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Sara Barros Leitão: "Sou herdeira do que foi a luta destas mulheres"

Pedro C. Esteves
Cultura \ sábado, dezembro 11, 2021
© Direitos reservados
Em Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, Sara Barros Leitão tira da invisibilidade a história do trabalho doméstico e de mulheres que são “Quase-como-se-fossem-da-família”.

Em abril de 1974 milhares de mulheres viram uma revolução a acontecer a partir de uma casa que não a sua e o “patrão” a chegar da rua com o cravo na lapela. “O problema do 25 de abril é que não chegou para todos, muito menos para todas”, sentencia, a meio do tour de force que é Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, Sara Barros Leitão.

Guimarães recebeu esta sexta-feira a primeira de duas sessões da mais recente criação de alguém que é muita coisa: ativista, feminista, atriz, encenadora, fundadora da estrutura artística Cassandra, vencedora do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II. O foco da peça é o trabalho doméstico, a relação assimétrica de poder entre empregada e patrões. É a história de pessoas que são “quase como se fossem de família”. E volta a subir ao palco do Centro Cultural Vila Flor este sábado.

A luta destas mulheres, que fazem casa “no pior sítio da casa”, desde a primeira mobilização das empregadas domésticas em Portugal em 1921, ao êxodo de milhares de crianças e jovens raparigas do interior do país para as grandes cidades para trabalharem como criadas de servir, à criação do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico são capítulos da “história do trabalho invisível que põe o mundo a mexer”.

Sara Barros Leitão tira da invisibilidade a história do trabalho de mulheres como a agitadora Conceição Ramos que, no Estoril, liderou a criação de um sindicato que teria de esperar anos pela legalização. Nesta conversa com o Jornal de Guimarães, relembra-se também Catarina e a Beleza de Matar Fascistas – Sara representa uma das Catarinas –, de Tiago Rodrigues, peça que estreou em Guimarães há mais de um ano. Em Monólogo de uma mulher chamada Maria... —"título roubado clandestinamente a um texto do livro “Novas Cartas Portuguesas” —, a encenadora regressa para contar uma história “que não ficou na História”. Tudo cabe num ciclo de lavagem.

 

Em Monólogos de uma mulher chamada Maria com a sua patroa trazes para palco o trabalho doméstico, de pessoas que são, como descreves, “Quase-como-se-fossem-da-família”. Não é a tua primeira incursão pelos monólogos, mas como se desenrola este processo desde ideia até materialização? Diferiu muito em relação a outras criações como a Teoria das Três Idades ou Todos os Dias me Sujo de Coisas Eternas?

Não difere de criações anteriores. Como atriz integro muitos tipos de criações, outros projetos, vou sendo contaminada com outras formas de trabalhar de encenadores e encenadoras e tudo isso acaba por me dar ferramentas para as minhas próprias criações. Nas minhas, o processo tem sido semelhante. Claro que o resultado não. Os temas são distintos e os espetáculos acabam por encontrar vida própria. Comecei com a Teoria das Três Idades, um espetáculo que fiz há três anos sobre o arquivo do Teatro Experimental do Porto. O processo foi semelhante: foi passar muito tempo fechada num arquivo, sem luz, a ler, a ler. A estudar, a ler mais. A perder-me no meio de jornais e cartas.

 

Falas noutras entrevistas na chegada da ideia de trazer para o palco um lado de invisibilidade. Onde procuraste informação?

Comecei num arquivo da CGTP, investiguei os arquivos do primeiro Sindicato de Serviço Doméstico. E foi esse arquivo que me deu outras pistas e outras investigações. Claro que noutras criações anteriores fui aprimorando este tipo de trabalho e investigação. Eu acho que este espetáculo beneficia desses processos anteriores. Até porque desde logo me apercebi que a partir do momento em que quero começar um projeto de investigação assim não o posso fazer completamente sozinha. Desta vez orçamentei e conseguir ter uma socióloga, a Mafalda Araújo, e isso foi fundamental. Significa que vamos crescendo, tendo outros orçamentos. E este espetáculo beneficia disso. A principal diferença foi o facto de ter mais pessoas a trabalhar comigo, o que foi fundamental para conseguirmos chegar a este resultado.

 

Disseste numa conversa com a sindicalista Conceição Ramos que não tens ambição que a peça contribua para mudança de paradigma ou mudança legislativa, até, mas sim tirar da invisibilidade esta história. A plateia que vai ouvir este monólogo conhece as particularidades do trabalho doméstico, lidou ou lida com trabalhadoras domésticas. É uma confrontação que procuras?

É o que se espera do teatro: que nos provoque pensamento, nos faça sonhar, nos tire do nosso sítio de conforto, nos desafie. E isso pode acontecer de várias maneiras, o que acontece ao público depois do espetáculo é responsabilidade sua – eu não posso, nem quero ter nada a ver com isso. Mas aquilo que acontece no momento em que estamos juntos na sala é também responsabilidade minha. Aquilo que eu posso e quero fazer nesse momento: contar histórias, histórias que me interessam, que têm a ver comigo e que mexem comigo. E eu acho que o facto de mexerem comigo, acaba por também mexer em quem as ouve. Porque ficam também contaminados pelo meu empenho e pela minha paixão sobre as histórias que estou em contacto. Contar histórias sobre o serviço doméstico e sobre estas mulheres – e histórias de mobilização e organização – é uma coisa que dá muito prazer, faz todo o sentido para mim. Eu sou uma pessoa de causas, uma mulher, uma mulher que quando chega a sua casa tem trabalho doméstico à sua espera, depois de ter acabado a jornada de trabalho remunerada fora de casa; mas também na minha jornada de trabalho fora de casa sou uma mulher de sindicatos, organização coletiva. Portanto, poder contar uma história de mobilização destas mulheres no Sindicato em 1974 é também aproximar-me muito do que eu sou nos dias de hoje. Com outras ferramentas, outros desafios. Mas sou herdeira do que foi a luta e conquistas destas mulheres dos anos 70 que me abriram caminho para chegar aqui hoje.

