa, havia uma missa cantada, um sermãozito e uma procissão a este cruzeiro. Não havia arraial, nem nada. Acabava tudo. Só havia a religião. Agora sempre há um bocado de música”, diz Joaquim Mota Ferreira, residente em frente ao cruzeiro, na rua Rosa Marques Vieira, com 87 anos acabados de completar.

Natural de São Clemente de Sande, Joaquim mudou-se para Oleiros aos 27 anos, aquando do casamento com Aurora Oliveira Marques, que só se lembra de um outro momento em que a comunidade se reunia para lá de janeiro. “Havia outra festa em agosto. Era o tríduo do Coração de Jesus. Havia sermões e uma procissão. Era a altura das comunhões solenes e das primeiras comunhões. Faziam-se em agosto. Havia emigrantes que traziam os filhos para isso”, diz a moradora, ali nascida e criada, a propósito de uma festividade que deixou de se cumprir.

 

“Cantavam que era um espetáculo. O Zeca tinha jeito. Às vezes, chegavam aqui sem a gente saber. Punham-se ali à porta, e a gente só a abria quando eles acabavam”, Joaquim Mota Ferreira, sacristão da paróquia por 35 anos

 

De regresso ao Inverno, há que dizer que Oleiros tinha algo mais: um cantar dos Reis distinto dos que saltavam de casa em casa nas freguesias vizinhas. Daí se intitular de Reis de São Vicente ou de Reis dos Fanecos, a alcunha da família que os criou. Segundo uma nota enviada pela família ao Jornal de Guimarães, a composição é de Alberto Rodrigues e data do final do século XIX. Responsável pelo toque dos sinos de igreja paroquial, Alberto tocava violino e animava alguns dos bailes da região, tendo escrito uma canção em que a voz principal – o “botador dos Reis” – inicia sempre a quadra, antes da repetição por um coro polifónico masculino, a capella.

A canção atravessou gerações, cabendo a voz principal aos descendentes do músico. Entre aqueles que vivem no eixo entre a sede da Junta de Freguesia e a igreja, há um nome que logo se acende na memória quando se fala de Reis: o de Zeca Faneca, nome pelo qual toda a gente conhecia Alberto José Machado, neto de Alberto Rodrigues. “O Zeca cantava muito bem”, recorda Aurora, antes do marido Joaquim, ao lado, completar: “Cantavam que era um espetáculo. O Zeca tinha jeito. Às vezes, chegavam aqui sem a gente saber. Punham-se ali à porta, e a gente só a abria quando eles acabavam. Só cantavam homens. Ele preparava alguns para se parecerem mais com mulheres”.

Zeca morreu em 2020 e deixou um outro legado bem audível: o toque do sino para a gravação automática que todos os dias ressoa pela comunidade. A irmã, Maria do Céu Rodrigues Machado Fernandes, de 72 anos, ainda se recorda de alguns trechos das letras que entravam pelas casas dentro: “Deus vos dê festas felizes/Estimados moradores/E a bênção de Deus vos cura/de virtudes e de louvores/E deixai as vossas moradas/E marchai alegremente/E vamos visitar Jesus/Como os reis do oriente”, entoa.

Mesmo sem poder cantar, Maria do Céu lembra-se de acompanhar a família Faneca pelo frio da noite, num tempo em que os instrumentos já eram auxílio das cordas vocais. “Ainda tenho em casa uma concertina”, detalha. A hora das despedidas, com uma deixa personalizada ao dono da casa, é outra das memórias que ainda persiste: “Numa ocasião, dissemos a um senhor que as suas botas amarelas pareciam duas cadelas. Saiu-nos cá fora, a ameaçar-nos. Fugimos”, ri-se.

Agora a cargo dos bisnetos de Alberto Rodrigues, a tradição está em suspenso. A última vez que se cantou os reis pelos caminhos de Oleiros foi 2020.

 

Andor com a figura de São Vicente. A paróquia realizou a festa em nome do santo a 22 e 23 de janeiro

Andor com a figura de São Vicente. A paróquia realizou a festa em nome do santo a 22 e 23 de janeiro

 

Um lugar alheio às marés do tempo

A encosta formada pela Avenida de São Vicente, pela rua do Assento e pela rua Rosa Marques Vieira, com a igreja paroquial, a casa paroquial e o café Oliveira no centro, é banhada ao fundo por um amplo manto de campos verdes e, mais ao longe, por um monte, que a separa de Leitões e de Figueiredo, as freguesias com a qual forma a união em vigor desde 2013.

