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São Faustino é terra em flor com uma rua a condizer, mas o futuro é incerto

Tiago Mendes Dias
Freguesias \ sábado, novembro 20, 2021
© Direitos reservados
O cultivo distingue a freguesia no extremo sul de Guimarães, como atesta a Rua das Flores, aberta há 24 anos. Mas as mulheres que dão cor aos campos temem que as gerações seguintes abandonem o ofício.

De boné pousado para se escudar do sol outonal, Angélica move-se pelo seu terreno, entre caules tão ou mais altos do que quem os plantou. Deita um olhar atento aos botões, oscilando a cabeça; procura aqueles que já rebentaram para os colher e guardar na carrinha. É o transporte para o mercado municipal de Guimarães, onde, às sextas-feiras e aos sábados, vende as flores que cria. “Isto são margaridas-do-campo, a que chamamos urtemije”, aponta a floricultora de 66 anos. “Há a margarida de fora, aquelas caras, e estas, mais baratas. É a última flor do ano. Vem dos Santos até ao Natal”.

É ao Dia de Todos os Santos, tempo propício à venda de flores – “até foram boas neste ano” -, que Angélica Gomes associa as primeiras memórias do cultivo; foi pela altura do feriado que a mãe começou, há mais de 50 anos. “A minha mãe ia para a feira vender fruta e batatas para o mercado, e começou a plantar. Foi nestas flores e nas já cortadas para os Santos, os crisântemos”, recorda.

Morria assim a semente que viria a desabrochar os amarelos, vermelhos, rosados e violetas que pontuam a encosta verde de São Faustino, extensível do alto de São Simão – área entre Tabuadelo e Abação - às margens do rio Vizela, em Tagilde, sob a vigília do São Bento das Peras. Mais ou menos carregados, os padrões que por ali se veem são, em boa parte, uma herança dessa decisão: num lote de 11 irmãos (incluindo Angélica), há sete raparigas. Cinco delas cultivam.

Desde que se lembra de ser gente, Celeste Silva vive com flores; na sua consciência, ainda bruxuleiam as memórias da mãe a vender as primeiras flores, ao lado das batatas e dos cereais, e de uma tia a assear a igreja. Há meio século, comprar flores para fins simbólicos era ainda um luxo. “Lembro-me dos primeiros raminhos que a minha tia levou para a feira. As pessoas olhavam para ela e diziam que eram bonitos, mas que o dinheiro era preciso para comer”, recorda a habitante de São Faustino, hoje com 60 anos.

A procura era escassa e espécies como cravos, indicadas para momentos mais solenes, nem sequer estavam à venda em Guimarães. “Ia com a minha tia a Braga buscar cravos para a festa de Nossa Senhora das Candeias [em fevereiro]. Eram precisas flores melhores e tinham de lá ir. As pessoas já asseavam as igrejas, mas com aquilo que cultivavam”, detalha.

A vida, porém, “foi-se tornando mais fácil”, as pessoas começaram a ter “mais um bocadinho de dinheiro” e a produção aumentou e diversificou-se, nota Celeste Silva. A floricultura incrustou-se de tal forma na identidade da freguesia, que até consta do brasão – oito botões amarelos circundam a espada do padroeiro – e da toponímia – a artéria contígua ao terreno de Angélica é a rua das Flores, aberta há 24 anos. Nasci ali em cima, no lugar do Balborreiro, e isto era tudo campos. Nesta parte, havia uma quinta de um tio meu. Aqui, era dos meus avós. Aqui era de outra irmã do meu pai”, esclarece. Tudo em família, portanto.

 

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

 

O acesso que faltava

A cultura da flor tem estado praticamente restrita às mulheres, já que, por norma, os homens “trabalhavam fora”; era a forma de avolumar o pé de meia para sustento da família. “Os maridos trabalhavam fora. E nós íamos tendo os filhos e fazendo as flores", resume Angélica. O seu esposo, Manuel, é um desses exemplos: não trabalhou na terra e está hoje impossibilitado de o fazer. Já foi operado à coluna por duas vezes, limitando-se a pegar ocasionalmente no trator para fresar o terreno.