 

 

Este trabalho das mulheres, do seu poder de organização, reivindicação e mudança também é bastante familiar na zona do Vale do Ave, com o setor têxtil, que emprega milhares de trabalhadoras; um trabalho por vezes mal remunerado, que lida frequentemente com crises. Há aqui paralelismos possíveis? Uma crítica ao capital que ultrapassa as reivindicações deste setor específico?

Não há dúvida. É transversal a muitos setores, mas acho que há aqui uma interseção interessante. Tem a ver com as mulheres nas várias profissões. De facto, há profissões que são muito efeminizadas: no serviço doméstico a grande maioria são mulheres. O que acontece é que no caso de uma fábrica os sindicatos que foram existindo e a mobilização que foi existindo prendia-se com questões transversais aos trabalhadores e nunca houve espaço… e essa é uma crítica que eu faço não só ao capital, mas também à própria esquerda e à própria forma de organização dos sindicatos: são altamente masculinizados. Os sindicatos reúnem à noite, num momento em que as mulheres não podem participar e o que foi acontecendo mesmo no setor fabril é que as mulheres sentiam-se representadas em parte naquilo que era a sua profissão, mas havia toda uma dimensão delas enquanto mulheres trabalhadoras que não eram representadas pelo sindicato -- porque o sindicato era dirigido pelos homens. É uma questão muito importante. De facto, sim, o espetáculo toca em coisas que as mulheres podem sentir noutras profissões, mas depois há outras de uma esfera mais concreta do serviço doméstico que não se assemelha ao trabalho das mulheres nas fábricas. Na fábrica há sempre um horário de trabalho, há um local de trabalho; no serviço doméstico tu vives no local de trabalho.

 

Surgem também ligações emocionais.

A ligação emocional. Há uma série de camadas que vão para além daquilo que é a reivindicação das mulheres no geral na indústria fabril. Não é nem mais nem menos. É diferente e é sobre isso também que o espetáculo fala.

 

Numa conversa com Mariana Oliveira, no podcast Teatra, do Teatro Nacional D. Maria II, mencionavas a importância de consciência associativista, que é algo que te comove. Criaste associações como a PLATEIA ou a Cassandra e vês isso como um ato político, assim como fazer teatro é um ato político. Consideras que vivemos uma crise de associativismo?

Sim, acho que sim. E acho que a responsabilidade é, em parte, dos sindicatos; mas em grande maioria é também da responsabilidade dos trabalhadores e trabalhadoras e muito, obviamente, do sistema vigente, todo o capitalismo que tem como missão desmantelar qualquer tipo de organização coletiva. Esta narrativa que nos é colocada até nas próprias palavras, em que se repararmos já quase nenhuma empresa chama trabalhadores de trabalhadores, somos colaboradores. E os colaboradores não têm figura jurídica, o que significa que é uma forma sub-reptícia de não nos fazer crer que estamos abrangidos por aquilo que é o Código do Trabalho, por aquilo que são conquistas de centenas de anos de outros trabalhadores, conquistas do 13.º mês, mês de férias, direito às folgas, progressão na carreira. Todas estas conquistas, ao chamarem-nos colaboradores, e ao dizerem-nos que podemos ser empreendedores, ser o nosso próprio empregador… tudo isto é uma grande estratégia de nos desmantelar, de desmantelar a organização coletiva. Há uma crise enorme sindical e coletiva. As pessoas não se associam e embora a internet venha trazer uma rede global fantástica, retira-nos da rua.

 

E a pandemia veio agravar isso.

Deixamos de poder estar na rua, de fazer protestos e a rua é o sítio que nos dá a visibilidade real. Acho que há uma série de planos em marcha para acabar com isto e fazer com que os pobres fiquem mais pobres, mais desprotegidos, e os ricos mais ricos. O sindicalismo vive também essa crise não só porque as pessoas deixam de estar mobilizadas, mas porque têm mais medo.

 

 

A peça Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, de Tiago Rodrigues, na qual interpretas uma das Catarinas, estreou aqui, em Guimarães. Já disseste que as estreias são violentas, mas Monólogo de uma mulher chamada Maria… chega aqui com outra rodagem. Torna tudo diferente?

Vai ser muito diferente. As estreias são estreias, são momentos muito delicados. Isso não é nem mau nem bom. Fico muito feliz que em Guimarães não seja uma estreia porque apesar de não trazer a novidade, os nervos e a frescura de uma estreia, traz outras coisas: a maturidade e a segurança que só beneficia. O espetáculo desde a sua estreia tem vindo a ficar melhor, tenho-o afinado a cada dia que faço e felizmente tenho feito muito. Desde a estreia tenho feito todos os fins-de-semana numa cidade diferente, sem parar, sempre em digressão. Daqui parto para Viseu e esta carreira intensa tem beneficiado muitíssimo. Estamos muito felizes e acho que isso só irá contaminar o público e vamos ter um excelente espetáculo.

Fotografias: © Diana Tinoco

Podcast Jornal de Guimarães
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