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Problemas do primitivismo: curto‐circuito na relação do “eu” com o “outro”

Tiago Mendes Dias
Cultura \ quinta-feira, maio 23, 2024
© Direitos reservados
Partindo da experiência lusa, mas sem se cingir a ela, nova exposição do CIAJG flui pelas tensões de fenómenos como o colonialismo, numa corrente complexa de palavras e imagens com sentidos múltiplos.

Uma das palavras‐chave que orientam a recém‐inaugurada exposição do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) é “civilização”. Enquanto a conversa‐visita deambula entre a designada “mesa‐cobra” – elemento estruturador de palavras e imagens em tons de vermelho, segundo um design que é, também ele, parte da exposição –, uma das curadoras adianta que civilização é uma “palavra problemática”; Mariana Pinto dos Santos realça que ela faz parte do discurso colonialista português, francês ou belga, assente no princípio de que “é preciso civilizar os povos que não o conseguem sozinhos”.

Na sala onde estão justapostas uma pintura da Malangatana, pintor moçambicano, a representação de uma nota de 100 mil meticais, com a imagem da barragem de Cahora Bassa, e de palavras que mencionam o esvaziamento das culturas e sociedades nativas dos territórios colonizados, há menções ao Ato Colonial de 1930, que firma o estatuto do indígena enquanto parte da “missão civilizadora”, com a subsequente hierarquia racial que daí advém, a ideia de objeto figurativo como “objeto de civilização”, patente em autores como José Augusto‐França ou Pierre Francastel, referências da história da arte europeia – e de génese eurocêntrica –, mas também a Walter Benjamin, que afirma “não haver documento de civilização sem que seja documento de barbárie”. “Fazemos curto‐circuito com os discursos de afirmação civilizacional europeia e norte‐americana”, refere Mariana Pinto dos Santos.

Esse curto‐circuito manifesta‐se nas tensões que emergem da relação entre a mesa‐cobra, repleta de pontos de vista sobre o colonialismo português, em palavras e imagens, e das paredes, com várias obras de arte que dão inúmeras camadas de sentido, misturadas até, ao que é primitivo; tanto pode ser “falta de civilização” ou “algo selvagem e desregulado”, como está expresso em alguns documentos que misturavam humor e racismo, como algo que está na origem, que se dá primeiro, energia que as vanguardas veem como primordial para a renovação da arte.

Inaugurada no sábado e alvo da conversa‐visita no domingo, “Problemas do primitivismo – a partir de Portugal” encontra‐se no seio dessa conflitualidade e, nas palavras da curadora e coordenadora do CIAJG, Marta Mestre, apresenta‐se como uma “máquina visual” com obras de arte, recortes de imprensa, imagens de quem teve muito protagonismo e de quem foi esquecido, colocadas em movimento “de forma diagramática”. “Há um jogo de reciprocidade”, vinca.

Na exposição que estará patente até 17 de novembro, as “vozes da história, da antropologia e da sociologia” e as obras de arte materializadas em tempos idos surgem no mesmo plano dos artistas que criaram a pensar naquele espaço e naquela mostra; na infindável lista dos autores, o de Mariana Pinto dos Santos surge ao lado do de Mário Cesariny, referência do surrealismo em Portugal, a par de Cruzeiro Seixas, cuja obra se destaca na sala “Mar português” – ao colocar um búzio dentro de uma gaiola, o autor incrustou na obra uma crítica ao colonialismo. A ideia de caixa está, aliás, patente nessa sala, como representação dos estereótipos associados as várias regiões durante o Estado Novo – não só aos povos das colónias, mas também aos do Minho, das Beiras, do Alentejo.

 

Camadas de extração

Os restantes corpos artísticos da exposição distribuem‐se pelos restantes pisos do CIAJG, com o piso ‐1 a servir de anfiteatro para a extração e o piso mais acima para o conceito de “jazz‐band”. Mal se entra no reduto do extrativismo, relacionado com o de “acumulação primitiva” – cunhado por Karl Marx –, é audível o som da uma guitarra – uma obra musical cubana –, fundo para uma série de manequins masculinos com curadoria de Elo Vega e Rogelio López Cuenca, evocativos das infinitas possibilidades de extração no contacto dos espanhóis com os povos indígenas das Américas, vertidas num “tenso apetite sexual”, na “desregulação das emoções” e até no paralelo que emerge dos processos mais massificados de turismo para essas geografias que os europeus se habituaram a classificar de exóticas.

“O primitivismo fala mais sobre nós, em que as ideias de pulsão e de desejo permitem voltar à infância. É um espelho para a nossa narrativa como civilização europeia”, disse Marta Mestre, acerca de mais uma problemática que desafia o visitante na sua complexidade.

A relação do Vale do Ave com as colónias, firmada na importação do algodão para as indústrias têxteis, as criadoras dos produtos que depois se vendiam nesses territórios, também emerge nesse espaço através de vários objetos em grafite de Ludgero Almeida, um artista residente em Guimarães: eles representam as designadas pragas do algodão que o Estado Novo tentava combater nos territórios africanos sob sua administração.

Noutros recantos do piso, o artista suíço Uriel Orlow expõe tudo aquilo que se pode extrair de uma árvore, enquanto as pinturas de Ilídio Candja Candja, artista moçambicano que reside em Vila Nova de Gaia, criam imaginários e sentidos a partir da coleção de José de Guimarães que habita em permanência aquele museu.

Mais acima, o termo jazz‐band, mencionado por António Ferro, ideólogo da política cultural do Estado Novo, evoca a energia proveniente dos corpos dançantes a partir de uma banda de sopros com músicos negros, independentemente de ser jazz ou não. O termo surge em alusão aos espetáculos de músicos negros em Portugal, como Sidney Bechet ou Josephine Baker, e à vaga de modernidade que lhes estava associada.

 

José de Guimarães como artista próximo da “ideia do outro, de alteridade”

Na antecâmara da visita, Marta Mestre salientou a ligação da exposição recém‐inaugurada a toda a obra de José de Guimarães, inclusive as coleções de arte expostas em permanência no CIAJG. Por duas vezes presente em Angola durante a Guerra Colonial, o artista vimaranense cunhou o “Alfabeto africano” a partir da relação com povos da Lunda e do fascínio para com as expressões artísticas que encontrou, acrescenta Marta Mestre. 

Para a curadora, a sua obra transparece um diálogo entre a arte de povos africanos e a art pop, corrente que se alimenta do fetiche pelo consumo e pela mercadoria. “É um artista há muito tempo próximo do primitivo, da ideia de outro, da ideia de alteridade. O seu percurso é um grande arco temporal de formulação das vanguardas da ideia do outro”, realçou.

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