“O meu amigo H.”: como um ditador sobrevive nos bastidores
O som ameaçador prenuncia um discurso alimentado a vigor, a raiva, a deslumbramento; a imagem a preto e branco no ecrã sobre o palco captam maneirismos que evocam a década de 30 do século XX. Encarregado de interpretar tais fogachos de êxtase, Rodrigo Tomás reconhece “certos maneirismos” de Hitler na sua performance até porque já estava familiarizado com os discursos e os maneirismos antes de ser convidado, mas a sua proposta artística não é a de imitar o ditador nazi.
“Poderiam ter sido outros políticos. Eu executo e não estou a fazer juízos de valor à medida que estou entregue ao ódio, àquilo que a personagem se entrega durante o discurso”, esclarece após o primeiro ensaio aberto de O meu amigo H., criação do Teatro Nacional 21 em estreia absoluta no Centro Cultural Vila Flor (CCVF); o espetáculo apresenta-se pela primeira vez em palco às 21h30 de sexta-feira, no Grande Auditório Francisca Abreu.
A bravata do discurso para as massas, acompanhada a rigor com as palmas do design sonoro, é antecâmara para aquilo de que realmente trata a peça encenada por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu, com dramaturgia de Ricardo Braun: os jogos de poder entre quatro homens que se medem, que se interrogam, que se farejam, criados a partir das quatro personagens vertidas no drama My friend Hitler, do reconhecido e controverso escritor Yukio Mishima, publicado em 1968.
“Este texto mostra-nos o esqueleto de uma ascensão de um ditador. Ao branquearmos qualquer nome ou referência histórica que Mishima tem no seu texto, ampliamos o discurso e tornámo-lo mais aberto”, explica Albano Jerónimo, após o ensaio aberto à imprensa. O púlpito dá assim lugar aos bastidores enquanto palco onde os membros do partido calculam o próximo passo para a sobrevivência: a do regime e a sua própria.
“A pertinência deste texto nos tempos que correm não poderia ser mais acertada no sentido em que esta sobrevivência política e esta decapagem de valores estão expostos com a densidade poética que Mishima tem na sua obra, com a carga homoerótica latente nestes jogos de poder. Aqui vemos os bastidores”, prossegue o artista.
Albano Jerónimo vinca, porém, que a dramaturgia e a encenação alteram o texto de um autor que tinha “uma quase adoração” pelo ditador alemão, algo que ninguém em palco subscreve. “Acredito que o próprio Mishima iria gostar dessa contrariedade. A ideia é sempre procurar uma vibração humana: onde é que ficamos no meio disto tudo, no meio destes jogos, nos bastidores que, por norma, nos jogos políticos que vemos na televisão, carecem de uma perspetiva humana”, descreve.
O encenador e ator realça que o que está para além de um discurso de um político com um discurso autoritário reside “numa espécie de metaverso ou estratosfera”, de impossível acesso ao público. O espetáculo convida assim o público a “escavar um raciocínio” sobre o que está para além do enquadramento que todos vemos, diz.
Convicto de que o texto em causa é “pertinente” em temos nos quais as pessoas “estão cada vez mais extremadas”, com “uma individualidade cada vez mais exacerbada e posta em prática”, não só na conjuntura nacional, mas também na internacional, Albano Jerónimo frisa ainda que a peça foi uma oportunidade para a equipa do Teatro Nacional 21 “concentrar toda a massa criativa” depois de o contratempo com a Direção-Geral das Artes ter forçado a redução do orçamento e a reorganização do programa artístico para um prazo de dois anos. “Eu e a Cláudia temos feito sempre os trabalhos individualmente, comigo a dirigir e a Cláudia a escrever, por exemplo. (…) Esta coencenação veio da necessidade de estarmos juntos e de reunir o grupo à volta de um objeto”, descreve.
“Vampiros destes corpos, destes atores”
É quando os atores estão de costas, a meio do palco, que o público os vê melhor. O grande ecrã, com os seus grandes planos a entrelaçarem-se com o plano geral do palco, evoca o conceito de “propaganda”, na qual os espetadores se tornam “quase vampiros destes corpos, destas cabeças, destes atores”, realça o encenador.
Um dos atores em O meu amigo H., Pedro Lacerda, vê na linguagem cénica “um exercício muito engraçado no trabalho de ator”, que se resume a “mais uma camada de aproveitamento estético” ou a “uma outra maneira de comunicar”. “O soundbyte e o pormenor são, às vezes, mais fortes do que tudo o resto em cena. Tanto assim é que até pomos a máquina toda à mostra. Vê-se a Inês a fazer som, vê-se o João Pedro a mexer nas câmaras, os zoom na cara do Rodrigo ou na cara do Ruben a dizer um texto terrível, que faz parte desta mensagem que queremos passar”, realça.
Ao discursar sobre um espetáculo que é “aviso” e “convite à reflexão” sobre como “se vê o outro e recebe o estrangeiro”, Albano Jerónimo espera ainda que o público aprecie a “liberdade dos atores em cena” ao usufruir daquele “pacto de ficção” entre plateia e palco.
“Tenho um amor tremendo pelo trabalho em cena, e um respeito imenso. Gostaríamos que se ligassem a estas pessoas, que estão a desempenhar esta função, num pacto surdo com uma audiência que deixa as suas vidas para se meter numa sala uma hora e meia. Estabelecemos um pacto de ficção. Que o público seja sensível a estas pessoas: atores e equipa artística”, apela.
A mais de 24 horas do espetáculo, estão ocupados 332 dos 426 lugares disponíveis na 1.ª Plateia do auditório. Os bilhetes têm um custo unitário de 10 euros ou de 7,5 euros com desconto.