Ópera regressa com “um par paradoxal” no caminho até à Constituição de 1976
O terceiro capítulo da tetralogia operática que é cerne da quinta edição do Festival de Canto Lírico de Guimarães desenrola-se entre 1972 e 1976, entre o Estado Novo e a Constituição da República Portuguesa hoje em vigor, passando, é claro, pelo 25 de Abril. Eulália, interpretada por Mariana Chaves, é uma estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Filha de um latifundiário do Alentejo, é também imbuída de consciência social. Um amigo de infância, Vicente, vai estudar Direito para a capital, financiado pelo pai de Eulália, que o encarrega de a vigiar. A personagem interpretada por Gonçalo Martins torna‐se informador da PIDE.
“Ele é a personagem mais rica, com maior dimensão psicológica. Apesar de estar do lado dos informadores, continua a querer proteger a sua amiga”, vinca Risoleta Pinto Pedro, autora do libreto de “A evolução dos cravos”, ópera que se estreou em 12 de abril, em Setúbal, e que se apresenta em Guimarães a 18 de maio, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF).
No fundo, o espetáculo de 80 minutos deambula em torno de um “par paradoxal”, cuja evolução acompanha as mudanças históricas em curso. Habituada a “um processo de escrita intuitivo”, o título fez “todo o sentido” à libretista quando lhe apareceu. “Estabelecida a Revolução, é preciso fazer uma evolução. As condições foram criadas naquele dia de 25 de Abril. Antes, aconteciam coisas inimagináveis, principalmente às mulheres. Algumas foram verdadeiras heroínas”, disse, na conferência de imprensa decorrida esta segunda‐feira, no foyer do Grande Auditório Francisca Abreu.
A “componente reflexiva” da ópera sobre os acontecimentos de então está, em parte, ancorada na experiência pessoal de Risoleta; estudante na Faculdade de Letras, em Lisboa, quando se dá o 25 de Abril, a autora conheceu “o antes, o durante e o depois” da Revolução dos Cravos, lembrando a passagem de livros proibidos por debaixo das mesas, as reuniões proibidas em que participou, às vezes interrompidas por aqueles a quem chamavam “gorilas”, e o heroísmo que emergiu num regime de quem só pode “ter saudades quem não o viveu verdadeiramente e ouve histórias mitificadas”.
“Para mim, é uma coisa real porque foi vivida. Mas não há nada que seja totalmente mau, mesmo num regime assim, até porque o mal atrai o bem. Havia os bons exemplos de resistência, heroísmo e coragem. Essa era a luz das pessoas que viviam naquele regime”, lembra.
“Como reagimos perante acontecimentos graves?”
Com música de Vítor Rua, encenação e coreografia de Iolanda Rodrigues, figurinos de Sara Rodrigues, comunicação e imagem de Maria Madalena, “A evolução dos cravos” tem direção artística de Jorge Salgueiro, também o diretor da Associação Setúbal Voz, que tem produzido a tetralogia operática em curso, numa parceria com a Associação de Socorros Mútuos Artística Vimaranense (ASMAV), com o apoio da Direção‐Geral das Artes e das câmaras de Guimarães e de Setúbal.
O maestro e responsável artístico realçou que a ópera é “muito psicadélica”, inspirada nos figurinos e nos comportamentos da década de 70 do século XX, ostentando, por exemplo, a figura de António de Oliveira Salazar, principal rosto da ditadura que precedeu o 25 de Abril, a ocupar o palco como “alma penada”, e a representação de Jesus Cristo a beber coca‐cola com os estudantes – à época, a bebida era proibida –, um Cristo “bom, revolucionário e transgressor”.
Convencido de que a ópera é o “espetáculo mais artístico que existe”, já que todos os seus elementos – artes plásticas, música, voz – são “transpostos, artificiais, construídos”, Jorge Salgueiro vinca que o público vai assistir a uma ópera do século XXI, não a uma ópera de Mozart, com uma história “com princípio, meio e fim”. “Não podemos tratar o público como não informado. Temos de partir do princípio de que o público está preparado para um quadro feito no século XXI. Ela é muito livre em relação ao texto”, referiu.
No caso específico de “A evolução dos cravos”, a plateia vai‐se deparar com o comportamento humano em situações limite. “Mostra como reagimos perante acontecimentos graves. Num tempo como aquele, são muito poucos os que têm coragem de ser presos. O Vicente era colaborador do regime e foi dos principais responsáveis na elaboração da Constituição de 1976”, vinca.
Presidente da ASMAV, Francisco Teixeira disse esperar que a Constituição de 1976 marque “a história de Portugal para os próximos 100 a 200 anos”, num “quadro geral de preocupação com a democracia portuguesa, na Europa e no mundo”, impedindo a emergência de constituições como a que tetralogia operática vai querer exorcizar no quarto e último capítulo: “2030 ‐ A nova ordem”, com apresentação em Guimarães a 14 de dezembro.
Já Paulo Lopes Silva, vereador para a cultura da Câmara Municipal de Guimarães, realçou que o Festival de Canto Lírico de Guimarães é “um projeto sobre o qual não tem dúvidas e hesitações quanto à importância para o território”, daí ter passado a dispor “um apoio anual regular, expectável e previsível anualmente”, ao abrigo de um conjunto de projetos de interesse municipal.