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“Nossa razão tem razão”: os dias em que Guimarães pediu progresso são livro

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ domingo, dezembro 12, 2021
© Direitos reservados
A manifestação de milhares a favor de um instituto tecnológico e de expansão da área urbana culminaram na criação da Unidade Vimaranense. Esse processo está contado num livro de Esser Jorge Silva.

A 10 de dezembro de 1970, uma quinta-feira, José António Salvador, jornalista do Diário de Lisboa, encontrava-se em Guimarães. Então com 28 anos, o futuro especialista em enofilia e gastronomia preparava um trabalho sobre uma reunião entre a Câmara Municipal, industriais vimaranenses e uma comitiva belga da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Mas a anormal “inquietude” de que se apercebeu enquanto circulava as ruas fê-lo ligar para a redação, a dar conta de que algo inesperado ia acontecer. Crítico ao Estado Novo sempre que podia, o órgão dirigido por António Ruella Ramos autorizou o trabalho.

No largo José Maria Gomes, em frente à Câmara, deu de caras com uma multidão a reivindicar “progresso”. “Guimarães reivindica” foi mesmo o título que escolheu para a capa da edição de 12 de dezembro de 1970. No interior do jornal, na página 25, o jornalista detalha as exigências de um instituto tecnológico e do alargamento da área urbana da cidade para a construção de habitação sob o título “Vinte mil pessoas manifestaram-se pelo progresso de Guimarães”.

O frenesim dos dias que levaram à manifestação, também de apoio ao presidente da Câmara, Manuel Bernardino de Abreu, quando se preparava para ser exonerado pelo Governador Civil de Braga, António Santos da Cunha, e à posterior constituição da Unidade Vimaranense está agora vertido no livro “Nascimento da Unidade Vimaranense”, escrito por Esser Jorge Silva.

“A Unidade Vimaranense nasce de uma tensão em Guimarães face ao poder central do Estado Novo. A pessoa que prefigurava essa tensão era o Governador Civil do Distrito de Braga, Santos da Cunha”, disse o autor, na apresentação decorrida na sexta-feira, na sede da Assembleia de Guimarães, entidade que lançou a edição.

O sociólogo vimaranense reconheceu que o seu primeiro contacto com a Unidade, uma instituição conhecida pelos empreendimentos levados a cabo, fundada a 30 de abril de 1971, foi a piscina localizada junto à academia de Vitória. Admitiu aliás só ter conhecido as histórias que levaram à manifestação de 10 de dezembro de 1970 após o desafio realizado pelo malogrado Fernando Alberto Ribeiro da Silva, um dos fundadores, para a escrita de um livro.

Ao longo de 144 páginas, Esser Jorge contextualiza o contributo das indústrias vimaranenses para o crescimento do PIB nacional, ao mesmo tempo que eram obrigadas a recrutar jovens sem qualquer tipo de formação, uma vez que lhe faltava um instituto tecnológico; os técnicos nos têxteis, no calçado, nos plásticos eram, por norma, recrutados no estrangeiro. A cidade de Guimarães era mais populosa do que 12 das sedes de distrito e o concelho superava todas as sedes, à exceção de Lisboa e do Porto, mas Guimarães via recorrentemente adiada a expansão da malha urbana.

Como Governador Civil de Braga e figura de proa do salazarismo, António Santos da Cunha tinha a última palavra na nomeação e na demissão dos presidentes da Câmara do distrito. Ao contrário de Braga, que teve oito presidentes da Câmara durante o Estado Novo, com o próprio Santos da Cunha a permanecer nesse cargo entre 1949 e 1961, Guimarães teve 23; raramente alguém ficava por mais de dois anos na posição, o que prejudicava a execução de projetos a longo prazo, argumenta o livro.

Santos da Cunha nomeou Manuel Bernardino de Abreu presidente da Câmara ainda na primeira metade de 1969, após ter constado que, na ficha da PIDE, nada havia nele que o opusesse ao regime. No entanto, o até então professor revelou-se capaz de compilar estatísticas que davam fundamento às reivindicações políticas a favor de Guimarães. São inúmeras as idas a Lisboa para reivindicar ou o instituto tecnológico ou o aumento da área urbana, mas os esforços são em vão.

 

“Qual a razão por que não está aqui o senhor presidente da Câmara?”

As engrenagens da manifestação começam a trabalhar a 04 de dezembro, com uma visita do novo ministro da Educação Nacional, Veiga Simão, a Braga e a Guimarães. Em Guimarães, o reitor do Liceu, Fernando Conceição, queixa-se da falta de condições de ensino, com Bernardino de Abreu a dar eco a esse sentimento num jantar realizado no Paço dos Duques. Santos da Cunha estava presente e, no dia a seguir, teve o habitual almoço de Natal com industriais vimaranenses; os empresários chamam-lhe o “almoço do peditório”, uma vez que o Governador Civil utiliza os donativos recolhidos para eventos “solidários” de Natal.

António Xavier era um dos mais jovens no Restaurante Jordão. Aos 38 anos, era da família que detinha a Xavi, fábrica de plásticos na estrada que ligava São Lourenço de Selho a São Torcato, e era figura conhecida no associativismo local, através do Ritmo Louco (futuro Círculo de Arte e Recreio) e do Vitória, como hoquista. Ao dar-se conta da falta de Manuel Bernardino de Abreu, perguntou ao Governador Civil: “Qual a razão porque não está aqui o senhor presidente da Câmara”?

