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Um "orgulho" coletivo que extravasa a muralha

Bruno José Ferreira
Cultura \ quinta-feira, dezembro 09, 2021
© Direitos reservados
Em adiantado estado de degradação, o Centro Histórico de Guimarães ameaçava ser um problema. Mas a joia foi lapidada e tem há vinte anos o distintivo de Património Mundial da Humanidade.

Quase 20 hectares de área, 967 edifícios e uma população de sensivelmente 1.800 habitantes; um pequeno pedaço de terra fortificado que se tornou na joia de Guimarães e enche de orgulho os seus cidadãos. O Centro Histórico de Guimarães está há 20 anos classificado como Património Mundial da UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

No interior do burgo medieval, construído dentro da muralha que ainda hoje tem vestígios bem visíveis, cabe um castelo da segunda metade do século X que esteve no epicentro da fundação da nacionalidade, um paço ducal do século XV, e vários outros edifícios e praças. Por entre ruas estreitas e casas esguias erguem-se igrejas, um antigo convento que alberga a câmara municipal, 92 instituições e vários monumentos. Este património é complementado com história; muita história.

“A histórica vila de Guimarães está associada ao surgimento da identidade nacional portuguesa no século XII”, tal como é descrito pela UNESCO na apresentação do Centro Histórico de Guimarães, que é dado a conhecer ao mundo como “um exemplo excecionalmente bem preservado e autêntico da evolução de uma povoação medieval para uma cidade moderna, a sua rica tipologia de edifícios exemplifica o desenvolvimento específico da arquitetura portuguesa do século XV ao século XIX, através da utilização consistente de materiais e técnicas de construção tradicionais”.

Após Évora e Porto, Guimarães tem desde 2001 na sua identidade o “marco indelével” de ver o seu Centro Histórico Património Mundial reconhecido pela UNESCO. Os vimaranenses habituaram-se a conviver com esse desígnio e olhá-lo com orgulho. O orgulho de quem vislumbra Torre da Alfândega e lê “Aqui nasceu Portugal”, passa pela Praça de São Tiago ou pelo Largo da Oliveira na subida até ao Monte Latito para chegar ao castelo. Um orgulho que é ainda maior quando acompanhado pelos vários sotaques dos turistas, que a partir de dezembro de 2001 fizeram de Guimarães um destino turístico que tem no Castelo de Guimarães o monumento mais visitado do norte do país.

 

 

Sinos a repique e espumante na Oliveira

Tal como n’Os Lusíadas, que se cantam os feitos gloriosos dos portugueses ‘in medias res’, também esta
narrativa se inicia com o processo de revitalização do Centro Histórico de Guimarães a meio. Viajámos até àquela quinta-feira de “chuviscos” a 13 de dezembro de 2001. Ao fim da tarde os sinos das igrejas vimaranenses tocaram a repique, as pombas esvoaçaram pelos céus e António Magalhães transmitiu a notícia a viva-voz enquanto recebia o telefonema aguardado. “A partir de agora Guimarães é Património da Humanidade. Muitos parabéns a todos”, disse o presidente da Câmara Municipal na
altura, um dos principais impulsionadores da candidatura vimaranense a tal galardão.

Do outro lado da chamada estava a vereadora Francisca Abreu, em Helsínquia, juntamente com a arquiteta Alexandra Gesta e José Nobre. “O momento da classificação é incrível porque andámos lá três dias enquanto decorria a assembleia geral da UNESCO, e sabíamos que em Guimarães estava tudo à espera da decisão. Lembro-me como se fosse hoje da agitação que provocou ouvi-los a falar de Guimarães, a passar imagens de Guimarães naquele grande auditório, a elogiar o nosso processo participativo e a arquitetura, ou seja, tudo o que tínhamos feito foi por eles mencionado como favorável”, transmite Alexandra Gesta em declarações ao Jornal de Guimarães.

A quatro mil quilómetros de Guimarães, na Finlândia, foi sentida a vibração do Largo da Oliveira. “Não havia muita gente na rua, porque estava um dia menos bom. Arranjámos umas garrafas de espumante e brindámos. Mesmo não estando uma multidão, a verdade é que ainda se juntaram algumas pessoas, emocionadas; é um marco indelével na vida dos vimaranenses”, aponta António Magalhães.

Recuemos mais uns anos na linha do tempo. Foi na presidência de António Magalhães, em 1995, que a ideia de classificar o Centro Histórico ganhou força. O líder máximo do município, licenciado em história, fez-se valer da sua experiência profissional e das viagens para lançar as bases da candidatura: “Percebi que tínhamos ali uma joia que estava a degradar-se e precisava de uma intervenção; conhecia outras cidades classificadas que com a classificação ficaram com um estatuto de excelência na procura do turismo”.

Com apoios do governo central e capacidade técnica, através da “contratualização de pessoas capazes e de renome internacional”, o município iniciou o processo. “Lançámos mãos à obra contra ventos e marés; é bom que se diga que a população de Guimarães não queria. Fui muito criticado por gente que não tinha consciência do que se trava”, recorda António Magalhães, lembrando que “o Centro Histórico era um local sujo, de gente boa e simples que se habituou a viver sem grandes condições”.

