Há vida para lá do trabalho e da perda: um dos caminhos é a “universidade”
“Gosto de todos. Cada quadro é um bocadinho de mim”, confessa Maria Leonilde Martins. Em seu redor, os cavaletes seguram telas de mar, de cavalos, de flores, de geometrias abstratas, de cores que se esbatem, dos azuis aos castanhos. Simbiose de técnica e imaginação, as pinturas dão corpo a mais uma exposição mensal da Universidade do Autodidacta e da Terceira Idade de Guimarães, onde é aluna. De olhos na Penha, aquele lugar tem sido resposta para o vazio que se acometeu da sua vida: o marido, José, morreu em 2018, após 52 anos de casamento, feliz. “Senti-me realmente muito só, porque éramos muito unidos e partilhávamos tudo. Era uma pessoa muito agradável que gostava de me surpreender pela positiva. Foi um sofrimento grande”, descreve.
Ainda se ria quando acolhia os netos em sua casa, mas recusava mudar-se para a casa de qualquer um dos três filhos e estava “fechada na dor”. O tempo passou e um dos caminhos a seguir ganhou nitidez: professora do ensino primário em Oliveira do Castelo por décadas, Maria Leonilde diz ter sempre valorizado o conhecimento e pensou que “talvez fosse bom” ir para a UNAGUI. Fê-lo em 2019.
Fundada a 25 de janeiro de 1994, a UNAGUI é a cooperativa sem fins lucrativos que tutela a mais antiga universidade sénior de Guimarães, liderada até ao final de 2021 por José Menezes. Funciona na urbanização de Margaride (Costa) desde 2014, após duas a décadas a funcionar no imóvel que é agora a Casa de Sarmento, no Carmo. É também a maior entre as cinco vimaranenses inscritas na RUTIS, entidade que congrega mais de 300 universidades de terceira idade no país: a 31 de dezembro de 2021, havia oficialmente 144 pessoas inscritas na Universidade do Autodidacta e da Terceira Idade de Guimarães, mas os elementos ativos rondam hoje os 120. A pandemia de covid-19 travou a dinâmica da instituição, aponta Hermenegildo da Encarnação, membro da direção da UNAGUI. “As pessoas tinham medo de sair, de serem contaminadas. Na hora de regressar, houve quem já não conseguisse”, conta, realçando as perdas de capacidades cognitivas e motoras detetadas por um estudo da Universidade de Coimbra publicado no final de 2020.
Antigo sacerdote católico da Congregação da Consolata, ordenado em Londres, Hermenegildo dá aulas de inglês e de antropologia, duas das 26 disciplinas ali oferecidas. Uma parte delas segue um modelo pedagógico de “rigor” e “seriedade intelectual”. “Temos aulas formais e professores doutorados. Isto é tal e qual uma universidade normal. Apenas não há testes", vinca. A Unagui tem, aliás, cultivado a aura de “universidade de elite”, para idosos com formação superior e “posses económicas”, mas a direção empossada em janeiro de 2022, com Jorge Extremina a presidente, quer “alterar a filosofia”, abrindo-a à restante população.
O grupo das percussões da universidade esteve na mais recente Festa da Primavera do Laboratório da Paisagem, a mostrar a música criada a partir de bidões de plástico, e a festa realizada a 31 de março na Unagui acolheu um recorde de 100 pessoas, especifica João Dias, outro dos nomes da direção. A exemplo da percussão, o coro, a tuna com as suas vestes roxas, o grupo de cavaquinhos, as danças regionais ou a sala de jogos dão vida à área lúdica, a outra parte do currículo. Os alunos dispõem ainda de ginástica e hidroginástica, numa parceria com a Tempo Livre. "Na parte lúdica, queremos uma certa qualidade, mas também um espírito de família. Queremos um ambiente de novos conhecimentos, mas sobretudo de novos relacionamentos e amizades”, realça Hermenegildo.
Enquanto “tiver saúde”, é ali que Maria Leonilde Martins quer estar. Incapaz de se limitar à “vida de casa”, reencontrou amigas que lhe fizeram uma “festa muito grande” ao recebê-la. Por vezes, até se sente “culpada por estar bem-disposta”, confessa. As aulas, porém, são suficientes para a motivar: gosta particularmente de história das religiões, área para a qual nunca fora “muito virada”, e de antropologia. Frequenta todas as disciplinas, à exceção do inglês, que não consegue falar. "Os assuntos são interessantes, captam a nossa atenção e aumentam a nossa cultura geral", realça.
A universidade sénior deu-lhe um dos caminhos para a “vida ativa” que leva aos 77 anos. O outro encontrou-o com uma prima, duas amigas e a pintora Evelina Oliveira. Durante um ano, convidaram a artista a dar-lhes aulas em Guimarães uma vez por semana. Maria Leonilde aprendeu então a pintar em acrílico, em óleo, em pastel. Esses ateliês catalisaram as obras que agora se espalham pela sala de estar da Unagui, como se a aluna estivesse a retribuir o que a universidade lhe dá.
