No Monte Largo, uma turma reaprende a viver a sala de aula
“Às vezes, não percebíamos nada do que a professora dizia”, diz Júlia Borges Valente, quando se recorda das aulas à distância. Júlia é uma das 25 crianças do 1.º ano da Escola EB 1 do Monte Largo, precisamente o nome do bairro onde se situa, na freguesia de Azurém. Regressou à sala de aula a 15 de março, após dois meses a aprender o alfabeto e os primeiros números num ecrã em que nem sempre via os colegas ou a professora Sílvia. Como é lei de há um ano para cá, a culpa foi da pandemia. “Às quartas-feiras, a Net estava sempre a falhar. Às vezes, a minha câmara estava preta. Tinha a câmara sempre preta e a dos outros meninos também. Os meus irmãos tinham de usar a Internet, porque também estavam em aulas. Tenho dois”, detalha.
Por ora, esses tempos ficaram para trás. Nas últimas três semanas, a escola voltou a ser o palco onde a escrita dos lápis e das canetas, o corte das tesouras e as conversas entre amigos servem de ruído de fundo para a matéria lecionada. E o lugar onde o intervalo é para o convívio das crianças. “O recreio é a nossa coisa preferida da escola”, diz Júlia. Quando estava em casa, praticamente só brincava com o cão ou com o vizinho e colega de turma, João Ramos.
De regresso à escola, é mais fácil variar as brincadeiras. Às vezes, tenta jogar futebol no campo, mas não gosta muito. Prefere o basquetebol ou então reunir-se com o amigo João e com Bianca Félix para imaginar experiências culinárias. “Brincamos aos restaurantes. Fazemos as nossas experiências de cozinha”, diz Bianca. Tal como para Júlia, não teve a mais agradável das experiências com o ensino à distância. “A Internet falha muito lá em casa, mas aqui já não. E também dava ruído. Às vezes, aquilo estava muito baixo e não dava para ouvir. Agora, temos o quadro para explicar as coisas melhor”, conta. Ao lado, João concorda que se aprende melhor na escola. “Em casa, não interagimos muito com as pessoas”, diz.
A professora do 1.º ano, Sílvia Chaves Santos, reconhece que os seus alunos “precisam muito de interagir e de brincar”. O ensino presencial no 1.º ciclo regressou a 15 de março, três semanas antes do verificado no 2.º e 3.º ciclos, e a docente considera que essa opção fez todo o sentido face às necessidades específicas daquela faixa etária. “Os jovens têm as redes sociais e acabam por conviver muito. As crianças é que estavam muito isoladas umas das outras. Há muitas crianças da turma e da escola que não conviveram com nenhuma outra durante o confinamento”, reitera.
“Vamos para casa, não vamos?”
Quando o Conselho de Ministros decretou a suspensão do ensino presencial no 1.º Ciclo, a 21 de janeiro, Sílvia Chaves Santos já estava à espera. “Estávamos, aliás, muito preocupados com o que se estava a ver nas escolas. Todos os dias tínhamos casos ou nesta escola ou ali ao lado. Estava a ser um cerco muito apertado”, recorda a coordenadora do estabelecimento integrado no Agrupamento de Escolas Santos Simões.
Os próprios alunos sentiam esse “clima de pânico”, mencionando nas conversas diárias o número de mortes provocado pelo novo coronavírus, diz. E não o faziam apenas na escola. A conversa entrava pela casa dentro, assinala Teresa Borges, mãe de Júlia. “Perguntavam muitas vezes: “vamos para casa, não vamos?”. Começavam também a ficar com algum receio”, lembra.
Assim aconteceu; após 15 dias de interrupção, úteis para os professores “ajustarem horários”, diz a coordenadora, as aulas prosseguiram em fevereiro a partir do lar de cada um. A experiência, porém, já não era nova para o 1.º ano do Monte Largo. Em novembro, mês em que o vírus afetou particularmente Guimarães – a incidência por 100 mil habitantes em 15 dias esteve acima dos dois mil casos -, os alunos estiveram isolados devido a um professor que trabalhou com a turma e testou positivo, recorda Sílvia Chaves Santos.
À distância, o horário habitual – das 09:00 às 15:30 – foi condensado na manhã, dando um “cariz mais pesado” ao ensino, sobretudo às aulas de português e de matemática. E a dinâmica de “ouvir um aluno a ler enquanto os outros estão a fazer outra coisa” também não era tão fácil como a da sala de aula, o que ditava uma “produção de trabalho muito menor”, diz.
Também presidente da associação de pais da escola, Teresa Borges assume ter sentido essas dificuldades. As crianças “dispersam mais facilmente” das tarefas em casa, com os brinquedos, a televisão e várias outras coisas que podem “suscitar distração”. “Se para adolescentes e até adultos, é diferente estar em casa ou estar na escola, para eles ainda mais”, reconhece.
