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Por entre sacrifício e reflexões, o caminho da espiritualidade

Carolina Pereira
Sociedade \ domingo, julho 18, 2021
© Direitos reservados
Peregrinos partem de longe e celebram uma rota, muitos para saciar o espírito, outros pelo desafio. Quem passa pelo caminho repara: há uma crescente busca por algo maior.

Partem para longe, vivem a experiência do desconhecido, do desapego, da introspeção, da fé. Entre os milhares de pessoas que se aventuram na malha de percursos que rasga Guimarães e desemboca nos destinos santos, há uma parte significativa que vai "em bando", com amigos.

O termo peregrinus, do latim, abrange todo aquele que ruma por terras estranhas, mas é impensável excluir Albino Pereira dessa categoria, ainda que o destino seja sempre o mesmo. Prepara-se para fazer a 19.ª jornada à Basílica do São Bento da Porta Aberta. Todos os anos repete a jornada em honra do pai, em tempos guia de peregrinos que não sabiam como se orientar. O caminho era mais difícil, por entre o mato, onde peripécias como encontrar pontes destruídas e ficar com água pela cintura eram possíveis. Para evitar esse tipo de situações, era necessária a companhia de quem conhecesse o trilho como se da palma da mão se tratasse.

“Era preciso alguém que soubesse o caminho e o meu pai chegou a fazer aquele percurso 14 vezes num ano. Muita gente pedia a sua ajuda. Hoje é tudo muito aberto e há estradas. Eu ainda faço por monte, porque conheço o caminho antigo e depois vamos ter às Cerdeirinhas e das Cerdeirinhas vamos lá ter. Para treinar ainda vamos fazer a ronda da Lapinha”, descreve.

São mais ou menos seis horas de caminho sob as estrelas, com “pilhas” para alumiar o caminho. Hoje quem vai, seja acompanhado, seja por sua conta, encontra sempre companhia. O espírito de grupo torna-se importante nas alturas de maior aflição, quando as bolhas de água insistem em fazer-se sentir ou quando a mente começa a falhar. Albino conta que já teve de puxar a esposa com o próprio cinto, numa etapa em que a desmotivação começava a latejar.

Para si, o segredo para a resiliência está no intuito com que se vai. “Quando alguém me diz que também quer ir, eu costumo perguntar: mas vais por promessa ou vais por ir? É que se fores por promessa é mais fácil, porque há uma mão que nos empurra. É uma força maior. Agora, quem vai pelo passeio, ao mais pequeno contratempo desiste e chama um carro que o traga de volta. O São Bento é pelo sacrifício”.

 

 

É às portas do Parque Nacional da Peneda-Gerês que se ergue esse santuário beneditino, o segundo que mais gente atrai em Portugal – costumava receber uma média anual de duas milhões de pessoas, antes desse número cair para 600 mil no ano pandêmico de 2020, que forçou o encerramento parcial da basílica em março, abril e maio.

No verão, tempo que alberga o dia de São Bento – 11 de julho -, aquele lugar envolto pelo verde da montanha acolhe mais gente. Veem-se peregrinos que vão lá cumprir uma promessa ou turistas que fruem do São Bento enquanto parte do Gerês, pernoitando nas estâncias hoteleiras. Os turistas não entram, contudo, nas estatísticas da Irmandade de São Bento da Porta Aberta, assegura o santuário ao Jornal de Guimarães.

O comércio e as famílias a pagar por fotos a preto e branco compõem uma tela humana que retrata esperança: filas para pagar as promessas, joelhos a baterem-se no chão em volta da Basílica, velas já a derreter e outras ainda a ser acesas, burburinhos de orações. Por detrás de cada rosto, uma motivação diferente para ali estar. O retrato em torno do São Bento é um microcosmos do fenómeno peregrino: desde quem pede perdão pelas suas faltas ou recorre ao santuário em cumprimento de um voto, no mais puro estado de devoção, aos simples viajantes que querem satisfazer a sua curiosidade.

A religião e a espiritualidade convivem cada vez mais com o turismo e o espírito de aventura, mas quem vai garante que vem de lá diferente. Independentemente da motivação com a qual se parte, é no local de chegada que se sacia a sede de saúde espiritual. E a verdade é que, para atingir tal objetivo, é preciso muito mais do que uma mochila nas costas. Afinal, os quilómetros das rotas exigem preparo físico à altura do esforço e abertura de mente.

 

 

No caso de São Bento, porém, o caminho hoje percorrido pela maioria não tem nada a ver com o caminho de monte de há 30 anos. Um pouco mais reservado do que Albino, Carlos Sampaio guarda a sua intenção de peregrino para si e para o santo, porque só a eles diz respeito, mas garante que só percorrendo o caminho como já o fez dezenas de vezes, sentiu o dever cumprido.

“Eu sei que era mais fácil dar a esmola ao santo, dar 10 contos quando fosse de carro, mas isso não era sacrifício nenhum para mim. E eu não era rico. Mas preferia fazer sacrifício físico e mental, a dar 10 ou 20 contos. Isso seria demasiado fácil”, referiu.