“Questionei o Governador Civil, num ato que os empresários não gostaram nada. Apenas perguntei porque estava ali o governador civil e não o presidente da Câmara. Eu, o Fernando Jordão e o Adelino Sampaio murmurámos entre nós fazer a questão”, recorda. O presidente da Câmara entre 1979 e 1982 e 1985 e 1989 disse ainda que o Governador Civil “nunca se lembrava de Guimarães”, a não ser para “vir buscar as massas para as festas de Natal que queria fazer”.

“Os empresários ficavam muito honrados pelo convite do Governador, e levava daqui os bolsos cheios para as festas de Natal em Braga. O presidente da Câmara, Bernardino Abreu, teve a coragem de enfrentar as forças superiores, nomeadamente o Governador Civil. A população sentiu que havia ali um líder e falava-se em surdina que ia ser demitido”, acrescentou.

Muitos desses empresários mostraram-se inicialmente incomodados com a questão, mas, depois de Adelino Sampaio, da empresa Premali, dar suporte a Xavier, sentiram-se mais confortáveis em confrontar o Governador Civil. Depois de tentar contornar a questão, Santos da Cunha disse que Guimarães não “tinha a mesma congregação entre as pessoas” como em outras terras, razão pela qual não avança.

Estava aceso o rastilho para a manifestação. Nos dias que se seguiram, as reuniões sucederam-se à noite e vários presidentes da Junta, sobretudo das freguesias operárias, responderam ao apelo à participação, bem como instituições como os Bombeiros Voluntários de Guimarães e os Bombeiros Voluntários das Caldas das Taipas.

Às 18h00 de 10 de dezembro, liam-se cartazes de reivindicação, como “O povo de Guimarães está com o senhor presidente”, “Guimarães reivindica seus direitos”, “80 mil trabalhadores pedem justiça” e de afirmação de unidade territorial, como “Lordelo com Guimarães, sempre com Guimarães”, “Terras de Prazins orgulham-se por Guimarães”, “São Torcato está com o nosso presidente”. Uma das citações seria especialmente realçada na criação da Unidade Vimaranense: “Nossa razão tem razão”. As intervenções de Fernando Roriz, de Laurentino Ribeiro Teixeira, de Benjamim de Oliveira (presidente da Junta de Freguesia de Gondar), de Fernando Alberto Ribeiro da Silva e, por fim, de Manuel Bernardino de Abreu mostravam que o tecido político, associativo e empresarial não mais olhava o Governador Civil com a autoridade de antes.

A 30 de abril de 1971, nascia a Unidade Vimaranense, uma sociedade com pessoas de quadrantes políticos, em que ninguém poderia ter menos de três mil escudos e mais de 10 mil do capital, para fazer nascer alguns dos empreendimentos para os quais a Câmara não tinha dinheiro e o Estado protelava: incluem-se entre eles a piscina e a aquisição dos terrenos onde hoje se ergue a urbanização contígua ao Parque da Cidade e a academia do Vitória. “Foi a partir daí que a própria comunidade começou a ver outras formas de investir, que não a indústria têxtil. Guimarães era dos concelhos mais industrializados de Portugal, mas monoindustrial, apenas na indústria têxtil”, lembrou António Xavier.

 

Exemplo para a sociedade civil

Ao recordar aqueles dias de dezembro de 1970, António Xavier salientou que aquele era “um tempo difícil”, em que “dialogar com o Governo era impossível”; daí se ter criado algo que pudesse mitigar a “revolta sentida pela população”. “Não foi nada corajoso o que fizemos. Foi uma ignorância do risco geral”, riu-se.

Para Esser Jorge, a história que conduziu à fundação da Unidade Vimaranense pode ser um exemplo para colocar a “sociedade civil” de Guimarães em “andamento”, ainda que hoje as instituições do Estado funcionem bem melhor comparativamente há 51 anos. “Este episódio mostra que é possível pôr em frente a coragem. Hoje não arriscamos. Estamos sempre à espera que as nossas instituições tenham uma solução. Há alguns momentos em que os vimaranenses se tomam de dores e dizem que querem melhorar”, frisou.

Já o presidente da Assembleia de Guimarães, Rui Vítor Costa, vincou que a manifestação de 10 de dezembro de 1970 está “relativamente esquecida”, quando se trata de uma história “absolutamente memorável da força de uma comunidade”. “É a história de inquietação de uma comunidade num regime fechado. “É uma história de determinação e coragem, de uma inquietação que levou a que uma comunidade saísse à rua”, disse.

O responsável disse ainda que o livro é “um primeiro passo para homenagear Fernando Alberto”, que, na hora em que lançou o desafio do livro, comparou o evento ao lema da primeira campanha eleitoral de Barack Obama, em 2008. “A história do Yes, we can é a história da Unidade Vimaranense. Dissemos que podíamos fazer e fizemos”, assinalou.

Também presente na cerimónia, o presidente da Assembleia Municipal, José João Torrinha, disse conhecer a instituição pelo facto de o seu pai ter sido um dos sócios fundadores e lembrou que a “união dos vimaranenses em torno de propósitos comuns” é algo a cultivar “independentemente de ideologias”. “Espero que esta efeméride nos leve a pensar mais no que nos une do que naquilo que nos separa”, concluiu.

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