No entanto, acompanhou o processo que levou à abertura da Rua das Flores, como presidente da Mesa da Assembleia de Freguesia de São Faustino – a união com Tabuadelo vigora desde 2013. “Havia uma rua que vinha do alto de São Simão, chegava a meio da freguesia e parava. O sonho da Junta era abrir uma estrada que ligasse à outra que vinha de São Simão, para dar acesso às freguesias vizinhas de São Paio de Vizela e de Gémeos. Queríamos um acesso mais curto e não tínhamos”, descreve o cidadão, hoje com 67 anos.

Para chegar a essas duas freguesias, um habitante de São Faustino tinha então de subir a São Simão e atravessar Abação ou de descer até Tagilde, antes de virar para São Paio. Para dar conta dos obstáculos à mobilidade daquela comunidade, a Junta de Freguesia convidou o então presidente da Câmara, António Magalhães, para uma sessão de esclarecimento. Era domingo, e Manuel Gomes lembra-se de ter sugerido ao autarca que andasse pelo caminho de terra que se seguia à interrupção da estrada.

“Ele trouxe uma caravana do centro da cidade para aqui e chegámos àquele beco que era só lama. Ele chegou à escola, e falamos-lhe no sonho de abrir a estrada. O senhor presidente disse-nos para arranjar o terreno, que a estrada arrancava logo”, conta.

Face ao sim de Magalhães e dos proprietários, a Junta de São Faustino “fez um projeto”, “meteu-o na Câmara” e “teve logo ordem para avançar”. Por causa do “terreno desnivelado”, a população receava que o novo canal nunca mais fosse “alcatroado”. Mas foi; a 09 de novembro de 1997, a rua era inaugurada pelo homem que liderava os destinos de Guimarães. Com o nome que hoje tem. “O presidente da Junta na altura, o Policarpo Ribeiro, disse logo que queria rua das Flores. Foi uma sugestão unânime”, constata.

Para Manuel Gomes, aquela rua de alcatrão sem mácula, banhada por algumas casas, de um lado, e por flores inúmeras, do outro, é a “obra mais importante” que já viu em São Faustino. “Ali vemos a igreja de São Paio de Vizela. Estamos a poucos metros e tínhamos de fazer uma distância terrível. Ficámos com outras condições”, constata.

 

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

 

As flores ali tecidas encantam Guimarães… e não só

A dezenas de metros da rua das Flores, nas traseiras da igreja paroquial e do cemitério, vislumbram-se faixas de terra perfeitamente alinhadas que variam nos tons e nos tamanhos do que ali está. De bata vestida, Conceição Faria inspeciona uma delas; é a que tem as cravelinas, flores plantadas em setembro que são as primeiras a desabrochar na primavera, ali por março ou abril. “São as que levam mais tempo para rebentar”, adianta.

A floricultura acompanha-a desde 2008, ano em que abandonou a fábrica têxtil do Castanheiro. A única ligação à atividade tinha-a por via da sogra, mas arriscou e gostou. Passados 13 anos, mostra com agrado o que faz, descrevendo cada uma das parcelas. “Isto é beijinhos-de-mãe”, refere, apontando para uma planta cuja flor só desabrocha no próximo ano. Vê-se também a couve ornamental, a florescer num roxo intenso depois de plantada em fevereiro, e, mais longe, os crisântemos que restaram do Dia de Todos os Santos, cercados por estacas.

Aquela produção escoa-se através do mercado municipal de Guimarães, onde tem uma banca, do fornecimento a floristas, para revenda, e até de gente que se desloca a São Faustino para comprar. “Temos gente de concelhos vizinhos a vir comprar, como de Fafe. Até de Joane, há gente que vem cá”, diz.

