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No ninho que fez despontar Moreira, há comunidade e novas oportunidades

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ sábado, julho 10, 2021
© Direitos reservados
Na Cuca, ergueu-se uma fábrica que inspirou outras fábricas e que foi mãe de um bairro operário onde coabita gente que se fez ali desde o berço e gente que viajou quase meio mundo rumo a um novo lar.

“Isto tem paralelo há 20 anos. Não tem há mais. Era terra batida até à linha de comboio. As enxurradas iam para a linha”, descreve Ricardo Costa. Aponta para a rua de Caneiro, faixa que separa a Linha de Guimarães do Bairro da Cuca, o nome que verdadeiramente condensa a identidade daquela área de Moreira de Cónegos banhada pelo rio Vizela.

Enquanto filho da Sociedade Têxtil da Cuca – um dos vários pela vila -, o exemplar de habitação operária do século XX, de fachada granítica e identificação gravada a letras garrafais, apresenta duas entradas: uma para um estreito corredor que separa habitações, protegido da luz do sol, e outra para um terraço que convida os moradores a se relacionarem.

Esse é o lar de Ricardo Costa há 38 anos. Na infância, era um dos palcos “do berlinde, da carica e da bola”. Outro era a casa do vizinho Armando Oliveira, do outro lado da linha, já na rua do Alto de Caneiro. “Aqui incomodávamos toda a gente. O sítio onde mais brincávamos era a casa do senhor Armando. Aquilo tinha muro, mas não tinha grade. Ia muitas vezes para lá apanhar sombra”, lembra.

Com o passar dos anos, aquelas 40 crianças do bairro cresceram e os hábitos mudaram. Mas certos momentos eternizam-se no tempo, reitera. De mão dada com a sua filha, ainda pequena, Ricardo deixa o terraço e volta ao corredor que ladeia a via férrea. Aí aponta para uma clareira onde todos os anos se celebrava o São João. “Era uma coisa espetacular. Fazia-se uma fogueira, por exemplo. Isto era uma pequena grande família”, conta.

Ricardo Costa alimentou-se dessa essência comunitária num sítio que, para sucessivas gerações, foi uma travessia rumo a oportunidades de trabalho. Foi o caso de uma das suas avós: aos 14 anos, rumou de Santa Eulália de Vizela até Moreira de Cónegos para servir o então patrão da Sociedade Têxtil da Cuca. Voltada para a ferrovia, essa casa é hoje sua, tal como a do lado, onde habita a mãe. “A história da minha família começa aqui”, descreve, apontando para o edifício, ainda inabitável.

Desde que a indústria têxtil começou a fervilhar, a Cuca é um espaço de oportunidades. E continua a sê-lo; não só para moreirenses ou nativos das freguesias vizinhas, mas também para quem se desloca mais de oito mil quilómetros em busca de uma vida melhor.

 

Ricardo Costa mora na Cuca desde que nasceu, há 38 anos

Ricardo Costa mora na Cuca desde que nasceu, há 38 anos

 

Cria de um baluarte económico, pioneiro na ação social

O comboio chegou a Moreira de Cónegos a 31 de dezembro de 1883, pouco antes de se ter visto na cidade pela primeira vez, a 14 de abril de 1884. Segundo uma tese de mestrado de Elisabete Pereira Rodrigues sobre Serzedelo, Moreira de Cónegos e Lordelo, datada de 2007, a ferrovia aliava a energia extraída do rio Vizela ao transporte de mercadorias. Acabou por ser a árvore na qual a Sociedade Têxtil da Cuca se fez ninho, criando e alimentando várias das estruturas pelas quais Moreira se reconhece hoje como tal.