“Mesmo que não haja aulas, venho para aqui”
As dificuldades no inglês é uma das coisas em que Emília Castro coincide com Maria Leonilde Martins. "Gosto das aulas todas. Só não gosto muito do inglês, porque não é comigo”, confirma. O outro traço em comum é a perda: a 24 de abril de 2020, já durante a pandemia de covid-19, Emília deparou-se com a morte do marido, o fim de um casamento de 38 anos e o silêncio. “Era uma pessoa muito amiga, muito chegada. Se nos déssemos mal, era diferente, mas dávamo-nos bem. Chegava a casa e tocava o cavaquinho. Era a vida dele”, recorda. Talvez por isso, não gosta muito de ver os cavaquinhos da UNAGUI; prefere a percussão.
Emília caiu assim na “fase de estar em casa, de não sair à rua, de não fazer nada” até que a sua única filha lhe sugeriu a universidade sénior. Com o 4.º ano de escolaridade e uma vida de trabalho na antiga fábrica de tecidos Vila-Flor, Emília diverge do rótulo colado à UNAGUI e por lá continua, aos 63 anos. Residente em Urgezes, a aluna tem, por vezes, “medo de estar em casa” e compensa o “vazio” nas aulas, na parte lúdica ou simplesmente a conversar com as funcionárias, Celina e Vera. “Não tenho netos e aquele preenchimento. Mesmo que não haja aulas, venho para aqui. Quando há aulas vou, porque só a sensação de estarmos juntos já é boa", descreve.
Isso não é um problema, todavia. Mesmo estando inscritos, os alunos “não são obrigados a assistir às aulas todas”, realça João Dias. Se durante a aula quiserem “ficar a conviver uns com os outros” fora dela, estão “à vontade", refere o dirigente com experiência de aluno.
Lisboeta de origem, João correu o país “de uma ponta à outra” enquanto comercial. Quando se reformou, ficou “assustado a pensar no que ia fazer”; ao divorciar-se, quis um “corte radical” com a vida que levara e, tendo um irmão em Fafe, rumou a norte. A viver sozinho, teve conhecimento da UNAGUI e inscreveu-se naquela que é agora a “segunda casa”. “Estou a passar uma das fases mais felizes da minha vida”, declara. “Gosto muito da universidade e a universidade gosta de mim. Respeito as pessoas que a frequentam e as pessoas respeitam-me”.
Restabelecer as rotinas
Cada aluno da UNAGUI paga uma mensalidade de 30 euros. Além de garantir as aulas, também assegura carinho, “um porto de abrigo”, realça Hermenegildo. “A questão do toque e do abraço é importante. Quando as pessoas ficam viúvas ou viúvos, costumam entrar em derrapagem”, esclarece.
O mecanismo através do qual se fortalecem esses laços, acrescenta, é a rotina. Os estudantes sabem de antemão que a tuna e o coro ensaiam na segunda-feira à tarde ou que as sessões de história local e de culinária decorrem à terça, sempre com os mesmos professores. Se assim não funcionar, “metade dos alunos desaparece”, estima o docente de antropologia e inglês. "Se lhes tirarmos as rotinas, as pessoas ficam desformatadas e desestabilizadas”, observa.
A criação de rotinas é precisamente um dos traços que sobressai nas universidades de terceira idade, sublinha Esmeraldina Veloso, autora de vários artigos científicos relativos ao tema. “Há estudos que até mostram que as pessoas podem perder a noção se é sábado ou domingo, porque os dias são todos iguais. A universidade traz rotinas importantes para o dia a dia”, indica a docente do Instituto de Educação da Universidade do Minho (UMinho).
O risco de “isolamento social” pode ser um dos impulsos para a adesão às universidades da terceira idade, acrescenta a investigadora. Ele agrava-se quando as pessoas ficavam viúvas ou divorciadas, quando os filhos, em idade adulta, já saíram de casa, por vezes “até para longe”, quando se reformam e perdem as “rotinas de trabalho” ou até quando entram em “rotura com o mercado de trabalho”, ficando desempregadas. A universidade sénior pode assim ser oportunidade para cultivar a “sociabilidade” e “novas relações de amizade”, diz.
Há, porém, quem se concentre nas dimensões cultural e cognitiva, quem procure espaços assim para aprender coisas novas. "Há casos em que as pessoas ficam um bocado deprimidas e é importante o bem-estar e a felicidade, mas há quem só vá lá para aprender outras coisas. Há de tudo", refere Esmeraldina Veloso.
A renovação dos alunos é, contudo, um ponto de interrogação para a docente da UMinho; na UNAGUI, há vários alunos na casa dos 80 anos, mas, a cada ano letivo, a instituição tem recebido 20 novos alunos, alguns deles na casa dos 60, esclarece Hermenegildo da Encarnação. Há assim um esforço de combate ao “envelhecimento” das instituições dedicadas à terceira idade, de olhos num futuro com idosos “mais instruídos”, com “mais saúde e longevidade”, salienta Esmeraldina Veloso. No entanto, perspetiva-se uma idade de reforma mais avançada, sob “condições” que podem mudar, avisa a investigadora. “Se as idades das reformas vão aumentar, não sabemos muito bem que condições as pessoas vão ter para frequentar as universidades seniores".