Aos 48 anos, Conceição Faria diz não conhecer ninguém mais jovem entre as cerca de 10 mulheres de São Faustino que vendem no mercado. Incluem-se nesse grupo Celeste e Angélica. Cada ramo, formado por cerca de uma dúzia de flores, todas do campo – em São Faustino, não há qualquer vestígio de estufa – vende-se por cerca de 0,75 cêntimos a um euro no mercado, estima Celeste Silva. “É uma coisa que dá trabalho, mas também um bocadinho de dinheiro. Planto batata e cebola para comer e levo o resto para a feira ou para o mercado. Como no inverno começa a não haver flores, estou a plantar grelos”, descreve.

Angélica concorda que o negócio dá, pelo menos, para suportar os custos com a renda no mercado municipal. “Tenho três lugares: um em meu nome, outro em nome do meu marido e outro da minha filha. Como vou à sexta-feira e ao sábado, dá cinco euros por lugar, em cada semana. Com três lugares, dá mais ou menos 60 euros por mês”, articula.

 

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

 

O medo das primaveras despidas

A floricultura daquela terra faz-se ainda de statices e de sécias, espécies que florescem no verão. O inverno, contudo, é o tempo em que o revestimento dos campos se limita ao verde do Minho. “De janeiro a março, não se veem flores. Está tudo despido”, constata Angélica Gomes.

O receio desta floricultura é que a perda de cor se alastre às restantes estações do ano. A razão é uma: não vê os filhos nem outras pessoas das gerações seguintes com predisposição ou aptidão para manter vivo o ofício. “O povo está a deixar o terreno. Lá para diante, está tudo a monte. Aqui para cima, está tudo a monte. Há quintas e quintas abandonadas, porque não há uma pessoa nova a tomar conta. As minhas filhas dizem-me para trabalhar menos, mas eu digo-lhes que não vai haver ninguém para dar continuidade”, lamenta.

O ciclo produtivo é “muito trabalhoso”, prossegue. É preciso “plantar tudo à enxada”, antes do trator atuar sobre o terreno, e depois “sachar com uma enxada mais pequena”. Feitas essas tarefas, arranca-se a erva à mão, colocando-se depois as estacas e as redes para proteger as culturas. A tecnologia poderia ser uma solução, não fosse a morfologia do terreno e a escala reduzida das produções. “Em campos grandes, colocam-se máquinas e as coisas dão. Isto aqui são umas leiras. É tudo à mão”, diz, encolhendo os ombros.

A irmã Celeste testemunha igualmente o “muito trabalho” que a produção de flores acarreta, não só no campo, como nas idas ao mercado. “Dizem que na agricultura se trabalha de sol a sol, mas quem me dera trabalhar só de sol a sol. Isto dá rendimento, porque nos deitamos deitamo-nos à meia-noite e acordamos entre as 03h30 e 04h00 para ir para o mercado”, descreve.

A floricultora difere, porém, de Angélica quanto ao futuro da arte, já que não tenciona ver os filhos rodeados de terra e verdura, entregues ao cultivo das flores. “Vamos com isto até ao fim, mas não quero que os meus filhos sigam isto", reitera. "Para tirarmos um bocadinho, temos de trabalhar muita hora. Quero que tenham uma vida mais suave”.

Quando as flores “abrem bonitas” e “vendem-se bem”, o trabalho até é “prazeroso”, mas, cada vez mais, as doenças são um adversário na floricultura, menciona ainda Celeste Silva. “Muitas vezes não sabemos como combater essas doenças. Há 20 anos, tínhamos as flores sem ser preciso sulfatá-las. Agora é preciso sulfatar desde que nascem até se colherem”, compara.

Os ventos parecem adversos, mas Angélica encara-os determinada. Vai tirar flores da terra enquanto puder. “Quando acabar a nossa geração, a flor do campo acaba. Não há ninguém a começar. Mas eu e as minhas irmãs estamos habituadas e vamos até ao fim, mesmo que dê muito trabalho. Isto aqui só volta a aparecer daqui a um ano”, aponta para a urtemije, com o inverno a espreitar pela encosta.

 

@ Hugo Marcelo/Jornal de Guimarães

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