Criada em 1917 pelo portuense José Maria Simões, a empresa instalou fiação, tecelagem e tinturaria nas imediações do rio Vizela, afirmando-se de vez nos anos 30, não só pela dimensão económica, mas também pela social. A 21 de maio de 1933, o semanário Notícias de Guimarães informava que as obras para a creche estavam prestes a começar. Seguir-se-iam a cantina e a assistência médica do trabalho. A empresa teve até moeda própria no seu seio, conhecendo o auge sob a gerência de Francisco Félix, homem por exemplo ligado à fundação do Moreirense, em 1938.

A indústria têxtil germinava a partir das sementes lançadas pela Cuca; em 1947, já havia 15 empresas do ramo em Moreira, dando emprego a cerca de 1.500 pessoas. Uma delas era Mário Guimarães, que entrou para a Cuca precisamente nesse ano. “Já estavam lá o meu pai e a minha mãe. Fui trabalhar para um tear pequeno à beira da minha mãe”, recorda o antigo trabalhador, hoje com 87 anos.

Recorda-se do “bom ambiente” que lá se vivia, antes da situação piorar e obrigar a fábrica a encerrar pela primeira vez em 1962, do refeitório no piso de cima e dos torneios de futebol em que jogou pelo Grupo Desportivo da Fábrica da Cuca. Quanto ao bairro operário, também consta do seu imaginário de adolescente.

No início, essas habitações acolhiam trabalhadores, mas não todos; só os de certas funções. E quando alguém deixava a casa, era substituído por outra pessoa que desempenhava a mesma tarefa. “Saía um mestre da tecelagem, vinha outro mestre e ia para lá. Saía um mestre de serralheiro, vinha outro mestre e ia para lá. Era quase como uma paróquia, quando sai o padre”, descreve.

Habituado a entrar às 08h00 e a sair às 18h00, com uma hora de almoço pelo meio, Mário Guimarães reaviva ainda as romarias de gente até à Cuca por um caminho que hoje corresponde à rua de São Paio Padroeiro. “A gente ia por aí abaixo. E era pertinho. Depois, acabou-se o andar a pé e começaram a vir os carros”, descreve.

 

Exemplar de moeda da Sociedade Têxtil da Cuca

Exemplar de moeda da Sociedade Têxtil da Cuca

 

As crianças que brincavam entre os operários que subiam

Se a rua de Caneiro era o lugar onde os operários se faziam comunidade, a do Alto de Caneiro, do lado de lá dos carris, assistia a procissões diárias rumo ao templo do trabalho; nos anos 70, já após o primeiro encerramento da fábrica, era a rota privilegiada para os operários de Vilarinho, o território do outro lado do rio, já pertencente a Santo Tirso. “Como era o caminho mais perto para a Cuca, todos os dias eram multidões para ir trabalhar. Via-se mais gente de manhã cedo, às 05h15 ou 05h30”, diz Goreti Leite, recuando à infância.

Nascida em 1966, Goreti mudou-se aos quatro anos para a casa onde hoje vive; revestida a granito, a habitação foi antes uma escola provisória e uma tasca. Puseram-lhe o nome de Arranco quando ali se petiscava. “Como aqui era uma subida muito grande e paravam a meio para comer e para beber, chamavam-lhe a tasca do Arranco. Antes da tasca, houve ali uma escola. Há aqui pessoas com 80 anos que sabem ler e escrever. Foi ali que aprenderam”, conta.

Ao reavivar o tempo de menina, aquela rua sinuosa em alcatrão transforma-se num itinerário em calçada portuguesa onde abundavam as pessoas e escasseavam os carros. Já as brincadeiras, algumas arriscadas, sucediam-se. “Este bairro chegou a estar cheio de gente e tínhamos algumas crianças”, lembra. “Uma coisa que uma pessoa fazia muito era andar em cima da linha de comboio a ver quem aguentava mais tempo”.

Entre as companheiras de tropelia, contavam-se duas filhas de Armando Oliveira, precisamente o habitante da casa colada à linha de comboio, onde se avista toda a fachada do Bairro da Cuca. Natural de São Martinho do Campo, começou a trabalhar ali em 1964 como motorista para a Midouro, sociedade panificadora nascida no edifício do Pão Quente da Cuca, e casou dois anos depois, aos 25, fazendo do Alto de Caneiro o seu lar até hoje, quando se aproxima o 80.º aniversário.

