Projeto Bússola, de apoio a pessoas LGBT+, supera 250 atendimentos em 2023
Mais de dois anos depois de ter iniciado o projeto Bússola, como um gabinete de apoio à comunidade LGBTQIA+ e familiares, Carlos Oliveira lembra que as solicitações para apoio psicológico ou informativo estavam a crescer até a um ponto em que se estava a “tornar insustentável”. Ou a estrutura sediada na Casa do Povo de Fermentões constituía uma “equipa a tempo inteiro” ou fechava, já que o psicólogo trabalhava na ação social daquela instituição e coordenava o projeto no seu tempo livre.
A reunião de novembro com a secretária de Estado para a Igualdade e Migrações, Isabel Almeida Rodrigues, e com a presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Sandra Ribeiro, culminou num despacho que garante resposta a tempo inteiro para o ano de 2023, com o respetivo financiamento de 42.613 euros. No primeiro semestre enquanto projeto a tempo inteiro, o Bússola contabilizou 252 atendimentos a 46 pessoas, quando o número de utentes atendidos desde junho de 2021 é de mais de 50.
Carlos Oliveira realça que a maior parte das pessoas que solicitou apoio psicológico está ainda em acompanhamento, sendo na maioria pessoas trans e famílias das pessoas trans, distribuindo-se por faixas etárias entre os 12 e os 52 anos. Já os pedidos de apoio informativo destinaram-se sobretudo a esclarecimentos de dúvidas sobre “identidade de género, serviços de saúde com resposta para pessoas trans, esclarecimentos sobre legislação, esclarecimentos sobre nome social e/ou alteração e nome e menção de género no Cartão de Cidadão”.
Pioneiro em Guimarães e na Comunidade Intermunicipal do Ave, o Bússola não surgiu preparado para atender o país todo, mas alargou o seu raio de ação face aos pedidos que começou a receber de várias latitudes de Portugal – deparou-se com mais pedidos da Área Metropolitana de Lisboa, antes de se tornarem mais recorrentes as solicitações em Guimarães, em Braga – as consultas funcionam na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima -, e em Vizela – o atendimento é prestado na Santa Casa da Misericórdia local. E também estão disponibiliza consultas online.
O projeto tem desenvolvido parcerias de norte a sul, articulando-se, por exemplo, com profissionais da sexologia ou da endocrinologia – ramo da medicina que estuda o funcionamento das hormonas no corpo humano - para encaminhamento médico de alguns utentes. E o leque de municípios com os quais colabora tem aumentado. No primeiro semestre de 2023, o Bússola celebrou um protocolo com a Câmara Municipal de Esposende para atender pessoas LGBTQIA+ e familiares daquele território e passou a integrar a Rede Municipal de Psicologia.
Já em Vila Nova de Famalicão, o projeto faz parte do Conselho de Cooperação da entidade PSI-ON, centrado no combate à violência doméstica – “a violência doméstica em situações LGBT+ tem especificidades que a de um casal heterossexual não tem”, esclarece Carlos Oliveira. Neste ano, aliás, a estrutura passou a integrar a Rede Nacional de Apoio a vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD) e o grupo de acompanhamento de saúde LGBTI+ do Ministério da Saúde.
O trabalho do Bússola inclui ainda sessões de esclarecimento em escolas e ações de formação profissional; no primeiro semestre de 2023, contabilizou uma dezena, abrangendo mais de 1.300 pessoas, na Universidade do Porto, localizada num município de alta densidade, mas também em municípios de baixa densidade, como Terras de Bouro, no Minho, e Salvaterra de Magos, no Ribatejo.
Face ao volume de trabalho, Carlos Oliveira espera recrutar mais um profissional da área da psicologia para trabalhar a tempo inteiro no Bússola. “Estamos naquela fase final em que tivemos uma seleção de currículos. Em setembro, quero acreditar que vou ter uma pessoa da psicologia comigo, porque isso me está a fazer falta”, admite ao Jornal de Guimarães o coordenador de um projeto contemplado com o Prémio Arco-Íris 2021/22 pela associação AMPLOS, em fevereiro último.
“Aqui sabem que vão estar num espaço seguro”
Embora já tenha realizado atendimentos relativos a questões sobre identidade de género ou orientação sexual, a maioria dos casos acompanhados pelo Bússola respeita a situações “de ansiedade, de depressão, de pessoas num estado de grande desespero que não conseguem encontrar respostas”. “Não nos procuram necessariamente por causa da orientação sexual ou da identidade de género. Porque nos procuram a nós? Porque aqui sabem que vão estar num espaço seguro e não vai haver questões como: “Porque é que é trans? Porque é que é gay?”, explica o psicólogo de 41 anos.
As pessoas que procuram o Bússola têm “receio de bater a outras portas, porque do outro lado estão habituadas a ser discriminadas”, enquanto ali “podem falar à vontade das relações que têm”. Também não têm de educar quem atende sobre “linguagem inclusiva ou como usar pronomes neutros quando se tratam de pessoas não binárias”, acrescenta.
Os pedidos de acompanhamento psicológico surgem do próprio utente, do namorado ou namorada, de um amigo ou amiga e de familiares. Há casos de adolescentes também reencaminhados pelas escolas e pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens. As famílias expressam, por norma, “dúvidas, medos ou receios” quando se deparam com filhos homossexuais ou trans, havendo até casos em que emergem conflitos e as “famílias ficam de costas voltadas”, detalha.
Os dados provenientes dos estudos mais recentes, avisa o psicólogo, dão conta de uma subida das agressões contra pessoas LGBT+, fruto de “discursos muito radicais e extremistas” como os de que “não é correto uma pessoa ser trans” e da tendência recente de vários países da Europa para seguirem políticas mais conservadoras.
“Temos uma legislação muito avançada, mas o desafio é concretizá-la no terreno”
O coordenador do Bússola considera a legislação “progressista e inclusiva” de Portugal quanto às pessoas LGBTQIA+ e enaltece a recente aprovação pela Assembleia da República da proibição das práticas de conversão de pessoas LGBT+. “Há pessoas que vão a médicos, a psicólogos ou a líderes espirituais para tentarem curar a homossexualidade ou a bissexualidade. São sujeitas a práticas muito complicadas para curarem algo que não é doença”, salienta.
Falta, porém, “concretizar esta legislação no terreno” e garantir que as “pessoas LGBTQIA+ conquistam o seu espaço de respeito enquanto pessoas”, com “um dia a dia tranquilo, sem serem vítimas de uma sociedade opressora”, reitera Carlos Oliveira. O passo seguinte, diz, é o de “criar escolas, hospitais, centros de saúde, prisões, tribunais que qualquer ser humano frequente sem ser discriminado por causa da orientação sexual ou da identidade de género”.
"Falo das pessoas que estão naqueles serviços, de tornar o ambiente agradável. Em qualquer contexto, podemos encontrar pessoas LGBT+ e a pessoa tem de poder ser quem é, sem ser alvo daquele olhar de discriminação por estar vestido de determinada forma ou por se apresentar de determinada forma", detalha.
O coordenador do Bússola defende que os funcionários desses serviços devem ter “formação ou pelo menos conhecimentos básicos” para realizarem “um atendimento adequado com qualquer pessoa” e dá o exemplo de falta de casos em tribunal relativos a pessoas LGBT+ vítimas de violência. "Uma procuradora disse-me uma vez: porque não chegam denúncias de pessoas LGBT+ vítimas de violência aos tribunais? Ou os serviços precisam de mostrar que são inclusivos para as pessoas sentirem confiança na queixa ou temos de começar a preparar as pessoas nesse sentido", explica.