Um cenário semelhante ao que é traçado pela arquiteta Alexandra Gesta, que em 1983, por despacho de Manuel Ferreira, presidente da Câmara, liderou a criação do Gabinete do Centro Histórico, que a 19 de março de 1985 passa a denominar-se Gabinete Técnico Local (GTL). Este departamento foi criado para “estancar a degradação do Centro Histórico”, um tecido urbano em que não havia saneamento, entrava água nas casas, não havia zonas de banho e o “aí vai água” era comum antes dos despejos de água pelas janelas e varandas.

 

"Percebi que tínhamos ali uma joia que estava a degradar-se e precisava de uma intervenção”, António Magalhães, presidente da Câmara Municipal de Guimarães em 2001

 

 

Requalificação social, cultural, arquitetónica e urbanística

O processo de reabilitação do Centro Histórico de Guimarães iniciou-se, então, ainda antes de idealizada a candidatura a Património Mundial da UNESCO. Mudar por completo a zona central da cidade, sem lhe tirar a essência, mas readaptando-a foi o repto lançado ao Gabinete Técnico Local.

“Tivemos mais de quinze anos de trabalho desligado de qualquer objetivo de qualificação: era um trabalho para as pessoas e com as pessoas”, dá conta Alexandra Gesta, que aponta a missão de todo o processo: “Começámos por trabalhar três objetivos fundamentais: recuperação do Centro Histórico, de forma a não perder aquele tecido com enorme valia imaterial e material, renovação e ao mesmo tempo manter a população residente que lá existia”.

Foi com base nestes três pilares que se arrancou com uma profunda transformação no tecido histórico vimaranense. Recuperaram-se edifícios com metodologias e estratégias muito particulares, requalificaram-se praças e espaços públicos, renovaram-se pavimentos, prestou-se apoio técnico à iniciativa privada e, ao fim de contas, tentou mudar-se a essência do Centro Histórico com a instalação de equipamentos públicos capazes de atrair pessoas ao centro, como museus ou bibliotecas.

“Foi um projeto de mudar a essência daquele espaço sem tirar a essência das pessoas que lá estavam, também com preocupações sociais e culturais. Não foi só colocar saneamento, instalações elétricas e renovar fachadas. Foi todo um processo de beneficiação, em que se fez um trabalho de base, por exemplo, com a prostituição, que tinha uma mancha muito grande no Centro Histórico e afastava as pessoas. Tratámos disso juridicamente e legalmente, com uma integração humana e social sem hipocrisias”, dá conta a arquiteta.

 

 

Ajudou a “romper a bolha”

Regressemos aos dias de hoje. Vinte anos passaram desde o dia 13 de dezembro de 2001 e a palavra “orgulho” continua a ser uma constante nos testemunhos recolhidos. Alexandra Gesta solta sorrisos quando lhe pedimos para descrever o Centro Histórico e para dizer o que sente quando passa por este espaço. “Não me consigo separar do Centro Histórico. Temos edifícios de há 300 anos recuperados e com imensa vitalidade, um local vivo e vibrante. O orgulho dos vimaranenses relativamente à classificação é diretamente proporcional ao orgulho que têm de ser vimaranenses. Esse orgulho foi parte do processo de recuperação, tornou-se numa atitude”, sublinha.

Na Rua de Santa Maria, confrontando também com o Largo da Oliveira e o Padrão do Salado, está o Hotel da Oliveira. Uma unidade hoteleira implantada naquele que foi um dos primeiros centros administrativos do país, ainda na idade média. Começou por ser uma pousada, hoje um hotel de charme, tem num
dos seus principais rostos Carla Costa, a chefe de receção que em maio do próximo ano completa 42 anos de serviço; uma vida. Uma vida que viu a degradação do Centro Histórico passar pela reformulação até ser a referência que é hoje.

“A cidade era completamente desorganizada, algo que foi melhorando. Começou a haver muito mais turismo, muitos mais restaurantes a abrir, o que deu outra dinâmica à cidade. notou-se uma diferença enorme”, refere Carla Costa, acrescentando que “antes da pandemia Guimarães estava na moda”. Logo de seguida, por trás do balcão, formula o desejo para que esses tempos regressem rapidamente.

Natural de Angola, a chefe de receção recorda que nem sempre foi assim, aludindo ao tempo em que o Centro Histórico estava danificado. “Lembro-me que quando viemos abrir a pousada esta zona era bastante pobre, nada desenvolvido, as pessoas estavam muito fechadas nas suas bolhas e até abrir a pousada foi complicado, as pessoas não queriam. Nestas coisas há sempre resistência”, relembra.

Hoje em dia o sentimento é completamente diferente. Chegamos novamente à questão do “orgulho” que, neste caso, chegou com a classificação da UNESCO. “Agora as pessoas têm orgulho no seu Centro Histórico, sentem-se orgulhosas com o que têm. Eu não sou de cá, mas tenho também orgulho nesta cidade e não me veria a viver noutra”, salienta. “Juntamente com a renovação das gerações, não tenho dúvida que o Centro Histórico ser Património Mundial ajudou a romper a bolha”, no entender de Carla Costa.

