O Cilindro de Ciro
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner Andreson
O Governo da República, decidiu – e bem – preparar, com a devida antecipação, uma exaltação condigna para assinalar o passar de meio século sobre a “Revolução dos Cravos”.
Estando a democracia a atravessar, em diversos países europeus, nos tempos que correm, o seu teste de stress, seria de esperar que Portugal pudesse organizar o assinalar de uma data tão estruturante da nossa vivência coletiva despojando-se dos polarismos radicais que – exatamente – colocam o sistema sob tensão.
Começou bem, o Governo, ao convidar o General Ramalho Eanes para rosto cimeiro das comemorações. Estalou, contudo, a polémica aquando da divulgação do Comissariado para o efeito. Além de, aparentemente, haver no Estado capacidade de alocação de meios e pessoas capazes de robustecer esta unidade de missão – dispensando a faustuosidade decretada - o nome de Pedro Adão e Silva para chefiá-la, reúne tudo, menos consenso. Tudo, porque não estão em causa os predicados académicos, sociológicos e pessoais do personagem; quanto ao consenso, nada! Pedro Adão e Silva é um comentador político e futebolístico que representa uma determinada linha de pensamento da sociedade portuguesa. Aquela, sim, que é compassiva com Sócrates e Luís Filipe Vieira sem querer particularizar fações, porque na bola há (ainda) Bruno Carvalho, Pinto da Costa e na política – à direita, também não faltam exemplos. Nada a opor. É bom para o debate democrático, mas de consenso tem pouco. Ora o 25 de Abril, como o consolidou Soares na Fonte Luminosa foi, essencialmente, inclusivo e portador de uma mensagem: os democratas constroem consensos, entre si, para se oporem a ameaças antidemocráticas, venham elas de onde vierem. O PS atual demasiado identitário, no que às nomeações diz respeito, caso não conseguisse ir a Pacheco Pereira, tinha uma excelente alternativa: o vimaranense Alberto Martins, símbolo maior da resistência académica ao “ancien regime”.
A ausência de consensos, o incómodo velado ao escrutínio, o tratar a coisa pública como um dado adquirido, traz, consigo, uma consequência endémica que só não escapa ao olhar detalhado sociológico: o acriticismo generalizado dos alicerces fundamentais sobre o que é um Estado de Direito Democrático e o lugar do Humano como centralidade insubstituível desta configuração.
O que nos trouxe de vital o “dia inteiro e limpo” de Sophia, foi a proteção do Humano, aquele que morria numa guerra sem solução política condigna; aquele que morria às mãos da polícia a coberto da política de turno. Ou seja, foi a proteção dos direitos humanos fundamentais, a mais destacável das heranças.
Estará, o Portugal de hoje, em condições de afirmar-se um Estado defensor do Humano? A morte de um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa. A entrega pela Câmara da capital de dados de manifestantes a um regime que mata dentro e fora das suas fronteiras, numa completa normalização acrítica e inconsequente da classe política e até mesmo dos serviços de suporte, é sintomaticamente alarmante.
A convocação do cilindro de Ciro releva para um “back to the basis”, sempre interessante quando queremos falar em direitos humanos; um bom início para refletir sobre se, o Abril de hoje é o que os seus fautores sonharam.