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Val de Donas, vale de silêncios e de sombra com mais de 700 anos

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ segunda-feira, março 21, 2022
© Direitos reservados
O ruído dos motores dos carros ou das tesouras de uma barbearia são os esporádicos cortes na quietude desta rua de perfil habitacional, cujo nome remonta pelo menos ao século XIII.

Façam nuvens, faça sol, o granito que pavimenta o traço entre a antiga sede dos correios e a Casa Mota-Prego, com um ramal para a rua de Santo António, emerge mais escuro face à maioria do restante centro histórico. Aquele desenho, reto e plano, conta séculos de coabitação com a muralha entretanto demolida, mas o perfil das escarpas que o envolve mudou; a pedra e as janelas ao alto garantem sombra todo o ano e convidam a um recato que destoa de uma praça como a de Santiago. Assim acontece até se ouvir um ronronar ao longe: é mais um veículo motorizado para perturbar esse estado.

“Esta rua dá acesso ao largo João Franco [ou Misericórdia], dá acesso à Oliveira. Muita gente passa aqui para procurar estacionamento, mas o estacionamento também é reduzido. Olhando ao tipo de rua que é, com uma largura muito estreita, passa aqui muito trânsito”, descreve Joaquim Nogueira. A imagem que pinta para os transeuntes é outra, porém: “Quanto ao movimento de pessoas, há momentos em que passa muita gente e outros em que ninguém se vê”.

Joaquim fala com a propriedade de quem ali está todos os dias da semana nos últimos 22 anos. Entre navalhas e tesouras, é o rosto da barbearia da rua; a disposição ao comprido, com o sofá de espera atrás das poltronas, transparece uma estética de décadas passadas, que, ainda assim, atrai gente de “todas as faixas etárias”, pese os novos formatos de negócio no ramo. “Os tempos mudaram. O serviço ao cliente alterou-se. Há 20 e tal anos, havia muito menos estabelecimentos. Agora há cada vez mais rapaziada nova a aparecer, com outro estilo. Tudo se altera ao longo dos anos”, explica, logo antes de um cliente de meia idade abrir a porta.

Ao cruzar a soleira para o exterior, percebe-se, todavia, que a rua não está talhada para o comércio; a barbearia é o único estabelecimento a funcionar, para lá dos restaurantes fronteiros à clareira de que se vê a Misericórdia. “Esta rua, em termos de atividade económica, esta é das ruas mais paradas da cidade. Praticamente só estou eu”, constata Joaquim.

 

“É uma rua bastante relevante na cidade, que, pelas suas características, parece apontar para um caráter predominantemente habitacional, aquele que tem atualmente. Até prova em contrário, é o caráter desejável”, Ricardo Rodrigues, chefe da Divisão do Centro Histórico da Câmara Municipal

 

A escassez de comércio não tem de ser má para a rua; pode até decorrer dos usos para que foi moldada ao longo dos séculos, sugere o chefe da Divisão do Centro Histórico da Câmara Municipal de Guimarães, lembrando que a defesa do espaço classificado como Património Mundial pela UNESCO, em 2001, compreende “a salvaguarda da autenticidade e da integridade dos edifícios e dos seus usos”. “Todas as ruas têm as suas especificidades e esta tem as suas: é uma rua tendencialmente sombria pelo caráter estreito e pela orientação solar. Apesar disso, tem uma proporcionalidade de casas muito significativa”, sumariza Ricardo Rodrigues.

Nas palavras do arquiteto, a rua Val de Donas afirma-se pelo “caráter mais silencioso e recatado”, que compara às “pausas ou silêncios” de um filme, por comparação com a “azáfama” das mais reconhecidas praças. “É uma rua bastante relevante na cidade, que, pelas suas características, parece apontar para um caráter predominantemente habitacional, aquele que tem atualmente. Até prova em contrário, é o caráter desejável”, prossegue.

Se a “proliferação de comércio” é inexistente, as reabilitações para habitação têm surgido e, na perspetiva do responsável por vários dos projetos de revitalização de Couros, bem; as operações têm cumprido os “parâmetros” da autarquia, garantindo a “reversibilidade”, aspeto “muito importante para a defesa do património”, esclarece.