 

"A classificação como Património da Humanidade significou para Guimarães uma alteração profunda na forma como vivemos a cidade e na forma como os outros vivem a nossa cidade”, Paulo Lopes Silva, vereador municipal para o Turismo

 

Atravessando-se os arcos que dividem o Largo da Oliveira da Praça de São Tiago, duas das mais icónicas praças intramuros, os bares, esplanadas, restaurantes e outros pontos de comércio preenchem quase por completo o rés-do-chão dos edifícios. Ao fundo da Praça de São Tiago, quase a fugir pela Rua Dr. Mota Prego para o Bairro da Misericórdia, temos a Art’iago, uma loja de artesanato que rompe com o conceito tradicional e tem no seu espólio peças de artesãos portugueses de vários pontos do país.

Anna Marques é a proprietária da loja que está no Centro Histórico desde 1998 e recorda-se do tempo em que os automóveis eram permitidos em alguns destes espaços, como a Praça de São Tiago, onde está instalada. As suas memórias iniciam-se já com o Centro Histórico “em obras” de beneficiação antes do coroar final. No seu entender a classificação é uma inegável “mais-valia” pelo que veio trazer depois enquanto responsabilidade.

“Foi ótima a classificação, uma mais-valia; passámos a ser uma cidade com responsabilidade acrescida de criar infraestruturas e outras valências, como de cariz cultural. Temos essa responsabilidade de preservar e alimentar isso com coisas novas. Mas, tivemos outros fatores importantes, como o Euro 2004, a Capital Europeia da Cultura 2012, foram acontecimentos importantes que afirmaram Guimarães”, aponta Anna Marques, vincando que a cidade foi pioneira a tratar do seu património. “Há vinte anos os turistas já me diziam que gostavam de Guimarães por ser uma cidade limpa cuidada, o que acontece hoje em
muitas outras cidades, mas nesse aspeto a nossa cidade era percursora”, exprime a sua opinião.

Ao longo dos tempos a lojista foi dando conta de evolução do turismo e reconhece que após a classificação foi notado “um crescendo de turistas a visitar Guimarães”, ainda que o perfil tenha vindo a mudar. “A minha perceção é que há vinte anos o turista vinha de carro e ficava mais tempo. Agora, em tempos um turismo em massa, as excursões, que enchem praças. É importante, passam sempre a palavra e ajudam a divulgar a cidade, mas como público consumidor é menos relevante”, explica Anna Marques.

 

 

O foco na questão do turismo é uma inevitabilidade, ao ponto de se poder dizer que foi com a classificação do Centro Histórico que Guimarães passou a ser um destino turístico por excelência. Já António Magalhães olhava essa janela de oportunidade ao colocar em marcha a ideia da classificação. Paulo Lopes Silva, vereador com o pelouro do Turismo sustenta que o facto de o Centro Histórico ser Património Mundial “significou uma alteração profunda” para a cidade.

“A classificação fez com que Guimarães entrasse para destino turístico e fez com que fosse para o topo da preferência das pessoas quando tencionam viajar para este lado da Europa, isso traduz-se no número de pessoas que nos visita. Passámos a ser um destino turístico eminentemente patrimonial e as pessoas visitam Guimarães essencialmente pelo nosso património”, aponta o vereador municipal.

Os benefícios multiplicam-se depois em vários quadrantes, saltando à vista a vertente económica. “Hoje estas ruas e estas praças têm uma vitalidade económica ligada ao turismo, do ponto de vista da hotelaria, da restauração e do comércio ligado a estas áreas, que não teria se não tivéssemos esta classificação. Ou seja, esta classificação resulta não só na valorização patrimonial, mas também em dinâmica cultural dada a estas praças”, considera. São 90 os espaços de restauração na área classificada.

Mas, também no entender de Paulo Lopes Silva, uma das mais-valias de todo este processo está no tal “orgulho” dos vimaranenses, da comunidade que continua a existir intramuros. Um orgulho que acaba por ser essencial para que o Centro Histórico se preserve vivo. “A classificação significou para Guimarães uma alteração profunda na forma como vivemos a cidade e na forma como os outros vivem a nossa cidade. Trouxe-nos uma valorização a várias dimensões, como na comunidade, dos moradores do Centro Histórico, os que continuaram a viver e a sentir o Centro Histórico como as suas ruas e a suas as praças; isso é fundamental para que todos os vimaranenses tenham orgulho naquela zona da cidade, mas mais que todos os vimaranenses de todo o concelho, todos os que lá habitam e que o cuidam todos os dias, que são fundamentais”, menciona.

Com o distintivo de Património Mundial da Humanidade, o Centro Histórico de Guimarães tornou-se um “orgulho” coletivo que extravasou a muralha e abriu portas ao mundo. Portas que brevemente poderão ficar maiores com o alargamento da área classificada à zona de Couros. As antigas fábricas de curtumes estão em processo de reabilitação, havendo mais património para acrescentar ao Património.

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