A dificuldade é sentida quanto mais próximos do objetivo e, para muitos, o momento mais crítico pode ocorrer quando se chega à ponte de Rio Caldo. Nesse momento, ainda há quem se desafie e tenha pernas para correr, para ver se chega mais rápido, mas poucos têm essa destreza, até porque a mente ludibria a perceção dos três quilómetros de distância indicados pela placa. “O pior é chegar à ponte porque, da ponte até ao São Bento estão marcados três quilómetros, que parecem seis ou sete. Aquilo é curva e contracurva, em que se está constantemente a dizer: é já ali! E depois não é e parece que nunca chegamos”, objeta Albino Pereira.

Passado esse parcial, a hora de chegada tende a ser entre as quatro e as seis horas da manhã. Noutros tempos, esse horário era prematuro e muitos ainda desencarecem os momentos em que bateram com o nariz na porta, que “devia estar aberta”. Nessa situação, uns iam embora, outros aguardavam, por vezes duas ou três horas, até que pudessem ver São Bento, assistir à missa e partir com sentimento de missão cumprida. “Dizemos que não voltamos, mas quando lá chegamos, vamos ao São Bentinho e diz-se: se para o ano me deres vida e saúde, venho cá novamente. E o facto é que lá voltamos. Tive na minha vida contratempos e além de honrar o meu pai, vou ao São Bentinho agradecer a estabilidade que encontrei”, acrescenta.

 

"Se for por promessa, é mais fácil. Há uma mão que nos empurra", Albino Pereira

 

Tal como o São Bento, Fátima move credo. Maria Helena lembra a viagem piedosa da sua mãe por agradecimento de ter o filho salvo. “Depois de um período na tropa, o meu irmão mais velho voltou a ser chamado para a guerra em Angola. A minha mãe na aflição disse: Senhora de Fátima Bendita sejas, permite que o meu filho não vá para a guerra. E depois ele só foi para substituir outros que tinham sido chamados para Angola, então ficou por Lisboa no quartel. Fez lá uns tempos e regressou. A minha mãe foi, ao longo de uma semana, para agradecer o facto dele ter ficado e para cumprir a promessa”, conta.

Em anos mais recentes, Marta Oliveira cumpriu o mesmo trajeto exigente que a mãe de Maria Helena. Ao contrário da maioria dos peregrinos que acorrem pela estrada, a vimaranense preferiu um caminho alternativo, pelas aldeias e campos em vez do típico alcatrão, não só para evitar os perigos que acarreta caminhar pela estrada nacional, como também pela beleza das paisagens e pela “portugalidade”.

Devota e por curiosidade, apanhou uma semana de extremo calor em que se sentiram 40 graus. Todos os dias alguém do grupo parava no posto médico, mas nada que justificasse interromper a meta dos 240 quilómetros. “Mesmo quando tive algum tipo de dor, não foi sacrifício. Tive uma pequena entorse logo na segunda ou terceira etapa, mas como não podia parar, ia pondo gelo e ligava o pé durante a noite. Mas nem isso acho que possa ser considerado um sacrifício. Era um objetivo. Não vou dizer que seja aquela coisa exagerada de ter mesmo de fazer, aconteça o que acontecer. Encaramos aquilo com a crença e a vontade de percorrer, não como obrigação, mas por gosto e alegria”, partilha a peregrina.

Fátima leva o peregrino a optar por uma das hipóteses: ou fazer por etapas curtas, de fim de semana em fim de semana ou mês em mês, ou tudo seguido e fazer cerca de 40 quilómetros por dia. É este final que acaba por ser mais exigente. Há quem diga que, apesar do apego por parte dos portugueses, a mística desta peregrinação ainda está por descobrir; talvez por ser uma peregrinação mais recente, com 100 anos, e a historicidade não ser evidente. Em todo o caso, a peregrinação leva milhões de pessoas esperançosas ao local e, ainda que o cansaço se sinta, a fé leva a melhor.

 

 

Compostela: uma mochila, as botas e pouco mais

De Guimarães a Santiago de Compostela, são sete dias de distância e, apesar da sua forte conotação religiosa e espiritual, hoje em dia vários são os peregrinos que percorrem o Caminho de Santiago com o objetivo de superarem os seus limites físicos e mentais, acima de tudo. Ainda assim, existe história por explorar. Aliás, a peregrinação em nome de Santiago é tão antiga que se perde nos livros.

Reza a lenda que os restos mortais do São Tiago, Apóstolo de Cristo, foram enterrados no local onde fica a Catedral. Mas antes disso, já os romanos percorriam uma estrada que faz hoje parte das rotas, com o objetivo de fazer comércio. Aliás, foram os conquistadores de Roma que começaram a chamar "Finisterrae" a Finisterra, para onde alguns peregrinos continuam a sua jornada, depois de Santiago, até ao mar. Um caminho fatigante e com menos condições para se chegar ao "Fim da Terra".

