Os caminhos que vão dar a uma geração em crise pelos pés de três mulheres
Quantas vidas têm o seu projeto num impasse ou nem sequer em esboço? As das três intérpretes que ocupam o Espaço Oficina a partir das 21h30 desta quinta-feira – Diana Sá, Gisela Matos e Susana Madeira - congregam as migrações a salto de milhares de portugueses na década de 60 com as de 2010, no auge da troika, e com as das vagas de refugiados que procuram a Europa numa luta pela “sobrevivência” e pelo “básico” de um projeto de vida.
“Quando não se tem o básico, tem de se procurar um sítio para se ter uma vida melhor e construir um projeto que é viver, do qual não escolhes fazer parte. Tu simplesmente apareces no mundo. Depois, o mundo trata de te expulsar dele”, vinca Sara Barros Leitão, que teve ao seu cuidado a dramaturgia e a encenação do espetáculo.
A menção a essas expulsões está relacionada com a condição de “emigrante ilegal”, algo “contrário à lei”, justificação de alguns Governos para deportarem quem procura abrigo num outro país que não o seu. E a circunstância, derivada da uma organização da sociedade advinda da “ideia de fronteira”, pode encerrar um processo de “desumanização”.
“A ideia de que uma pessoa nasce numa parte do mundo e tem acesso a uma série de coisas e outra que nasce noutro sítio não tem acesso, nomeadamente um passaporte. Por nasceres na Europa podes circular livremente pelo continente europeu e por nasceres noutro sítio e não podes”, prossegue.
Ainda que as migrações e as fronteiras para “proteger território e património” tenham sempre existido, com raízes no “desconhecimento e medo do outro”, Sara Barros Leitão crê que os movimentos refugiados de hoje, com atenção reavivada pela guerra da Ucrânia, são a “grande crise desta geração”, em concordância que fez parte de várias missões, que salvou várias pessoas e que esteve inclusivamente acusado. Sublinha até a “falta de pudor” com que se distinguem grupos de migrantes, com reflexos nos “movimentos de extrema-direita” em ascensão.
“Há um neofascismo a crescer que não tem qualquer pudor em falar sobre migrantes de bem e migrantes de mal, que cultiva o medo, o medo pelo outro, e em Portugal não podemos esconder que esse movimento cresce”, diz, criticando os discursos de que “as migrações portuguesas dos anos 1960 e 1970” são “diferentes” das atuais, quando a “procura por melhores condições de vida” é a causa subjacente.
E a ideia de “crise” é reforçada pelas alterações climáticas, que pode obrigar residentes em Portugal, um país costeiro, a emigrarem no futuro: “As imagens do chão dos nossos rios são impressionantes. Enquanto construíamos a reta final do espetáculo, o Paquistão tinha umas chuvas que inundavam um terço do país. Portugal está na costa e percebemos que, em breve, vamos ter de ser nós a migrar”, avisa.
“Quando vejo um espaço como este durante um ano não quero ir para mais lado nenhum”
A obra que dá palco a três mulheres - “interessa-me partir de um olhar que inclui os corpos das mulheres, mas isto tem um lado mais ancestral e mitológico, o das três mulheres que estão no centro do mundo e cosem o futuro da humanidade”, explica a autora -, estará em exibição até 09 de outubro no mesmo lugar que acolhe os ensaios desde junho, a estreia desta quinta-feira, com lotação já esgotada, e mais 11 sessões agendadas, com bilhetes a um custo unitário de 7,5 euros.
Sara Barros Leitão habita aquele espaço desde o início do ano, como diretora artística convidada da Oficina, e diz não o querer deixar. “Há ir e voltar” é uma oportunidade de evitar a “esparrela” que leva vários encenadores a exibirem as suas obras por apenas um dia ou dois. “Não dá para estar como artista sempre a dizer ‘ai que pena fazermos só dois dias’ e no único momento que tenho em que posso decidir quanto tempo estou em cena querer fazer só dois dias ou circular. O espetáculo fala sobre caminhar e sair e eu, na verdade, não quero sair”, confessa.
A atriz e encenadora diz-se mesmo “apaixonada” por um espaço que tem acolhido outras iniciativas do Teatro Oficina – Anti-Leituras, Assalto ao Arquivo -, por dar a Guimarães “outro circuito que não seja o das alcatifas e o do ar condicionado”.
“Ele pode ser tudo aquilo que quisermos. A ideia de que o público entra, leva o vinho e o café para dentro do espetáculo, traz os cães. É um lado underground, num sítio mesmo abaixo do solo. Numa grande cidade, como Paris ou Berlim, este sítio estaria altamente gentrificado”, realça.