Apesar da vicissitude, a também presidente da associação de pais enaltece o esforço da escola para “manter a equidade no ensino”, prestando atenção aos meninos que não “conseguiam aceder às aulas ou fazer um trabalho”. “Um dos problemas de ir para casa é que o ensino se pode tornar inacessível a algumas crianças, mas houve um esforço e uma boa colaboração entre os pais e a escola”, disse. Entre os 100 alunos dos quatro anos da escola, houve quatro crianças a quem foi disponibilizada Internet e computadores devido à falta desses equipamentos, adiantou a professora.
Quando a liberdade precisa de máscara
Alunos e professores não escondem que estavam “ansiosos” pelo regresso àquela escola implantada entre as ruas perpendiculares do Monte Largo e a circular urbana de Guimarães, admite Sílvia Chaves Santos. Na primeira semana de aulas presenciais, a escola teve de “trabalhar muito em termos de aprendizagem e em termos de emocionais”, fazendo “um ponto da situação” dos alunos, acrescenta. O funcionamento da segunda, porém, já foi um “bocadinho mais estável”, dentro do que era antes do confinamento.
A sala de aula já exibe as rotinas familiares de um 1.º ano, com um horário das 09:00 às 15:30. Nos quatro grupos de mesas, ocupados sempre pelos mesmos alunos, o material está espalhado pela mesa: além dos cadernos e do material para escrita, cada par dispõe de um ábaco. Utilizada para identificar números, a ferramenta promove a concentração e a interação das crianças durante a aprendizagem. Realizado esse exercício, a professora mostra, no projetor, uma imagem com diferentes configurações de ábacos para a turma identificar. O ensino decorre com normalidade, a não ser por um elemento que, até março de 2020, seria estranho: a máscara.
“Não é obrigatória nestas idades, mas pedimos aos pais que pensassem connosco se era melhor usarem máscara ou não. Pedimos para experimentarmos todos de máscara, porque eles podem falar abertamente uns para os outros”, refere a docente. Símbolo das limitações deste tempo, a máscara é, neste caso, o passaporte para os alunos estarem mais à vontade entre si e com a professora. “Podemos estar numa mesa, a trabalhar e a conversar, e a professora pode chegar à beira deles sem problemas, nem medos”, enaltece.
Sem capacidade financeira para acrílicos, nem espaço para mesas separadas, a máscara é o garante de um ensino seguro. Para evitar possíveis dificuldades respiratórias das crianças, Sílvia tem-se habituado a abrir “logo as janelas” mal entram na sala. Já na hora dos lanches – pão e leite escolar, de manhã, e pão com fruta ou iogurte, à tarde -, os alunos retiram as máscaras e Sílvia mantém-se afastada deles, por recomendação da delegada do Agrupamento de Centros de Saúde do Alto Ave. No recreio, um espaço exterior, as crianças colocam as máscaras num porta-máscaras e podem brincar sem elas.
“Quando uns saem para brincar, já os outros entram para a sala”
Os pais estão de acordo com esta política, ainda que alguns tenham ficado “apreensivos” no início do ano letivo, conta Teresa Borges. “Sem a máscara, seria um ensino muito mais limitador na relação entre professor e aluno, e distante. Assim, ficamos muito mais tranquilos”, refere. A mãe de Júlia reitera ainda que a opção, do ponto de vista da saúde pública, tem sido a mais acertada, já que “não houve nenhum caso de transmissão dentro da sala”.
Mas há mais procedimentos para evitar possíveis contágios; todos os alunos têm de desinfetar as mãos quando entram ou saem do edifício escolar, quando lancham e quando vão almoçar ao refeitório, por exemplo. Quanto aos horários dos quatro anos, estão “desencontrados” desde setembro, explica Sílvia Chaves Santos. O 1.º ano e o 2.º ano começam as aulas às 09:00, enquanto o 3.º e o 4.º fazem-no às 09:30. Isso permite que os alunos mais novos e os mais velhos nunca se encontrem, quer no intervalo, quer no refeitório. “Temos duas turmas de cada vez e nunca se cruzam. Quando uns saem para brincar, já os outros entram para a sala”, descreve.
Bem a meio da manhã, o 1.º ano teve o seu intervalo, mas o recreio ficou circunscrito ao exíguo coberto da escola devido aos chuviscos. Sem espaço para se aventurarem, os meninos jogaram ali à apanhada, antes de voltarem à sala. A campainha é ajuda preciosa para Bianca saber quando recomeçam as aulas, algo que não tinha em casa. A disciplina preferida, confessa, é português, porque gosta de entender e ler as palavras. Essa é também a matéria predileta de João. Mas a aula daquele dia é de matemática, algo mais ao gosto de Júlia, que gosta de fazer contas. Enquanto a aula não recomeça, as três crianças divagam sobre a profissão a exercer quando crescerem, entre cabeleireira, cozinheiro e professora. Depois, voltam à sala, lugar de janela voltada para o campo de jogos, mas também para o seu futuro.
* Com Hugo Marcelo