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Sara Cáceres: Tal como muitos jovens, uma peça de um "rompecabezas"

Carolina Pereira
Sociedade \ sábado, maio 22, 2021
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Um vaivém traduz sempre uma relação entre dois pontos. Guimarães é um deles, neste caso, enquanto ponto de chegada. O de partida é El Salvador. Uma viagem com um bilhete de vinda faz três anos.

Nunca esteve nos planos de Sara Cáceres, de 28 anos, voar dez horas para longe do seu país. Sara deixou as suas raízes, El Salvador, há já quase quatro anos, em 2017; foi então convidada por um professor universitário para fazer mestrado em Portugal, que gostou de uma apresentação sua num momento em que acompanhava a Associação de Biólogos latino-americanos, num congresso na Costa Rica, em 2016.

A salvadorenha encontrava-se no momento final da licenciatura em biologia e precisava de perspetivas futuras. Disseram-lhe que em Portugal poderia ter mais oportunidades e encarou a mudança com entusiasmo. “Em El Salvador nem sequer existia mestrado. Claro que tinha de sair do meu país para ganhar mais formação. Mas nunca imaginei vir para Portugal. Pensava no México, por exemplo. Mas quando o meu professor me escreveu pensei: “boa, já sei para onde ir”. E no meu país as coisas são caras. Então a diferença de estar lá e cá seria quase nenhuma.”

Para obter mais formação e cumprir o novo objetivo de viajar e estudar na Península Ibérica, Sara precisou de trabalhar e até de pedir um empréstimo, que ainda deve à mãe. Na altura, equilibrou estudos e trabalho num laboratório da sua universidade, onde ganhava insuficientes 250 dólares. A jovem conta que, em El Salvador, existia há cinco anos uma espécie de moda de trabalhar em call centers. Dizia-se que eram as novas “maquilas” (confeções para onde muita gente vai trabalhar). Foi aí que se aventurou por dois meses e meio, pois sabia que lhe pagariam 600 dólares, valor que a ajudaria a cumprir a sua ambição.

Com entusiasmo, comprou bilhete para o norte de Portugal e partiu nesta viagem acompanhada por três colegas panamenhos (oriundos do Panamá). A ideia era estudar no Porto e viver em frente à universidade numa residência, sem precisar de madrugar para ir até às aulas. Mas quando chegou, percebeu que tinha vindo ao engano. Afinal, o mestrado era em Vila do Conde, num centro de investigação que estava “no meio do nada”, com um percurso demorava mais de uma hora desde a sua residência; perdia logo 15 minutos de casa até ao metro e outros 45 minutos no transporte subterrâneo. Depois tinha de esperar por uma carrinha que, de manhã, só passava às 08h30; era o único transporte que a levava até ao local onde estudava.

 

Sara Cáceres, com os amigos Panamenhos em Guimarães.

Sara Cáceres, com os amigos Panamenhos em Guimarães.

 

Estar cá fazia-a sentir-se num “rompecabezas” (puzzle), mas também em casa. Sara adaptou-se bem, sentia que os portugueses facilmente entendiam o seu espanhol. Era preciso fazer um esforço maior para compreender o português, porque os locais falam “um bocadinho com a boca cerrada” e os seus compatriotas falam mais alto. Reparou também que os portugueses são menos alegres do que os salvadorenhos; diz, aliás, nem perceber o humor de Portugal. “Às vezes o Vítor (namorado) fazia piadas, os outros portugueses estavam mesmo a rir imenso e eu só ficava sem perceber a piada. Ficava à espera da piada enquanto os outros já se riam. O Vítor dizia-me que o vosso humor é demasiado inteligente”, ri-se.

Foi ao conhecer o atual namorado, vimaranense, no seu mestrado, que Sara acabou por construir uma ponte entre Vila do Conde e Guimarães. Durante esses anos de estudo, veio algumas vezes de visita aos fins de semana para o acompanhar. Agora, com a pandemia e o mestrado concluído em 2019, é por Guimarães que se mantém a viver, em Santo Estêvão de Briteiros, com a família do namorado. No entanto, pouca coisa se gaba de conhecer da cidade-berço, já que, entre estudar por Vila do Conde e a pandemia, pouco conseguiu explorar. Mas foi aqui que conheceu os pratos típicos, como canja de galinha ou pica no chão – os seus preferidos – e que nunca havia experimentado.