Daquele sítio é impossível vislumbrar qualquer núcleo de casas de outra freguesia vimaranense, o que agrava o seu isolamento. No Censos de 2011, a população da freguesia era de 462 habitantes, nem sequer o dobro da que se registava em 1864: 332 residentes. No mais recente Censos, a população da União de Freguesias diminuiu de 1.466 para 1.437 pessoas, pelo que é difícil crer numa tendência inversa para Oleiros.

Ainda assim, aquele torrão de ruralidade chamou gente das terras vizinhas para ali viver. É o caso de Alda Ferreira, nascida em Figueiredo, que para ali se mudou em 1957, com 22 anos, após casar. “Casei com um rapaz de Vermil. O padre desta freguesia [Abílio de Oliveira] era tio do meu marido e tinha uma casa. Viemos para aqui”, recorda, num tom vivo.

Para trás, estava uma vida de “muita pobreza”, a trabalhar em terrenos de lavradores para ganhar “um colmeiro com que se enchia o colchão” ou a “servir” em quintas de gente com posses. Pela frente, um cenário parecido: terra sem luz, à semelhança de Figueiredo – só viria depois do 25 de Abril -, com caminhos revestidos a terra, até porque, à época, só havia dois carros em Oleiros: o dos Guilhufes e o dos Bocas, em referência às alcunhas das famílias, refere Alda.

“Era triste. Quando os meus filhos nasciam, era à luz de um candeeiro de gás. Dizia-se que, nos batizados, as velas deviam arder toda a noite. Eu punha-as fora da porta”, retrata esta tecedeira artesanal que, mais tarde, foi padeira. Pelo menos os reis da família Faneca, com Zeca à cabeça, eram “bonitos e bem cantados”, concorda.

Numa terra a que sempre faltou empresas e, consequentemente, trabalho, à exceção dos afazeres das casas e dos campos, os habitantes procuravam sustento em terras vizinhas. Maria do Céu aprendeu costura e encontrou-o em Ronfe, primeiro na têxtil Virgílio Lobo, no Monte Alvar, e depois na Somelos. Reformou-se a partir dessa empresa, numa hora que parecia nunca mais chegar. “Ia tanta gente embora, mas não me mandavam a mim. O engenheiro dizia que eu fazia muita falta, porque trabalhava muito bem. Mas depois deixou-me ir embora”, evoca.

Quanto a Joaquim, a solução estava a norte, na terra em que nasceu. Foi cutileiro durante 45 anos, a maioria deles na Batista, uma cutelaria localizada no Arquinho, mesmo à porta de casa. “Era tudo à unha. No princípio, nem sequer havia casas de banho nas cutelarias. Só apareceram mais tarde. Trabalhei 45 anos a fazer descontos. Mas quando era jovem, dava para dormir até às 07h55, porque estava logo na fábrica”, descreve.

Já Oleiros, a terra em que vive há 60 anos, “não foi nada para a frente”. “Esta não é uma freguesia maior do que na altura. Foi a única freguesia das redondezas em que não surgiram casas novas. Ficou quase sempre com as mesmas”. Joaquim atribui esse estado de coisas aos proprietários, incapazes de disponibilizarem terrenos para as pessoas fazerem as suas casas.

 

A ruralidade que se avista a partir da Avenida de São Vicente, a principal artéria de Oleiros

A ruralidade que se avista a partir da Avenida de São Vicente, a principal artéria de Oleiros

 

Joaquim furou a tradição da mordomia a pedido da comunidade

Num território em que não é difícil toda a gente se conhecer, a cara de Joaquim é particularmente conhecida. Foi sacristão da paróquia por 35 anos; para quem precisasse de entrar na igreja, era aquele o homem a pedir a chave. Nesse tempo, tinha de trabalhar ao sábado à noite para nada falhar no domingo de manhã. Na missa propriamente dita, entrava com a cruz à frente do padre. E quando morria alguém tinha de estar sempre preparado. Mas o que mais o preocupava eram as velas: como não gostava de as acender no domingo de manhã, entre as pessoas, foi a Braga trocar as antigas velas de cera por umas de óleo, menos trabalhosas. “Não era um trabalho duro, mas exigia canseira”, vinca.

Não era, porém, suposto que Joaquim se mantivesse no cargo por 35 anos. Em Oleiros, existe a tradição da mordomia, em que cabe ao homem mais velho a casar-se num determinado ano ser o próximo sacristão da igreja. A esse estatuto, acresce uma condição específica: tem de ser proprietário da casa em que vive, caso contrário é excluído. Joaquim cumpriu o ritual na altura em que se casou, no início da década de 60, mas viria a manter a função que arranca e termina na Quaresma por mais de três décadas. “Quando me tocou a mim, nunca mais me largavam. Sabiam que estava em casa reformado e que tinha tempo. Quem paga é o mordomo de cada ano. Como trabalhavam e não queriam estar a perder tempo, davam-me dinheiro”, esclarece, entre a salva de morteiros que dispara pelo céu de Oleiros.

