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O CIAJG deambula por um “mundo em desacordo”, com “monstros” a várias vozes

Tiago Mendes Dias
Cultura \ terça-feira, julho 12, 2022
© Direitos reservados
Ancorado nos manifestos de José de Guimarães, o ciclo expositivo “Voz multiplicada” questiona, em som, imagem ou escultura, a afirmação das identidades, até do próprio museu, que requer transformação.

Feita a revista pelos símbolos que ladeiam o hall do piso superior – constituem o Alfabeto Africano de José de Guimarães -, o visitante depara-se com duas criações artísticas que se relacionam; no espaço onde se encontrava a coleção de arte africana, surge um vídeo de um alambique, utensílio que destila o álcool das bebidas. Inspirado pelos “movimentos sociais das décadas de 60 e de 70”, com “estudantes ameaçados” e “carga policial nas ruas”, o artista Pedro Barateiro evoca a transformação de um corpo, que pode ser “uma pessoa” ou um museu como o Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), realça Marta Mestre.

Narrado por Conan Osiris, o vídeo esconde uma instalação que se assemelha à maquete de “uma cidade imaginada”, ponte para a pintura de José de Guimarães ali exposta: o verde, o amarelo e o vermelho têm contornos distorcidos. “É uma anti-bandeira de Portugal. É um avesso dessa bandeira, que evoca a monstruosidade dessa ideia de nação, de nacionalidade. É uma espécie de crítica à constituição das identidades fixas. É algo mutável no tempo”, sintetiza a coordenadora artística do espaço.

Em 10 anos, o CIAJG conservou algumas das feições com que se mostrou ao público pela primeira vez, a 24 de Junho de 2012, mas mudou outras, acompanhando as tendências da arte contemporânea, um território que é hoje de “muita liberdade”, quer nas linguagens, quer nas “vivências”, realça Marta Mestre, apontando para uma instalação da neerlandesa Afra Eisma que pode ser contemplada, mas também vivida e tocada, no piso -1 do CIAJG.

A obra integra Garganta, exposição com curadoria de Raphael Fonseca, evocativa do tema do ciclo – Voz Multiplicada -, a partir da ideia de gárgula, “um sistema muscular com voz”, que, na arquitetura medieval, “faz a separação entre o bem e o mal”, prossegue a responsável.

 

“Esse é o grande desafio político atual: como vivermos num mundo em desacordo, dos próprios objetos, dos conceitos, dos valores. Voz Multiplicada aponta para essa polifonia que existe na arte, na política, nas grandes questões”, Marta Mestre, coordenadora artística do CIAJG

 

Inspirado pela gárgula da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira – a “ideia de bestiário” -, o artista brasileiro reuniu sonoridades, imagens e objetos que podem discordar entre si: há uma escultura de Gabriela Moreno a partir da qual se ouve uma endoscopia, um levantamento de esculturas medievais, com as “línguas e as gargantas” pintadas pelos dinamarqueses Asgen Jorn e Noël Arnaud, por forma a concentrarem o olhar do visitante, uma peça de Rosa Ramalho, a ceramista de Barcelos, uma alusão de índole sexual à figura do Minotauro, por Luís Lázaro Matos.

Em Voz Multiplicada, a coordenadora artística vislumbra hipóteses para “diálogos muito fortes” entre estas manifestações de arte contemporânea e a coleção permanente, “muito heterogénea”. No CIAJG, não se ouvem “vozes harmoniosas”, mas “vozes dissonantes”, que vão ao encontro daquele que considera o “grande desafio político atual”.

“Esse é o grande desafio político atual: como vivermos num mundo em desacordo, dos próprios objetos, dos conceitos, dos valores. Como criarmos uma possibilidade de entendermos isso”, salienta. “Voz Multiplicada aponta para essa polifonia que existe na arte, na política, nas grandes questões. É uma maneira de criarmos um fio condutor pelas exposições. Manifesto é precisamente aquilo que evoca uma vontade de mudança”.

O preâmbulo para essas dissonâncias encontra-se precisamente nos quatro manifestos artísticos de José de Guimarães, repartidos pelo hall e pelo piso -1. A homenagem a Salette Tavares, poetisa que faria 100 anos em 2022, vertida em Quasi-manifesto antecipa um retroceder aos tempos em que o artista procurou abalar o panorama artístico e o mundo em que vivia.

A palavra “Grito”, encerrada numa cabine telefónica, é a expressão de Arte Perturbadora (1968), manifesto criado em Luanda num “contexto de guerra colonial e de todo um contingente de portugueses em Angola”, com um “tom de insurgência nas vésperas da revolução”. Ao lado, A Ratoeira constitui um arco que reflete o “advento da vigilância big brotheriana dos anos 80”. Em 1999, José de Guimarães publicou Esta cultura faz-nos velhos, manifesto encarnado por uma figura que se assemelha uma vaca, alusivo aos “monopólios dos sistemas das artes” e à “sobreposição dos valores políticos sobre os valores artísticos”, detalha Marta Mestre.

“Os manifestos caracterizam-se geralmente pelo tom interventivo, que espera definir um mundo de possibilidades. Ao cruzarem palavras, sonoridades e construção visual, veiculam mensagens de mudança e exortação. Diante de uma determinada realidade, antecipam futuros”, acrescenta.

O ciclo Voz Multiplicada inclui ainda a fusão entre a arte africana e a cultura pop do angolano Yonamine, em EU EU/Amnésia & Dislexia, bem como Preambular o futuro, um ensaio visual de Max Fernandes relacionado com a inauguração do museu; as imagens de arquivo são a matéria para a montagem de palavras e imagens espalhadas pelo museu.

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