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A Oeste, devolve-se a vida à roupa moribunda. E isso transforma quem o faz

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ quinta-feira, dezembro 29, 2022
© Direitos reservados
Uma antiga sala de aula em Ronfe é agora ateliê onde habitantes da CSIF Oeste reutilizam e transformam vestuário sem uso. Esse trabalho é o cerne do CriativaMente, projeto que até originou um desfile.

Por um instante, Margarida Marques desvia a atenção da mesa e do trabalho em curso; mostra a sua criação preferida. “São uns carapins de bebé”, identifica. A antiga EB1 de Gemunde, em Ronfe, já lhe era familiar num tempo pré-pandemia, quando frequentava a ginástica e a música, mas a conversão de vestuário considerado inútil em peças com valor renovado só se fez quotidiano há cerca de três meses. “É um sítio onde posso aprender de tudo”, lembra.

E assim a cidadã de 63 anos passou a viver o dia a dia CriativaMente, projeto que, ao mesmo tempo, visa “promover a reabilitação e integração social das pessoas com problemas de saúde mental” e a “economia circular”, através da transformação, reutilização ou reciclagem de vestuário sem uso, lê-se na apresentação.

“O projeto nasce da Comissão Social Interfreguesias do Oeste. Havia falta de resposta na área da saúde mental. Quando falo de saúde mental, falo sobretudo de casos em que as pessoas estão em casa sozinhas e podem entrar depois em depressões. Não tem nada de depreciativo”, avisa Adelaide Silva, presidente da Junta de Freguesia de Ronfe, território onde está sediada a iniciativa, que tem como proponente a associação Academia da Razão.

Pessoas em situação de desemprego, lay-off ou precariedade laboral, com poucos anos de escolaridade ou abrangidas por prestações e apoios do subsistema público da ação social também se enquadram no projeto.

Margarida deambula pelo crochê, algo que já sabia, mas também pelas malhas, cujas técnicas “tem aprendido”. É uma entre as várias criadoras que ali se reúnem, oriundas dos vários territórios que integram a CSIF Oeste – inclui as vilas de Ronfe e de Brito, a União de Freguesias (UF) de Airão Santa Maria, Airão São João e Vermil e a UF de Leitões, Oleiros e Figueiredo.

Dores Gonçalves regressou a Santa Maria de Airão em 2021, depois de 16 anos em Beausoleil, município francês na fronteira com o Mónaco. Até “estava a gostar do descanso nos primeiros tempos”, antes de o tédio entrar em cena e de o CriativaMente lhe chegar aos ouvidos, graças a uma sobrinha. “Este projeto veio na hora certa. Estava mesmo a precisar de alguma coisa que me tirasse de casa”, confessa ao Jornal de Guimarães, enquanto move as agulhas de tricotar, entre Ana Maria Freitas e Maria de Jesus Oliveira.

Carapins, “casaquinhos de bebé”, pantufas, gorros, golas e luvas contam-se entre as suas criações desde que se apresentou para a primeira sessão de trabalho, em setembro. O desfile que, segundo o plano de atividades, se afirmava como corolário do CriativaMente aproximava-se e era preciso mais gente para ajudar a “transformar a roupa doada”. Foi nesses dias de azáfama que Dores Gonçalves consumou a mais marcante das peças que têm a sua mão: um vestido azul com uma gravata, idealizado para esse desfile, “Como a aranha tece a teia”, realizado a 23 de setembro, naquela antiga escola.

 

Algumas das peças criadas a partir de materiais usados na antiga EB1 de Gemunde, em Ronfe

Algumas das peças criadas a partir de materiais usados na antiga EB1 de Gemunde, em Ronfe

 

“Dá-me a sensação de que a minha tese foi escrita para o projeto e vice-versa”

Esse desfile teve a coordenação de Beatriz Martins, alguém que tem feito do “vestuário personalizado” a sua área profissional ao longo da vida, combinando essa faceta com “a formação de base em sociologia”.

O CriativaMente é a mais recente oportunidade para explorar o paradigma de slow fashion – moda lenta -, que começou a prender a sua atenção há cerca de uma década, aquando da última “grande crise” financeira, com repercussões no tecido industrial local. Para se “atualizar em termos teóricos”, a estilista regressou à Universidade do Minho e verteu esse conhecimento para a dissertação Recuperar Memórias, Um passo de Slow Fashion – personalização de vestuário, um possível círculo como projeto de intervenção, defendida em outubro de 2017, no âmbito do mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, do Instituto de Ciências Sociais.

“Decidi pegar na moda lenta, porque se enquadrava no meu propósito de vida, porque ia ao encontro do que defendia. O vestuário personalizado inibia o consumismo, porque tem vínculos, tem afetos, tem mais a ver com quem o usa”, detalha.

Pelo meio, Beatriz Martins aplicou esses conceitos em projetos que expôs na Plataforma das Artes e Criatividade, como o Rasgos de Artes – envolvia criação a partir de lixo de embrulhos de Natal e de amostras têxteis-lar -, antes de a covid-19 desencadear a necessidade de “alternativas para pessoas desempregadas”, catalisador para o ateliê de reconversão de vestuário que foi convidada a orientar.