 

Grupo de Estimulação Cognitiva da CAISA, no adro da igreja de São Vicente de Oleiros, datada de 1743

Grupo de Estimulação Cognitiva da CAISA, no adro da igreja de São Vicente de Oleiros, datada de 1743

 

Uma universidade para estimular um lugar já velho

O trajeto descendente da Avenida de São Vicente desemboca no edifício da Junta da Freguesia de Oleiros, um dos espaços em que funciona a Universidade Sénior Teófilo Braga, projeto de intervenção social lançado pela Cooperativa de Artes de Intervenção Social e Animação (CAISA) e coordenado por Sílvia Oliveira.

Com atividades em Guimarães e em Vila Nova de Famalicão, a instituição centra a sua ação em duas uniões de freguesias do território vimaranense: a UF de Airão Santa Maria, Airão São João e Vermil e a UF de Leitões, Oleiros e Figueiredo. A sede da junta de Oleiros acolhe o Grupo de Estimulação Cognitiva a todas as quintas-feiras, com alunos de idades já avançadas: em pouco mais de uma hora, os presentes interagem através de jogos e de trabalhos.

“Esta sessão é para rir. A Maria do Céu é jeitosa para nos fazer rir. Gostamos disto. Era bom que não acabasse”, diz Alda Ferreira, enquanto apresenta uma manta de retalhos com fotografias ao longo da sua vida. Para se manter ativa aos 87 anos, vai também às piscinas de Joane, todas as sextas-feiras.

A CAISA atua ainda na educação, na cultura e na saúde, cabendo a Tatiana Ferreira os serviços de enfermagem. Nascida em Airão São João, há 26 anos, mudou-se há quatro para Oleiros, a freguesia do pai. Mês após mês, está por uma vez em Oleiros, outra em Leitões e outra em Figueiredo para prestar cuidados de saúde, conhecendo a fundo o dia a dia da população. “A CAISA tem feito um papel excelente. Faz um acompanhamento domiciliário muito próximo. É uma parte que adoro na enfermagem, porque não há nada como conhecermos a realidade das pessoas”, realça.

 

“Não há mercearia em Oleiros, e o padeiro está aí às 12h00. Quando saio cedo para o trabalho não tenho pão fresco. (…) As deslocações são difíceis. Há paragens de autocarro, mas o território é muito sobe e desce. Os idosos daqui estão muito isolados”, Tatiana Ferreira, enfermeira, 26 anos

 

Como vive em Oleiros, os locais procuram-na mais vezes para pedirem conselhos de saúde, algo que vê como natural numa freguesia já envelhecida. “A aldeia é muito pacata. Comparativamente com Airão, é uma aldeia mais envelhecida, com várias pessoas na casa dos 80 anos”, descreve.

Para lá dos minúsculos ajuntamentos de jovens no café Oliveira, é praticamente impossível estabelecer laços sociais com gente da sua idade. Ainda assim, Tatiana Ferreira cresceu “no mundo rural” e habituou-se a uma logística diferente do que é norma na sua geração: enquanto colegas de trabalho no Centro Hospitalar do Médio Ave, em Famalicão, lhe falam de “descer a rua para comprar pão fresco, ir ao banco, à farmácia ou ao cabeleireiro”, Tatiana congela o pão que compra e leva maiores quantidades para casa na hora de ir ao supermercado, mesmo tendo viatura própria.

“Não há mercearia em Oleiros, e o padeiro está aí às 12h00. Quando saio cedo para o trabalho não tenho pão fresco”, descreve. E o território acidentado dificulta ainda mais o acesso de quem é velho aos mantimentos necessários: “As deslocações são difíceis. Há paragens de autocarro, mas o território é muito sobe e desce. Os idosos daqui estão muito isolados”, admite.

Apesar se identificar com o “contexto rural” – gosto desta “proximidade de aldeia”, “por esta regra do tenho laranjas, tens limões, vamos trocar”, confessa -, as oportunidades laborais em Oleiros são praticamente zero e os incentivos à fixação também, pelo que a fuga é inevitável. Prestes a mudar-se para Joane, teme a desertificação da freguesia em breve, face às idades avançadas de muitos dos residentes, inclusive os seus avós paternos. “Há várias pessoas acima dos 85 anos. Desejo que as pessoas durem muito tempo, mas pode haver mortes muito juntas. O alto do cruzeiro pode ficar despovoado em breve”, lamenta, antes de trazer outro problema à tona. “Não me lembro de ouvir falar num nascimento aqui”.

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