Val de Donas é, por isso, uma rua onde Ricardo Rodrigues não gostaria de ver “uma grande transformação”, apesar de reconhecer o conflito latente entre o automóvel e o peão. “Passo na rua várias vezes por dia. De cada vez que passa um automóvel, tenho de me encostar a um edifício. Não é uma situação impeditiva, mas há um conflito”, descreve.

Numa rua de passeios apertados, qualquer peão é “salpicado de água” nos dias de chuva em que os veículos ali passam, sejam eles ligeiros de passageiros em busca de estacionamento, ligeiros de mercadorias para cargas e descargas no comércio da rua da Rainha… ou pesados, num caso excecional. “Uma vez, um veículo de grandes dimensões não passava por causa das varandas", conta o barbeiro. Foi preciso despejar os pneus e dois agentes da PSP que estavam a passar subirem para a traseira do camião para o baixar o suficiente. Mesmo assim, não deixou de roçar nas varandas”, 

 

Edificado de uma rua com traçado que remonta ao século XIII, pelo menos

Edificado de uma rua com traçado que remonta ao século XIII, pelo menos

 

O albergue para pobres, as casas brasonadas, a muralha a cair

As peripécias do século XXI estendem uma cadeia de eventos com a primeira referência em 1268. Em Guimarães “duas vilas, um só povo” – estudo de história urbana, a historiadora Maria da Conceição Falcão Ferreira dá conta de que a rua Val-de-Donas era, “a exemplo das demais” ruas da velha urbe, uma “via estreita”, que se iniciava “num dos extremos do arruamento dos judeus” – corresponde hoje ao espaço entre a rua António Mota Prego e o largo do Serralho -, subindo “até à chamada Porta de Santa Luzia”, junto ao que é hoje o largo Navarros de Andrade.

A menção desse ano, já com o nome Val de Donas, sugere que a rua é ainda mais antiga, porém. “Se o nome aparece no século XIII e o registam, é porque ele já existia. A origem do nome acaba por ser obscura e mitológica”, salienta Antero Ferreira, historiador da Casa de Sarmento, unidade ligada à Universidade do Minho que digitaliza e divulga todo o acervo da Sociedade Martins Sarmento.

A “origem do nome é mais difícil de determinar”, refere, ao lado, a historiadora Célia Oliveira, associada à mesma instituição. As teorias são várias: uma delas provém de um alegado “recolhimento destinado a acolher mulheres”, mencionado até por João Lopes de Faria nas Efemérides Vimaranenses. “O autor designa-o como a primeira instalação das capuchas. E que esse recolhimento estaria na origem do nome de Val de Donas”, indica.

Já Maria Adelaide Morais, autora de cerca de 20 obras sobre Guimarães e a sua história, caracteriza "Val-de-Donas" como um “romântico nome a resistir ao tempo, evocativo de fidalgas damas, remotas, longínquas, as brumas a envolverem-nos no passado, a não deixarem conhecê-las no presente”. O nome parece associado a “um universo feminino”, mas não há “nada em termos materiais” que permita identificar sua origem “com clareza”, prossegue a investigadora.

 

“É uma rua estrutural desde a Idade Média até hoje. Até a sua própria largura mostra que ela conserva as características do passado”, Antero Ferreira, Casa de Sarmento

 

Maria da Conceição Ferreira Falcão menciona ainda a construção de uma albergaria com “capacidade para alojar 12 pobres”, em 1302, verificando-se alterações visuais mais significativas nos séculos futuros. A demolição da muralha, prolongada ao longo de um século, foi aquela que, porventura, teve maior impacto visual.

Em O património urbano de Guimarães no contexto da idade contemporânea: permanências e alterações, tese de mestrado de Maria José Meireles de 2000, há referências ao “aforamento do muro” e ao “desmontar de uns metros da muralha” desde 1773 até 1897. “As grandes transformações estão associadas à muralha. As casas viradas para a rua de Santo António teriam a muralha da cidade. Provavelmente não restam vestígios, a não ser que se encontrem numa intervenção arqueológica”, acrescenta Célia Oliveira.

Essa muralha delimitou o quotidiano da rua por séculos e também algumas das manifestações culturais do burgo, como as procissões religiosas com percurso contíguo à muralha interior; o cortejo do 1.º de Dezembro, organizado anualmente pelos 20 Arautos, é a herança mais visível dessas tradições. “É uma reminiscência do que seria um percurso simbólico à volta da muralha de Guimarães. Era natural que, com as procissões, acontecesse algo desse género”, esclarece Antero Ferreira.

