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Vestida de linho, sem peles para calçar: assim vai a memória da Corredoura

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ sábado, junho 12, 2021
© Direitos reservados
Não há rua sem histórias para se contarem. As da Corredoura sustentam-se numa área rural onde prosperou o linho, cultura hoje perpetuada pelo grupo folclórico. Já o legado dos curtumes esvai-se.

“O nome sugere local de passagem numa zona rural. Sugere ruralidade”. Filipe Santos refere-se a Corredoura, palavra que, no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, é até definida como “rua desviada numa povoação para passagem de gado”. Há vários lugares assim batizados pelo país e até mais do que um em Guimarães – há o caso de São Clemente de Sande -, mas aquele em que Filipe foi nascido e criado é o mais conhecido de todo o município: a Corredoura que venera o São Torcato, mas com “identidade própria” no seio da vila. “Houve sempre um bairrismo muito grande na Corredoura” resume ao Jornal de Guimarães.

Aquela travessia de mais de um quilómetro não engana quanto às feições rurais: as vinhas precedem fachadas graníticas nuas de algumas casas com mais de 100 anos e um troço mais urbanizado, que concentra um par de restaurantes, um par de cafés e um supermercado, na Urbanização do Peixoto, uma das várias artérias que desagua na rua, firmando a ligação ao parque de lazer inaugurado no ano passado. Esta é a silhueta de um lugar que, pelo menos no século XIV, já existia.

“Há documentos no Arquivo Municipal que se referem à Corredoura como sendo então um local de grande produção de laranja e de uva. Era um centro de produção agrícola que fazia o abastecimento da vila de Guimarães”, afirma Filipe Santos, precisamente o cidadão que liderou a proposta de criação do parque no âmbito do Orçamento Participativo.

 

“Uma camisa de linho para homem, pronta a utilizar, anda à volta dos 250 euros. Uma camisa de mulher anda à volta dos 120 a 150 euros, mas já feitas a partir do linho e tudo. É um meio de sustento”, José Novais (Grupo Folclórico da Corredoura)

 

É, porém, outra cultura que distingue hoje a Corredoura enquanto bastião da memória rural de Guimarães: o linho que, durante séculos, vestiu as populações do território. “Se formos para o concelho de Fafe, já se começava a encontrar os lanifícios, mas a roupa produzida nesta zona surgia essencialmente do cultivo do linho”, descreve Filipe.

A produção chegou a parar por ali, mas regressou há cerca de 35 anos, graças à principal âncora cultural daquele território: o Grupo Folclórico da Corredoura, fundado a 01 de março de 1956. Hoje com 70 anos, José Novais é um retrato dessa fusão entre o linho e o folclore: dos tempos de criança, ainda se lembra da mãe fiar à noite, ao fim de um dia de trabalho no campo, sob a “luz da candeia”, uma vez que a eletricidade só chegou à Corredoura depois de 1960, garante; nos tempos de adulto, participou no regresso do linho. “O grupo tomou essa iniciativa pelo então ex-presidente António Ribeiro. Semeámos a primeira parcela de linho na quinta de Conselheiros”, descreve.

Um ano depois desse reinício, o grupo deslocalizou a produção do linho, morosa, para a quinta da Ribeira. As etapas do processo artesanal entre o semeio e a oferta de vestuário e atoalhados são várias, com nomes tão específicos quanto os engenhos que lhes dão vida. Ali, a sementeira é feita habitualmente entre 20 e 30 de abril, para que a arrancada do linho se dê a tempo da Romaria Grande de São Torcato, no primeiro fim de semana de julho, detalha José Novais.

De seguida, ripa-se - para se separar o caule das sementes e das folhas -, enterra-se sob um rio ou sob um tanque durante nove dias, para se amolecer o caule, e depositam-se molhos numa eira para serem então malhados: quebram-se os caules e extraem-se as fibras para depois serem transportadas para um moinho, acrescenta o “corredourense” de gema.

Após sujeitas à espadela e ao sedeiro, as fibras estão prontas para se transformarem em fio. Criado o fio, o linho é ensarilhado, dobado e tecido, podendo-se elaborar, daí, as camisas que vestem os mais de 40 elementos do grupo folclórico e as toalhas exibidas no Linhal, a  demonstração do processo de produção que anualmente se dá na Corredoura, em junho. Só um desses passos não está a cargo do grupo. “Temos tear, mas não temos quem saiba tecer. Mandamos a meada para Braga, para uma casa de freiras onde ainda sabem”, esclarece.

Perdida essa habilidade por Guimarães, o grupo folclórico recolhe depois um tecido que hoje é “caro”, vende parte dele a outros grupos folclóricos e garante assim uma fonte de rendimento. “Uma camisa de linho para homem, pronta a utilizar, anda à volta dos 250 euros. Uma camisa de mulher anda à volta dos 120 a 150 euros, mas já feitas a partir do linho e tudo. É um meio de sustento”, explica José Novais.

