Sob o trauma da guerra e o “medo do roubo”, mais 30 refugiados em Guimarães
Para quem ruma de Portugal à Polónia para recolher os ucranianos que fogem à guerra com a Federação Russa é difícil ter “noção” dos “oportunistas que se tentam do mal dos outros” nos campos de acolhimento, localizados sobretudo na Polónia, o país que mais refugiados acolheu desde o arranque da invasão a larga escala do território ucraniano – são 2,2 milhões de pessoas entre os pelo menos 3,7 que já se deslocaram, segundo contas da Organização das Nações Unidas.
Mas esse foi um dos cenários que Idalina Gomes, enfermeira integrada no movimento Guimarães for Peace, presenciou ao chegar a Wroclaw, cidade polaca a 550 quilómetros da fronteira com a Ucrânia. “Como vamos daqui com boa-fé, não temos noção de que, ao chegar lá, há pessoas a fazerem mal umas às outras”, descreve a voluntária. “Nas estações de comboio, quem prestar atenção ao movimento e à forma como as pessoas se comportam, percebe-se que há pessoas a tentarem roubar as malas”.
Esse movimento que teve em Idalina a sua profissional de saúde transportou, com sucesso, 30 refugiados até Guimarães. O grupo chegou ao destino na quinta-feira à noite, vendo-se rostos fechados, algumas lágrimas numa chamada para a Ucrânia e umas breves palmas em resposta a um discurso de boas-vindas. Ao fim da noite, foram instalados no antigo seminário do Verbo Divino, em articulação com a Câmara Municipal de Guimarães. “Eles chegam com uma exaustão terrível”, resume.
Esse cansaço deriva das viagens noturnas de comboio, em que o dinheiro para o próximo transporte valia mais do que o conforto da dormida ou o rigor com a alimentação. “Têm dormido em bancos de comboio, no chão, onde podem. E comem mal”, descreve. “Eles tentavam poupar o dinheiro em tudo, porque não sabiam por quantos dias iam circular”.
Os refugiados agora em Guimarães passaram por noites meias dormidas, com turnos para salvaguardarem o “pouco”, mas “valioso”, que tinham. “Revezavam-se para tomarem conta das malas. Não tinham mais nada do que aquilo, pois não sabem se um dia voltarão ao país e se, caso voltarem, vão encontrar aquilo que deixaram”, prossegue a enfermeira, parte de uma equipa que envolveu ainda 11 empresários vimaranenses e uma tradutora em cinco carrinhas.
Ainda assim, os ucranianos recém-chegados a Guimarães mostraram-se mais preparados para lidar com a viagem do que os primeiros grupos de refugiados transportados para vários pontos da Europa, sem “enfermeiros e logística organizada”. E o grupo é “jovem”, à exceção de um casal na ordem dos 60 anos de idade. “Esse casal tem alguma dificuldade articular, mas a senhora trouxe a medicação e, por isso, aguentou bem a viagem”, explica.
Precisamente face às várias crianças distribuídas pelas carrinhas, a caravana parava de quatro em quatro horas; elas precisavam de “apanhar fresco e de dar umas corridas”, enquanto Idalina Gomes aproveitava o tempo para verificar se estava tudo bem com os passageiros das outras carrinhas. “Ia saltando de carrinha em carrinha para ver o que era preciso, mas não tivemos nenhuma complicação que obrigasse a chamar o auxílio médico externo”, conta. “O nosso grupo teve muita sorte. Não teve nenhuma complicação”.
Quando uma consulta para uma mãe e o seu bebé é motivo de “receio”
Cumprida a missão de abrigar os refugiados sãos e salvos, é agora preciso acautelar o que se segue, frisa a enfermeira. Os cuidados médicos no Verbo Divino estarão a cargo do médico e da enfermeira do trabalho que colaboram com a Câmara Municipal de Guimarães, havendo disponibilidade do Hospital Senhora da Oliveira para qualquer consulta de urgência. Há pelo menos um caso que esse recurso se afigura necessário: o de uma mulher com um bebé de três semanas.
O parto decorreu num hospital, conta a voluntária, mas a mãe não teve tempo para cumprir o resguardo (ou puerpério), que se deve estender por cerca de 40 dias. “Teve o bebé, esteve num bunker, mas teve de sair do país a correr, e o bebé nunca mais foi visto por nenhum pediatra”, descreve. “Ela precisa de ser observada por um ginecologista. O mais tardar, queremos convencê-la segunda-feira a ter a consulta”, vinca.