Há quem diga que o caminho só agora esteja a ganhar projeção, mas a atual popularidade poderá ter a ver com um trabalho de longo prazo, segundo Nuno Lopes, membro da Associação Portuguesa de Jacobeus. A sinalização portuguesa iniciou-se no final dos anos 70 e princípios de 80, com um padre do Sobreiro, chamado Elias Valinho. Foi numa altura em que chegavam constantemente peregrinos vindos do Caminho Francês àquela zona para perguntar por onde se fazia a rota. Elias aborreceu-se, pegou numa lata de tinta e começou a sinalizar os caminhos com setas.

A Junta da Galiza e o Jacobeu, a entidade que gere os caminhos de Santiago em Espanha, com o dever de preservar a autenticidade, estudaram e reconheceram caminhos com base histórica, percebendo se se tratavam de vias medievais ou romanas por onde, em tempos, algum peregrino tenha passado. A própria arquitetura está ligada a esses peregrinos que vinham da Europa Central e regressavam. Em Portugal, principalmente no Norte, a influência é percetível. Veja-se a semelhança da Basílica de Pontevedra e da Sé de Braga, por exemplo.

 

"Encaramos aquilo com a crença e a vontade de percorrer, não como obrigação, mas por gosto e alegria", Marta Oliveira

 

Anualmente, a Associação dos Espaços Jacobeus disponibiliza cerca de 7.000 credenciais a peregrinos que desejam chegar à catedral. Durante a pandemia, houve um decréscimo em termos de pedidos presenciais, mas a nível online manteve-se regular. “Houve ali uma fase em que não se podia sair, mas na abertura do verão muita gente aproveitou para trilhar. Queriam ter a credencial para, assim que abrisse, saírem. Muitos simplesmente, como as fronteiras ainda estavam fechadas, faziam desde suas casas até à fronteira. Agora, neste ano, devem concluir”, aponta Nuno Lopes.

De mochila às costas, de cajado e vieira, apenas com bens essenciais, cada um trabalha o seu desprendimento material e foca-se na espiritualidade que a aventura oferece. No entender do peregrino Nuno Lopes, a visibilidade do caminho tem a ver com os contactos intimistas que o percurso promove. Ao longo do caminho, não se passa por ninguém sem que se deseje “buen camino”, o que automaticamente cria empatia e espírito de entreajuda com o semelhante que carrega a mochila.

Há quem se lance ao desafio sozinho, porque sabe que vai fazer amizade pelo caminho, há quem carregue os filhos, há quem demonstre dificuldades de locomoção. Quase todos portam uma história e quase todos se revelam acessíveis e abertos a partilhar. Marta Oliveira estreou-se enquanto peregrina pelo Caminho Português de Compostela e, para si, Santiago tem uma dinâmica forte de introspeção e convívio. “Ao contrário de Fátima, todos os dias passávamos por peregrinos e às vezes encontrávamos mais que uma vez os mesmos. Houve um casal em que todos os dias nos cruzávamos com eles. Às vezes eles até participavam nas eucaristias que fazíamos só para nós no final de cada dia. Santiago também vive um pouco disso: deste convívio entre peregrinos, de várias nacionalidades que se vão entrosando”, relembra.

A rotina também é mais leve, o que pode contribuir para a crescente atração da rota. Em Santiago inicia-se a caminhada pelas seis da manhã e termina-se pela hora do almoço, dando-se por terminada a etapa. Durante o resto do dia passeia, reserva o seu tempo para conhecer a localidade e descansar. Uma diferença para com Fátima, em que grupos caminham da manhã à noite, só com paragem para refeições.

 

 

Existem várias rotas. Quem faz a mais conhecida, o "Caminho Português", por exemplo, a partir de Guimarães, percorre perto de 150 quilómetros para chegar à Catedral de Santiago de Compostela. A rota nacional está a crescer a nível de peregrinos e poderá ainda ter um destaque maior porque é um caminho muito rico em património natural e construído, fazendo com que muitos não só queiram conhecer outros caminhos como repetir a experiência.

É o caso de Nuno Pontes, que já fez nove dos vários caminhos desde 2014. O vimaranense fez a sua última viagem em 2019, acabando por ser interrompido pela pandemia. Tal como ele, Marta tem sede de lá voltar. “Santiago tem vários caminhos, então sim, fiz o português e tenho curiosidade de fazer os outros, conhecer a beleza e o caminho histórico. É uma emoção passar por um sítio com coisas que estão há anos e anos ali. A beleza de Santiago passa por aí, por essa história que vamos caminhando”, afirma.

O ano de 2021 prometia ser intenso. Comemora-se o Ano Santo Jacobeu, já que o dia do apóstolo Santiago Maior, a 25 de julho, assinala-se num domingo. A incerteza na retomada das peregrinações para este ano é aguda e, por essa razão, com anuência do Papa Francisco, decidiu-se prorrogar o Ano Santo deste ano para uma possível normalidade, lá para 2022.

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