Nessa receita adicional aos espetáculos, esta instituição da Corredoura acaba por simular a utilidade que outrora o linho teve para a população local. “O linho, depois de trabalhado para se fazer roupa, era um complemento ao trabalho do dia a dia. Nesta zona, as pessoas viviam do que tiravam da terra”, esclarece Filipe Santos.

 

 

Os muros que escondem tanques

Avança-se rumo a São Cosme e saltam à vista algumas moradias novas, a casa novecentista da quinta da Costa, onde se produz vinho verde, e outras imóveis mais afastados da estrada, em recuperação para turismo rural. Mais despercebidos ao olhar, um muro e uma casa degradam-se. Mas esse muro não o é realmente: é o que sobra da fachada de uma das fábricas de curtumes que ali laborou nos séculos XIX e XX, fornecendo as peles já curtidas para o fabrico de calçado.

“Em 1826, sai uma provisão do Governo, confirmando o estabelecimento da Fábrica de Curtumes de Couros, de Casca e Sumagre. Sumagre é uma planta, e a casca era mergulhada com as peles nos tanques. Conservava as peles de forma a se poder fazer calçado”, afirma Filipe Santos, baseando-se na obra Efemérides Vimaranenses, de João Lopes de Faria; em 1815, aliás, já existiam duas fábricas de curtumes no então couto de São Torcato, segundo o livro Curtidores e Surradores de São Sebastião – Guimarães (1865-1923): a difícil sobrevivência de uma indústria insalubre no meio urbano, de Elisabete Pinto, publicado em 2012.

Familiarizado com a atividade desde jovem, enquanto neto de um homem que “fabricava o calçado em casa”, de “forma completamente artesanal”, o cidadão diz que ainda existem três núcleos de tanques na Corredoura: dois estão soterrados, após descobertos e tapados “tal e qual estavam”; o outro está por detrás da casa arruinada. Os contornos de pelo menos dois tanques, quadrados e graníticos, são ainda visíveis, mesmo que atafulhados pela terra e pelo lixo ali espalhado – veem-se bidões de plástico, por exemplo.

Mesmo sendo propriedade privada, os tanques deveriam merecer a atenção da Câmara Municipal com vista à preservação, até para se perpetuar a memória de que a indústria de curtumes vimaranense funcionava para lá dos limites da cidade.  “A recuperação dos tanques de Couros é tardia. A Câmara propõe a classificação em 1977 e recupera depois de 2000. Na Corredoura, nunca existiu”, reitera.

 

 

O folclore é o presente. Espera-se também que o futuro

Ansioso por ver “lembrado e dignificado” o legado dos curtumes, Filipe Santos reconhece que o presente da Corredoura enquanto território que congrega uma série de ruas e de lugares – Fonte Cidra, Gilde, Corrondela, Chão da Vinha, Lombela e Fontela, por exemplo – se confunde com o grupo folclórico mais antigo de São Torcato, entidade de utilidade pública. “É uma instituição incontornável, que dá visibilidade à Corredoura, à vila, ao concelho e a Portugal”, diz.

O coletivo já palmilhou o país, rumou a Espanha por dezenas de vezes, passou por França, Itália, Alemanha, Áustria, Hungria e atuou no maior festival do mundo, o Folkloriada, em Anseong (Coreia do Sul), em setembro de 2012. E organiza, desde a década de 60 do século XX, o Festival Internacional de Folclore da Corredoura. Neste século, o evento passou a realizar-se na cidade e foi até rebatizado de Fest’In Folk Corredoura, em 2016.

Filipe Santos não discorda da escolha da cidade, até pela maior promoção do evento, mas considera que parte das atuações dever-se-iam manter nas origens, fosse num dos campos onde habitualmente se realizava, fosse até no parque de lazer, também preparado para esse efeito. “Era mais típico e entronizante dos costumes do final do século XIX e do princípio do século XX a realização do festival num campo semeado, cultivado, com vinhas. “Quem cá viesse seria absorvido pela ruralidade”, salienta. O cidadão defende, por isso, que o evento deveria regressar ao seu berço num dos três dias.

Na Corredoura, fez-se comunidade de outras maneiras: clube de futebol, Carnaval, festas de Santo António e de São João e até uma marcha milaneza decalcada da das Gualterianas. “Eram formas de ostracizarem a vida de trabalho que existia”, explica Filipe.

José Novais olha para trás e vislumbra um dos “mais populosos lugares de São Torcato”, com uma dinâmica que atraía pessoas. Admite que gostaria de ver esses tempos regressarem, mas não crê que os mais jovens da Corredoura tenham “pachorra” para tecerem a vida comunitária que ali fervilhou; desde logo, porque, fora os cafés, não têm qualquer sítio que os congregue, a começar pela escola primária, extinta há mais de 15 anos. “Era mesmo ali, onde diz ‘vende-se’”, aponta.

 

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