“Não queriam uma costureira em si, queriam alguém das artes, com o foco no vestuário. Queriam um bocadinho mais”, recorda. “Ligaram-me e estive em reunião com as técnicas. Quando me passaram o conceito do projeto, tive a sensação de que me roubaram a tese. (…) Não fui eu a mentora do projeto, mas dá-me a sensação que a minha tese foi escrita para o projeto e vice-versa”.

O regresso a Ronfe, onde já trabalhara, na Somelos, deu-se em março de 2022; foi o ponto de partida para colocar os “saberes do vestuário e da moda” ao serviço do desfile que viria a decorrer meio ano depois, num enlace com “conceitos sociológicos de diversidade e de género” e com intervenientes de “várias faixas etárias”. “O evento mostrou peças recuperadas. E iniciámos do masculino para o feminino, porque tínhamos muitas camisas de homem. A nossa inspiração é o que temos”, refere. No hall daquele edifício, vê-se uma camisa branca transformada numa peça com rendilhados vermelhos, exibida no desfile.

Beatriz Martins enaltece ainda a vocação do projeto para “recuperar mentes” enquanto recupera “o dito lixo do mercado”, afirmando “sustentabilidade por todas as frentes”, e para “recuperar práticas culturais” que “se estão a apagar”: os saberes do antigo alfaiate ou da antiga costureira, obliterados pela automatização da indústria.

“A indústria têxtil cria trabalhadores mecanizados, despersonalizados. O vestuário concebido pelo antigo alfaiate e pela antiga costureira são diferentes. É mais personalizado, a pensar em alguém. Não é massivo, não prevê o consumo em série”, resume. A responsável crê, por isso, que a relação com as escolas deve constar do horizonte do CriativaMente, projeto aprovado em 2021, com financiamento do programa estatal de ação social Bairros Saudáveis – 35.730 euros dentro do teto de 50 mil que o Governo disponibilizava.

A verba corresponde a todo o ano de 2022, pelo que é preciso encontrar outros caminhos para prolongar o CriativaMente. “Vamos tentar mantê-lo e alargá-lo. Houve uma resposta positiva, quer pela avaliação que fazemos, quer pela integração das pessoas”, dá conta Adelaide Silva.

 

Uma das peças do desfile "Como a aranha tece a teia", coordenado por Beatriz Martins e realizado a 23 de setembro

Uma das peças do desfile "Como a aranha tece a teia", coordenado por Beatriz Martins e realizado a 23 de setembro

 

Projeto “aberto à comunidade”, ao “ritmo” de cada um

Esquematizado o projeto, era forçoso identificar pessoas que se enquadrassem no CriativaMente. A Academia da Razão conseguiu-o em parceria com o movimento associativo daquela CSIF: a Cooperativa de Artes, Intervenção Social e Animação (CAISA), a Associação de Defesa dos Direitos Humanos de Guimarães (ADDHG) ou a MoveBrito, adianta Joana Freitas, uma das psicólogas que coordena o funcionamento da antiga EB1 de Gemunde, agora denominado Espaço Arte e Cultura.

Os intervenientes de Ronfe – Ana Maria, Margarida e Elisabete Freitas – aderiram por indicação de voluntários de ação social na vila. Reunidas as participantes, cabe à Academia da Razão garantir o seu transporte. Divulgar o CriativaMente é outra das missões de quem ali trabalha: pese a atenção a quem está mais fragilizado na saúde mental, o projeto é “completamente aberto” à comunidade, esclarece a responsável.

“Temos participantes que aparecem quando querem. Às vezes, vem duas ou três vezes por semana. Noutra semana, têm outros afazeres e não vêm. Não há obrigatoriedade de participar todos os dias. E é completamente aberto a qualquer pessoa”, detalha Joana Freitas, psicóloga que supervisiona aquele espaço, ao abrigo do projeto de envelhecimento ativo Intervenção Local – Promoção da Qualidade de Vida, criado em 2015 pela Junta de Ronfe, com o apoio da Câmara Municipal.

Virada a página do desfile, as intervenientes do CriativaMente traçaram um novo objetivo para celebrar aquele espaço de criação e de partilha: criar um fundo a partir daqueles “pequenos trabalhos” para fazerem “uma viagem a Paris”. “Tem de ser na época baixa”, ri-se Joana.

Haja ou não viagem à cidade luz, Dores Gonçalves vê aquela sala de aula, repleta de malhas, lãs e tecidos que encarnam histórias, como um processo de autodescoberta que tem deixado a sua vida “mais feliz”. “Criamos coisas que nem sabíamos que conseguíamos. E isto tira-nos de casa. Mantém-nos ocupados, o que é uma mais-valia para a mente”, descreve.

Ao lado, Margarida Marques também se sente “mais feliz”. Para trás, está uma vida de trabalho na indústria têxtil até ficar “reformada por invalidez”. Pela frente, espera-a uma operação a uma das mãos, que espera “há três meses”. Pelo meio, articula os dedos graças ao CriativaMente. E já sabe a peça que está por vir, em tempo de Inverno. “A próxima peça é para mim. Uns carapins para mim. Vou pegar neste modelo e fazer maior. A minha casa é muito húmida”, revela, apontando para a miniatura que ali repousa.

 

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