“Eu sou defensora da comida do meu país. Pelo hábito, sinto saudade. Há noites em que até fico a pensar nos pratos tradicionais da minha terra. Aqui, quando me quero lembrar de casa vou ao KFC", confessa. "Nunca aprendi a fazer a comida típica de lá e então não consigo reproduzir. Mas gosto muito da portuguesa. Daqui o que mais gostei, eu sei que é muito simples, é a canja. Lá metem batata, cenoura, fica diferente. Outra coisa é o pica no chão. Adoro, nunca tinha provado. Todos os pratos de frango são mesmo bons"

Em El Salvador, o contexto é de grandes taxas de criminalidade; é considerado um dos países mais violentos do mundo, o que se deve em parte à pobreza. Cerca de um sexto de uma população a rondar os 6,4 milhões de pessoas tem insegurança alimentar - ingere menos de 1.200 calorias por dia. Há fome e falta de investimento na educação. Muitos jovens querem por isso emigrar para terem mais formação e oportunidades.

Quando, em 2016, Sara conheceu esta proposta, ficou algo aliviada por ir embora, uma vez que o país atravessava uma fase violenta. “Lá tinha muito medo. Já me assaltaram à frente da minha casa. Mas se calhar eu é que atraía, andava muito devagar, a olhar. Então devia chamar a atenção, porque pensavam que tinha alguma coisa comigo", descreve. "Mas também foram só duas vezes. O governo não investe nada na educação e então as pessoas preferem ser criminosas. Que outro futuro poderão ter? Não têm possibilidades para estudar, os professores não se entregam tanto, não há mesmo boas condições. Aqui o que mais adoro é poder sair à rua e não estar paranoica".

A família ficou e, quando se pergunta a Sara Cáceres do que mais sente saudades, existe um divertido sentimento de culpa, porque se lembra logo do cão. “Isto é muito mau para a minha mãe (risos). No início, sonhava com o meu cão. Até me sinto culpada por estranhar mais a ausência dele do que da minha mãe, mas tenho saudades, sinto muita falta. Quase quatro anos sem ele”. A irmã, veio visitá-la em 2018, durante três meses, num período em que estava sem trabalho. Com a tese, Sara não teve grande disponibilidade para a acompanhar nos seus passeios e por isso atreve-se a dizer que a irmã conhece melhor Guimarães do que ela; isto porque, entretanto, com a pandemia, como todos, Sara cingiu-se a casa. Já a sua mãe nunca teve oportunidade de a visitar, por ser professora universitária e ter poucos (e curtos) períodos de férias.

 

Sara Cáceres com um grupo de amigos em El Salvador.

Sara Cáceres com um grupo de amigos em El Salvador.

 

A opção de ir embora, após a conclusão do mestrado esteve em cima da mesa, mas a relação mantém-na por aqui. Neste momento está desempregada e há quatro meses à espera da sua Cédula de Identidade Profissional de Bióloga, para exercer qualquer função na sua área. Ironicamente, Sara tem recebido e-mails de professores da antiga universidade e, se voltasse, sabe que teria a oportunidade de dar aulas de genética por lá. Agora tem uma vida cá e resignou-se à atual falta de oportunidades em biologia.

Já considerou tirar um Doutoramento ligado a Neurociência, mas porque estudou genética, mais focada em animais, houve impedimentos. Enquanto não consegue algo na sua área, vai mandando currículos para o que houver. “No início frustrava-me ir para a restauração. Não estudei para isso. Mas agora, pelo menos para ganhar dinheiro, vai servir. Isto até para os portugueses é complicado, não é?", questiona. "Pelo menos as pessoas da minha área dizem que é sempre difícil encontrar emprego. Os meus amigos dizem que estudamos uma carreira de ricos, porque biologia não oferece muitas oportunidades. Mas enquanto há vida, há esperança”.

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