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Política de cidade, precisa-se

Amaro das Neves
Opinião \ terça-feira, agosto 31, 2021
© Direitos reservados
Por muito que se afirme o comprometimento com a sustentabilidade ambiental, a exaltação do verde acaba quase sempre por ser esmagada pelo fascínio do betão, aqui e ali disfarçado com verduras.

A vista geral fotográfica de Guimarães mais antiga que se conhece está na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, num álbum que pertenceu à imperatriz Teresa Cristina, consorte de Pedro II do Brasil. A data será anterior à década de 1860. O fotógrafo, Francesco Rocchini, obteve-a a partir da meia encosta do monte Cavalinho, numa perspectiva de sul para norte, com o castelo ao fundo. Veem-se cinco torres de igreja, duas das quais já lá não estão, S. Sebastião e S. Dâmaso, e uma outra ainda sem qualquer torre, a do Toural. O comboio ainda não tinha chegado a Guimarães, a avenida Afonso Henriques não existia. Na desembocadura da rua Caldeiroa, está a antiga Torre da Alfândega, mas sem a altura a que a elevaram na década de 1930. O burgo medieval aparece embutido numa paisagem emoldurada de verde. Com o tempo, a moldura foi paulatinamente substituída por uma cercadura de betão. Era o progresso, diziam aqueles que alimentavam a ambição de tornar Guimarães numa grande metrópole.

Quando preparava o Plano Director de Guimarães, o arquitecto Fernando Távora, numa memorável conferência no Convívio, peregrinou pela história urbana de Guimarães, desde que nasceu, por iniciativa de uma mulher, Mumadona Dias, até àqueles dias de Novembro de 1980. No final, centrou-se no processo de crescimento que a cidade tinha iniciado nas três décadas anteriores, espartilhando o espaço de intramuros que, fechado sobre si próprio, acabaria por se assemelhar a uma múmia de museu. Numa cidade onde já se erguiam torres mais altas e mais coloridas que a torre do castelo, impunha-se traçar um programa de ordenamento para evitar que a cidade se transformasse num monstro de cimento armado, com uma amostra medieval para turistas. Não seria fácil a tarefa de quem tinha tal incumbência entre mãos.

Fernando Távora tinha uma visão para a cidade, que classificava como a glória do homem, assente numa ideia que seria o fio condutor do processo de requalificação urbana que traria a Guimarães o reconhecimento como Património da Humanidade (algo que, por aqueles dias, nem o mais optimista ousaria imaginar): o desenvolvimento da cidade deveria respeitar o seu passado e, acima de tudo, aqueles que a habitam. A estratégia de requalificação do Centro Histórico de Guimarães assentou no princípio do envolvimento dos cidadãos residentes, procurando transformar a obra de alguns em obra de todos e para todos e seguindo um modelo que procurava fixar os moradores. Mais do que um plano de requalificação urbana, seria um processo de regeneração e de preservação da vida urbana, com um programa que era arquitectónico e urbanístico, político e cívico.

O processo de regeneração urbana do Centro Histórico de Guimarães, que tornaria Guimarães num caso de estudo internacional, pelo modo como conseguiu respeitar o passado sem o transformar em relíquia numa redoma, ao mesmo tempo que cuidava dos seus habitantes, acrescentando qualidade ao seu modo de vida, assentava no pensamento, na visão e na estratégia que Fernando Távora delineou. A cidade de Távora foi pensada não como uma flor de estufa para usufruto de turistas ocasionais, nem como playground para animação nocturna, mas sim, simplesmente, para se viver nela.

Ao longo das últimas décadas, pensamento, visão e estratégia foram-se tornando escassos na política de cidade de Guimarães. Parece confundir-se desenvolvimento com crescimento, aposta-se em soluções ditadas pelo imediatismo e pelos resultados a curto prazo, cede-se à pressão das redes sociais, sem se questionar e sem se escutar quem questiona. Nos tempos que correm, parece não haver uma ideia para Guimarães, mas percebe-se que há muitas ideias, algumas delas dificilmente conciliáveis entre si.

Por muito que se afirme o comprometimento com a sustentabilidade ambiental, vertida em discursos voláteis e em candidaturas a cidades verdes e outros galardões ecológicos, a exaltação do verde acaba quase sempre por ser esmagada pelo fascínio do betão, aqui e ali disfarçado com verduras.

Boa parte do arvoredo que, na fotografia de Rocchini, aconchegava o centro urbano de Guimarães, foi derrubado nos últimos anos. Primeiro, foi o miolo entre a Caldeiroa e Camões, onde poderíamos ter um magnífico parque urbano, sacrificado para dar lugar a um aparcamento automóvel em forma de carrossel, anunciado a solução para os problemas de estacionamento na cidade e os males crónicos do comércio local. Depois, foi a destruição da mancha verde que ficava entre a Caldeiroa e a Fábrica do Minhoto (que foi demolida discretamente, sem espaço para discussões sobre memória e património industrial), para abrir o caminho para as betoneiras que ali farão nascer um novo “cimentério” de Guimarães.

Política de cidade. Em vésperas de autárquicas, era bom que se trocassem umas ideias sobre o assunto.

 

 

 

Nota: artigo de opinião originalmente publicado na edição #05 do Jornal de Guimarães, a 13 de agosto de 2021

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