Apesar das sucessivas “reformas do edificado em volta”, a rua continua a ser aquilo que era na Idade Média. “A primeira referência é de 1268 e, daí para a frente, não teve nenhuma alteração. É uma rua estrutural desde a Idade Média até hoje. Até a sua própria largura mostra que ela conserva as características do passado”, salienta Antero Ferreira.

 

Joaquim Nogueira explora uma barbearia na rua há 22 anos

Joaquim Nogueira explora uma barbearia na rua há 22 anos

 

Na era medieval, Val de Donas afirmou-se como artéria “eclética”, misturando “famílias de proprietários”, com “um nível social superior”, mas também de ofícios vários, desempenhados nas próprias casas dos artífices. “Não havia um ofício característico”, frisa o responsável. “Não era como a rua Nova [Egas Moniz], em que havia predominantemente sapateiros. Ali encontravam-se sapateiros, penteeiros, alfaiates, boticários, mas não era uma rua de ofícios”.

O perfil do lugar, como já referido, é sobretudo habitacional, tendo como principais marcos as casas dos séculos XVI e XVII: a Casa dos Carvalhos ou Mota-Prego, Monumento de Interesse Municipal, com uma fachada seiscentista em conformidade com a “arquitetura solarenga da época”, a Casa dos Araújo e Abreu, ligada a Maria Angelina Abreu, esposa de Raul Brandão, e ao antigo presidente da Câmara Manuel Bernardino de Abreu, hoje utilizada como habitação, e a Casa das Rótulas, outro Imóvel de Interesse Municipal, testemunho das janelas típicas da época.

“Aquilo seria típico na cidade de Guimarães nos séculos XVI e XVII. Depois a Câmara determinou que fossem retiradas as gelosias, porque perturbavam a circulação. As ruas eram estreitas e, com aquilo, ainda ficavam mais estreitas”, detalha o historiador.

Hoje desativada, à espera de um eventual projeto para habitação, essa casa teve vida no último quartel do século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI: entre 1984 e 1995, foi clube de vídeo, depois foi oficina para bicicletas, sempre pela mão de Romão Barbosa. “Tinha sobretudo bicicletas de BTT, numa altura em que estavam na moda”, descreve o proprietários dos antigos estabelecimentos. “As primeiras nem suspensão tinham. Era uma lojinha pequena, muito arranjadinha, com tudo muito atolhadinho. Cabiam para aí umas 18 bicicletas. Não usava o piso de cima”.

No outro lado da rua, Joaquim Nogueira ainda recorda a oficina, bem como uma casa de armas e uma “firma de máquinas de café” na casa dos Araújo e Abreu, quando o comércio em Val de Donas era um pouco mais vivo.

 

A Casa das Rótulas acolheu um clube de vídeo e uma oficina de bicicletas nas últimas quatro décadas

A Casa das Rótulas acolheu um clube de vídeo e uma oficina de bicicletas nas últimas quatro décadas

 

Água mole e pedra dura

O fio de granito entre a calçada à portuguesa de Val de Donas cobre uma linha de água proveniente da ancestral “vila alta”, que desemboca no tanque da rua de Santo António. Essa presença leva à acumulação de água na rua assim que chove. “Quando fizeram a requalificação, foi para meter gás e novos modelos das águas pluviais. O piso nunca ficou direito. Quando chove, isto é um descalabro”, lamenta Joaquim Nogueira.

O barbeiro realça que o piso “irregular” não “drena o suficiente” a água, que se “acumula” em “poças de água”. “Muitas das vezes, as pessoas têm necessidade de se deslocarem no meio da rua quando chove, para que os carros abrandem a sua marcha”, acrescenta.

Alerta para a situação, Ricardo Rodrigues diz que é “normal que os pontos de água se revelem” quando há “chuvadas”. “É uma rua bastante plana que faz uma pequena vala a meio, com tendência a concentrar águas”, realça. Problemas associados a “limpeza das sarjetas”, “limpeza das condutas” e “degradação das infraestruturas” também podem afetar a rua, ainda que os fatores possam ser transversais a outros arruamentos: “Estas questões são dinâmicas. O que hoje é problema amanhã pode deixar de ser. E o que hoje não é problema, amanhã pode-o ser. As reclamações são aspetos que fazem parte da gestão do dia a dia, que a Câmara tem de procurar resolver”.

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