Há, porém, um obstáculo: face aos alertas de organizações de direitos humanos sobre tráfico humano nos campos de refugiados, a mãe “acha que lhe podem tirar o bebé” e tem “muito medo de ir a um hospital”.
“Estas pessoas ouviram falar muito de tráfico humano", recorda a profissional de saúde, ao lembrar as abordagens “a medo” dos refugiados para com a equipa do Guimarães for Peace. "Elas têm todas acesso à Internet nos seus telemóveis e estão informadas. Lá na Polónia, houve muitos alertas para as pessoas não entrarem em carrinhas, sem estarem devidamente identificadas”,
Idalina realça que, em Portugal, é “normal, ao fim de um mês, uma revisão ao puerpério”, mas avisa que o serviço de saúde ucraniano pode não ter o mesmo funcionamento. A existir, essa disparidade adensa o receio da cidadã que já fora mãe de uma filha. “Não sabemos se é habitual na Ucrânia as mulheres seguirem o mesmo processo. Ela já tem uma filha e sabe o que é que se faz ou não. Vamos tentar convencê-la de que de que ninguém lhes vai tirar o bebé”, observa.
Essa família, acolhida por uma família polaca que não conhecia depois de cruzar a fronteira, teve ainda a particularidade de ser a única a não ser recolhida em Wroclaw, quando os elementos da Guimarães for Peace lá chegaram. A mãe e o bebé estavam em Varsóvia, o que obrigou a contactos com a Embaixada da Ucrânia em Portugal para se garantirem os “papéis” necessários, conta David Faria, um dos empresários que integrou a missão.
“Uma equipa teve de se deslocar lá, o que poderia comprometer o trabalho”, assumiu. “Consumiríamos um dia de viagem, mas fomos com uma vontade muito grande de ajudar. Como tinham grande vontade de virem para Portugal, pois têm cá familiares, não sentiríamos esta missão completa se não trouxéssemos esta família”.
“Famílias divididas, incerteza, insegurança”
A operação durou cinco dias, desde a partida de Guimarães com 3,5 toneladas de bens essenciais até ao regresso, com os 30 refugiados. À chegada ao sudoeste da Polónia, David Faria viu “uma situação muito débil”, com “muito choro, incerteza, insegurança” e famílias a serem “divididas”. “Vimos pessoas a entrarem nos nossos carros que tiveram de deixar as mães. As mães querem ficar perto dos pais. Elas querem que os filhos e as filhas fiquem longe daquela guerra”, descreve, acompanhado pelos restantes elementos da missão.
Houve mesmo uma “família” que, face ao “medo” de que a equipa de Guimarães for Peace lhe apreendesse as “malas”, acabou por ficar em Wroclaw. “Dissemos que tinham de decidir rápido, e essa família abdicou. Tivemos de ir buscar outra família, porque tínhamos de ocupar os lugares todos”, acrescenta.
Face à “situação pós-traumática” da guerra, o responsável admitiu que a “interação” entre a equipa da Guimarães for Peace e os refugiados se fez com “muitas inseguranças”, apesar de ter evoluído segundo um “processo gradual”. Para David Faria, a opção pelas cinco carrinhas permitiu um “acompanhamento personalizado”, o que se revelou uma opção acertada. “Fomos em cinco monovolumes para ter mais proximidade”, realçou. “Há um sentimento de dever cumprido (…). Na ida e na volta, houve muito espírito de entreajuda, de dar o melhor de nós a quem precisa. Mas não devia haver esta situação”, realça.
Disponível para uma segunda ida à Polónia, o Guimarães for Peace arrancou a 17 de março, através de uma troca de mensagens entre empresários que se conhecem, e contou com as ajudas de Flávio Martinho, um vimaranense a residir na Polónia que “ajudou centenas de pessoas a deslocarem-se para Portugal”, e da vereadora da Câmara Municipal de Guimarães para a ação social, Paula Oliveira, “na documentação e na logística”, reconhece outro dos envolvidos no movimento, Diogo Antunes.
Com o Verbo Divino assegurado como ponto de alojamento temporário para “os próximos dias”, resta agora tratar da legalização de todos os refugiados junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, antes de cada família decidir o seu futuro. “A ideia é terem a liberdade para fazerem o que quiserem. Se tiverem familiares em Portugal, vão para as famílias. Se quiserem ficar em Guimarães, este grupo de empresários vai auxiliar em tudo o que for possível”, antecipa.