Quando ali chegou, a rua era “muito estreita” e “muito perigosa”, já que os automóveis ainda podiam cruzar a via férrea, mas a visibilidade para os comboios que iam e vinham era pouca. Do lado de lá da linha, o número de habitantes variava consoante as marés da têxtil da Cuca.  Aumentava na maré próspera e encolhia em tempos de aperto – sujeita a várias oscilações de rendimento e a vários proprietários, encerrou definitivamente em 2004. Mas já nessa altura o bairro albergava gente oriunda de lugares que não Moreira de Cónegos, relata.

Goreti Leite corrobora esse testemunho, contrapondo o bairro apinhado dos tempos de criança com o de há mais de 20 anos, desabitado e “degradado”, após a onda de desemprego que se abateu sobre os moradores.

 

Uma das famílias oriundas do Nepal a residir no bairro operário

Uma das famílias oriundas do Nepal a residir no bairro operário

 

Renascer com sotaque dos Himalaias

O século XXI trouxe novos moradores e uma nova vida ao bairro, assume Goreti Leite. Essa vida faz-se de gente que sempre ali viveu e de gente que percorreu quase meio mundo para ali estar. Moreira de Cónegos já tem mais de uma centena de imigrantes oriundos do subcontinente indiano, e alguns vivem ali. Numa das residências do bairro, Krishna Shrestha, de 34 anos, mora com a esposa, Sabita Khadka, de 33, com a filha, Shanvi Shrestha, de cinco, e com a cunhada, Renuka Khadka, de 35.

Tinha um negócio em Catmandu, capital do Nepal, quando decidiu rumar a Lisboa para melhorar a situação económica. Contudo, viu-se em circunstâncias difíceis. “É uma cidade com muita gente e com muito barulho. E é um sítio caro a nível de renda, água, luz e Internet”, descreve a partir das escadas da casa, num português bem percetível.

Krishna Shrestha precisava assim de um sítio mais barato. E encontrou-o há três anos, graças à sugestão de um irmão já radicado no Vale do Ave. “Ele sugeriu-me vir para aqui”, recorda. “Perguntei-lhe toda a informação para conhecer o sítio e vim”.

Na Cuca, encontrou a almejada “renda boa” e uns vizinhos sempre dispostos a ajudar a família. “Não conhecíamos nada, mas a vizinhança quis sempre ajudar-nos”, refere, indo ao encontro do que a vizinha Goreti contara ao Jornal de Guimarães.

A moradora do Alto de Caneiro lembra-se que os primeiros emigrantes se fixaram ali há cinco anos, tendo motivado a comunidade a ajudá-los. “Uns davam móveis, outros davam roupa de cama, outros davam toalhas para mesa e outros louças. Com o pouco que podíamos, ajudámo-los a mobilar a casa. Assim não tinham de começar casas vazias”, explica.

Assegurado o bom relacionamento com a vizinhança, Krishna começou a trabalhar como cozinheiro no São Gião, restaurante onde ainda se mantém. E tem gostado do ofício: é “agradável” pelo vencimento, mas também pela disponibilidade dos colegas para lhe ensinarem o português.

O domínio da língua de Camões, praticamente falada em exclusivo no local de trabalho, é assim uma prioridade para o cidadão oriundo do país dos Himalaias. “Quando comecei a trabalhar no restaurante, tudo falava português”, refere. “Isso fez com que fosse obrigatório aprender, porque toda a gente falava assim. E quero aprender, porque fica mais fácil viver aqui”.

Sem metas definidas a longo prazo, Krishna tenciona fazer jus ao estatuto da Cuca como ninho de oportunidades. “Quero fazer o meu negócio aqui. Mais tarde, quando conseguir, vou tentar”, promete.

 

* com Carolina Pereira

 

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