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Violência Obstétrica: a vulnerabilidade não serve de desculpa

Carolina Pereira
Saúde \ quarta-feira, maio 04, 2022
© Direitos reservados
A hora que muitas mães referem como a mais feliz das suas vidas pode ser para outras uma memória que preferem esquecer. Na hora do parto, há casos de frieza e má conduta entranhados nas instituições.

"Geradas por nossas avós, por nossas mães, por nossa voz, feitas por nós, próprias, só p'ra nós, próximas e sós” é o que canta a rapper portuguesa Capicua, depois de um parto que descreve como humanizado. Ela lamenta que nem todas as mulheres tenham direito a, como ela, obter o mesmo tratamento. O inquérito “Experiências de Parto em Portugal”, realizado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), com respostas de mais de 3.800 mulheres, revela que 43,5% das inquiridas não tiveram o parto que queriam.

Adriana, Soraia e Catarina são algumas das vozes que se erguem para mudar as más práticas: entre elas, mencionam a superioridade por parte de alguns dos profissionais de saúde, a frieza, a manipulação, a negligência e até os abusos. “Nas aulas de pré-parto ensinaram que a episiotomia não era o melhor método, que era melhor rasgar naturalmente. Era a única coisa que eu tinha a certeza que não queria. Chegou a um ponto em que a enfermeira diz que estava a demorar muito e que ia chamar o médico para fazer um cortezinho. Eu não quis. Então ela disse: ‘Vou fazer uma coisa que vai doer um bocadinho’. Então o que é que ela faz? Põe-se em cima de mim, com as mãos na minha barriga, com muita, muita força e empurra a minha bebé. Não houve nada de positivo no cenário”, partilha Adriana.

 

“Depois de algum tempo uma pessoa começa a perceber, não é porque consentiste que deixa de ser violência obstétrica”

A manobra que a enfermeira utilizou com Adriana – manobra de Kristeller – dá-se com outras mães numa altura em que é desaconselhada pela Organização Mundial de Saúde. Até que existam evidências mais concretas sobre os benefícios ou malefícios da manobra, recomenda-se a utilização em casos excecionais, que requerem protocolos escritos com a descrição, indicações e contra-indicações da manobra.

Adriana não os recebeu: “Depois de algum tempo uma pessoa começa a perceber. Não é porque consentiste que deixa de ser violência obstétrica. Eu tinha consentido a manobra de Kristeller, mas, porque há uma certa manipulação, disse que ia fazer uma coisa que doía. Não me disse o quê e eu só queria que a minha filha nascesse”.

O momento do parto é imprevisível. Pese as expetativas e idealizações, ninguém sabe como vai correr. Mas, num momento tão vulnerável, quanto mais informada a mãe estiver, mais controlo tem na sua realidade e nas decisões que são tomadas. Adriana teve preparação pré-parto, mas ainda não sabia o suficiente para evitar incongruências como as que experienciou. “Se vamos ser mães, temos de estudar para estarmos preparadas. Quando me deram a epidural comecei a ter muito sono, porque já não dormia há alguns dias, adormeci e de repente rebentaram-me as águas com um ferro, sem o meu consentimento. Existe esta falta de consentimento informado”.

Eles não me apresentaram nenhuma alternativa, nem disseram nada, eu estava a dormir e simplesmente rebentaram-me as águas. É uma posição muito vulnerável, porque eles começam a dizer “o teu filho vai morrer”, e eu só aceito porque é um médico e supostamente temos de acreditar.”, conta Adriana.

 

Na hora em que estava mais fragilizada, Soraia esperava palavras de suporte. Em vez disso foi-lhe dito: “Cala-te e faz força”

Soma-se a pressão sobre as mulheres que estão em trabalho de parto. A culpabilização da mulher porque o trabalho de parto não está a correr de acordo com as normas do obstetra é um ataque violento. Após dois dias exaustivos na sala de partos, Soraia sentia-se esgotada. Na sala entravam “médicos e mais médicos, com toques e mais toques” que a deixavam desconfortável. A mulher tem de estar ali, sentada, em sofrimento com contrações, enquanto uma fila de estagiários a visita para a tocar. Quando chegou a hora em que Soraia precisava de maior suporte, não tinha forças e quando se queixou da dor sentiu-se apedrejada com a frase: “Cala-te e faz força”.

“Não fui respeitada. Disse que queria ter o meu filho de gatas, porque era a única posição em que me sentia confortável. Não foi autorizado e ninguém explicou porquê, e o meu filho nasceu com a ajuda de ventosas, o que lhe arranhou a vista”. É uma altura em que um comentário mais frio destabiliza a confiança e recuperação da recente mãe. “Eu senti-me perseguida por uma das enfermeiras. Insistiu para eu dar a mama, mas eu não conseguia nem com uma bomba de extração de leite e ela pressionou-me da pior forma. Fez-me sentir uma má mãe. Não me vejo a ter outro filho porque não quero voltar a passar por aquilo”.

 

“Durante as consultas que tive, a médica só olhava para o computador, não olhou para mim nem uma única vez”

Um tema que mexe com as consciências é o aborto. Catarina teve duas interrupções voluntárias. Na primeira vez, a médica fez-lhe perguntas habituais como se tomou algum método contracetivo, se estava numa relação e número de parceiros sexuais. Dá-se uma mudança de comportamento. “Na consulta seguinte, foi uma enfermeira quem me explicou como seriam os procedimentos, a médica não olhava para mim sequer. Fez-me uma ecografia intrauterina e não olhou, ou falou comigo mais nenhuma vez”, começa por contar.

No momento da ecografia, Catarina não estava apenas com a médica, já existia um número de pessoas na sala, sem pré-aviso. Só quando ia fazer a ecografia intrauterina é que a médica lhe perguntou se consentia que uma das estagiárias a fizesse. “Eram pessoas da minha idade e que por ser uma cidade universitária pequena, podiam-me conhecer e ninguém perguntou antes, se tinha problemas ou não, de que elas estivessem lá”.

Na segunda vez, a jovem de 22 anos teve mais constrangimentos em arranjar consulta. Foi em dezembro, o tempo legal escasseava e os hospitais diziam que não existia quem a atendesse e “despachavam, como se não fosse um assunto de saúde, como outro”. Além disso, não sabia que decisão tomar e tentou discutir com a médica para tomar um rumo. As lágrimas nos olhos não lhe valeram qualquer consolo. “Eu não tinha uma decisão tomada. Não sabia se o pai estaria presente tendo em conta a profissão dele. Eu ainda sou estudante, não tenho um emprego, e ela despachava o assunto a dizer: Não há nada que lhe possa dizer, já sei que tem a sua decisão tomada. Não estava”.

A desinformação dos auxiliares e a superioridade que Catarina sentiu, não foram, na sua opinião, fruto da sua idade. “Como profissionais têm de ser compreensivas e estar preparadas para lidar. Elas não estavam. Foram opinativas e julgaram. Não tem a ver com a idade, mas com conceções sociais”, sentencia.

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