Empresa pioneira e último reduto dos curtumes: a Roldes faz 100 anos
Há um troço da Estrada Nacional 101 que define a vida de Joaquim Pereira há mais de 40 anos: dia após dia, semana após semana, desloca-se entre as Taipas, onde vive, e Roldes, lugar em Fermentões que alberga a ponte românica sobre o Selho, um parque de lazer e a fábrica de curtumes onde labora. Aos 16 anos, precisava de trabalhar e pediu para o fazer na Roldes, onde já estivera empregado o avô. “Entrei a 03 de setembro de 1981”, recorda um dos operários com vínculo mais longo à empresa fundada em 09 de janeiro de 1923. Centenária, portanto.
De homem que tratava “as peles em pelo” e usava a pistola das tintas nos primeiros dias de labuta a responsável pelas tintas e composições para os acabamentos, Joaquim foi-se transformando em quatro décadas, assim como a Fábrica de Curtumes de Roldes, o bastião de uma indústria cuja produção se desvaneceu da cidade, subsistindo hoje graças à valia patrimonial e à conversão das unidades fabris em equipamentos como o Instituto de Design. A principal alteração foi a do modelo de negócio, reitera o sócio e gerente, Pedro Ribeiro.
A empresa abandonou o processo vertical desde a compra das “peles em cabelo” nos matadouros da região até ao acabamento e tornou-se “prestadora de serviços”, ao oferecer “uma grande diversidade de artigos”, nas “cores que se quiser”, a partir de peles em wet blue – húmidas e tingidas de azul. Esse azul deve-se aos sais de crómio, elemento central na história da Roldes.
Os sócios fundadores serviram-se da queda de água no rio Selho para produzirem energia elétrica e assim alimentarem a primeira fábrica em Guimarães a utilizar esse processo industrial “muito mais económico e rápido”, em detrimento do tanino da casca de carvalho ou do sumagre em tanques, com recurso à força e habilidade dos braços. “Passava-se a obter um couro em duas semanas e não num ano, muito mais resistente e tingido em cores muito vivas. Era também mais versátil, dando para artigos muito diferentes”, compara Pedro Ribeiro.
“Sempre houve o espírito de tentar manter a empresa. Quando temos assembleias gerais, temos a sensação de que todos remam para o mesmo lado, tentando que isto resulte”, Pedro Ribeiro, sócio e gerente da Fábrica de Curtumes de Roldes
O nome Alberto Cardoso Martins de Menezes, o do filho do Conde de Margaride, é o mais associado à fundação, mas a Roldes arrancou a produção com outros sócios, entre eles os proprietários da Casa de Caneiros – ofereceram os terrenos para a fábrica a troco da participação – e Joaquim Ribeiro da Silva, pai de António Augusto Ribeiro da Silva, a pessoa que liderou a empresa por mais tempo.
Aos 55 anos, Pedro Ribeiro é um dos três filhos de António Augusto que sempre ali trabalhou, primeiro como diretor técnico e agora como gestor, face à reforma do irmão Joaquim. Em ano de centenário, o responsável vê uma empresa “equilibrada”, com 30 funcionários e um volume anual de negócios a rondar os dois milhões de euros, que transforma peles de bovinos, importadas sobretudo de Espanha, Argentina e Brasil, em artigos exclusivos para calçado, vendidos a fábricas e a armazenistas de Guimarães e Felgueiras.
O “regresso às mãos das famílias originais”, consumado em 2016, é outra das marcas deste tempo, depois de uma era sob a alçada da Campeão Português; detentora da maioria das ações a partir de 1973, a empresa vimaranense de calçado fechou em novembro de 2014 – a marca foi depois reativada – e a Roldes viu-se então arredada dos “investimentos que se impunham”, lembra Pedro Ribeiro
O gerente lembra que o “futuro não era muito brilhante” aquando da saída do Campeão Português. O fecho esteve até em cima da mesa, mas a fábrica sobrevive. Talvez a “afetividade” da sua família, que adquiriu a “quase totalidade do capital” em 2016, e a histórica entreajuda entre sócios o expliquem. “Sempre houve o espírito de tentar manter a empresa. Quando temos assembleias gerais, temos a sensação de que todos remam para o mesmo lado”, vinca, a partir de uma sala decorada com os retratos dos protagonistas da empresa, o avô e o pai entre eles.
“Para quem trabalhou nos curtumes, custa-lhe mudar de área”
A história da empresa, feita de crises e desenvolvimento, pesa igualmente nas decisões tomadas, reconhece Pedro Ribeiro. E essa história pode ler-se nos edifícios que compõem a fábrica, todos eles revestidos com um granito que é prova de longevidade. As infraestruturas à face do Selho, desativadas, guardam os tanques dos curtumes com produtos vegetais, na altura da sua criação alvo de “um mercado grande”; no pico da “mão-de-obra intensiva”, a Roldes teve 150 trabalhadores.
No edifício principal, os trabalhadores operam as máquinas de medição e de divisão dos curtumes, circulando, quando necessário, entre elas. Numa outra secção, veem-se os fulões, equipamentos cilíndricos na horizontal, tal e qual os da Ramada. À exceção dos controlos automáticos de água, de temperatura e de pH, a tecnologia criada para acelerar o curtume vegetal mantém-se atual. E o curtume vegetal ainda hoje é útil para solas de sapatos. “Os couros vegetais são mais duros e não escorregam”, explicam.
Ainda que supostamente ultrapassado, o curtume vegetal pode ser reavivado num “futuro que está sempre a mudar”, exigindo processos com “pegada ecológica cada vez menor”. Há mesmo processos do passado, “mais amigos do ambiente”, a “serem recuperados”, dá conta Pedro Ribeiro.
Apesar das eventuais transformações da indústria, há uma coisa que, para o gestor, se vai manter: o instinto de qualquer pessoa dos curtumes para “pôr a mão” quando passa por uma pele, atestado de um “elo muito forte com um material nobre que envelhece muito bem”. “Para quem trabalha nos curtumes, custa-lhe mudar de área. Cria-se uma ligação forte com o couro”, confessa o gestor e técnico que se especializou em curtumes numa escola de Lyon, França.
Entre as dezenas de frascos que encerram outras tantas composições químicas, Joaquim Pereira revela o hábito que criou “na fábrica onde se fez homem”. “Quando vejo uns sapatos, tenho sempre atenção ao material”, confessa.