Com a herança dos ofícios a ecoar mais de longe, a Arcela busca novo devir
Alfredo Fernandes lembra-se de algo para mostrar e abre a porta de casa. Corre as divisões interiores até ao terraço e coloca um par de sapatos pretos ao alcance da lente. “Foi todo feito manualmente nesta semana que passou”, revela, numa voz tingida por 83 anos de vida e quase tantos outros de artesão.
Aquele cabedal, aquela sola, aquelas costuras são recortes que perpetua da Arcela de criança e de adolescente, nas décadas de 40 e de 50: “Era sapateiros, tabernas e fábricas de pentes”, resume. O fervilhar desses ofícios e o escorrer dos néctares ao balcão são páginas viradas na memória da rua, mas a anatomia daquele pedaço de Guimarães chega ao século XXI como testemunho de épocas bem anteriores a Alfredo.
Ladeada de fachadas com ecos medievais e de outras sem clara identidade arquitetónica (ainda que com histórias por detrás), a antiga via de Guimarães para Fafe e Amarante é hoje mistura heterogénea de alcatrão e paralelo, de imóveis antigos a exalar decrepitude e habitação moderna, de (escassos) passeios limpos e beiradas atulhadas de lixo. Esse ar desleixado a que parece sujeita a Arcela não é fenómeno exclusivo de 2021. Na edição de 15 de novembro de 1975 de O Comércio de Guimarães, uma gazetilha perguntava se o lugar era uma rua da cidade ou um caminho de aldeia face aos cheiros nauseabundos e à contaminação da água: “São covas no pavimento / água e cheiro pestilento / em parcelas alternadas: / silvas a tirar chapéus / o que é de bradar aos Céus / quanto a lixo é às carradas”, lê-se numa das estrofes assinadas por Perdigão.
Alfredo arca com as vicissitudes da Arcela desde os seis anos, quando deixou o lugar onde nascera, a rua Nova – oficialmente rua Egas Moniz -, em pleno centro histórico. Queria ser mecânico, mas a geografia só lhe dava oportunidades para "sapateiro ou trolha". Habituado a fazer linhas para os sapatos desde os sete anos, em pleno recreio da escola, meteu na cabeça que tinha de “aperfeiçoar” a arte.
“Foi por isso que não cresci. Trazia os cestos da obra para o meu pai e para os meus irmãos. Depois de pousar o cesto no chão, levava porrada”, Maria Teresa de Castro
Coseu o primeiro par aos nove anos e recebeu as primeiras ferramentas aos 12; ainda hoje a linha, os martelos e a grosa - instrumento com que se raspa e apara as solas – estão amontoados numa caixa. “Isto tem mais de 60 anos. Andava um senhor pelas portas a vender as ferramentas para os sapateiros e a minha mãe dava-lhe uma coroa por semana”, esclarece.
Alfredo recebia 20 escudos por cada par que ajudava a fazer. Às vezes, conseguia três por dia, numa jornada de trabalho que se estendia de quinta a domingo - “havia sapateiros que, na segunda, na terça e na quarta, iam para a venda jogar à sueca e que, de quinta a domingo, trabalhavam de noite e de dia”, recorda. E para que dava 20 escudos naquele tempo? Dava para um quarteirão de azeite, por exemplo. Tal como a década de 40, marcada pela guerra e pelas senhas de racionamento, o início da de 50 era de “miséria” naquela rua.
Aquela rua pelo Cano acima – nome deriva dos encanamentos de água serviam o centro urbano -, fazia-se de perícia em redor das formas do sapato, mas as matérias-primas para os artífices não surgiam do nada. Era preciso quem as levasse. Essa tarefa cabia, por exemplo, a Maria Teresa de Castro; nascida e criada na Arcela, descia à rua da Rainha ou à rua de Vila Verde, em Couros, e regressava com o cesto do material para o pai e os irmãos, José e Jerónimo, pousado na cabeça.
“Foi por isso que não cresci. Trazia os cestos da obra para o meu pai e para os meus irmãos. Depois de pousar o cesto no chão, levava porrada”, confessa, quando recua até à infância a partir dos seus 81 anos. Aos sábados levava a obra feita ao armazém, com o irmão mais velho. Ia ver as “lauras” – o dinheiro. É incapaz de abafar a palavra “miséria” quando se lembra do que era preciso fazer para haver comida na mesa.
Uma fortaleza de pentes
Numa olhadela rápida a um mapa, depreende-se que a rua tem cerca de um quilómetro, unindo a área do Cano, repartida entre Oliveira do Castelo e Azurém, a oeste, e a da Cruz d’Argola, já na freguesia de Mesão Frio, a leste. Quanto à origem do nome da rua, são outros quinhentos.
Não existe qualquer explicação provada para Arcela; apenas uma teoria, inscrita no inquérito paroquial de 1842 em São Pedro de Azurém. O documento, sem autor identificado, adianta que o termo deriva da palavra latina arx: “fortaleza”, em português. “Arcela seria um diminutivo. Poderia tratar-se de uma pequena fortaleza que existiu ali. Procurei em dicionários antigos o que quereria dizer Arcela e não encontrei”, adianta ao Jornal de Guimarães o historiador António Amaro das Neves.
Em 1799, a rua tinha um perfil suburbano, com 54 fogos, descreve o historiador Antero Ferreira no estudo “Família e Residência em Espaço Urbano – Guimarães em 1799”. O valor médio das propriedades era de “cerca de metade” face à Rua Nova do Muro, intramuralhas, e a concentração de penteeiros era “elevada”, perfazendo 45% do total das ocupações profissionais.
Há, porém, referências anteriores ao fabrico de pentes. As menções mais antigas ao ofício datam de 1358 e de 1459. “Gonçalo Anes e Álvaro Anes, providos da respetiva identificação profissional (…) atestam por si a existência em Guimarães de artífices penteeiros em tais épocas”, lê-se em Os mesteres de Guimarães, obra em sete volumes do antigo jornalista e vereador municipal A. L. de Carvalho, publicada em 1946.
Além de referências aos séculos XVIII, XIX e XX, com menções aos processos de fabrico e à arquitetura das casas-oficina, marcadas pelas janelas de peitoril saliente que expunham os trabalhos – são agora raras -, o escritor identificou 13 fábricas de pentes a laborar na década de 40.
“A nossa fartura não era de comida, mas de piolhos e de pulgas. As nossas mães pegavam naqueles pentes e até punham um jornal para apanhar os piolhos”, Alfredo Fernandes
Desse tempo, Alfredo ainda se recorda de quatro na Arcela ou em artérias envolventes: a Ribeirinho, a Inácio Ferreira, a António Fernandes – conhecido por “Perrote” - e a Manuel de Sousa, também chamada de “Sousa do Cano”.
Ainda que sapateiro, assistiu ao fabrico e à expedição de centenas e centenas de pentes na “Sousa do Cano”. Tanto assim foi que ainda consegue resumir o processo produtivo: começava-se por remover o sabugo – parte interior do chifre - com um machado num cepo de madeira; depois esses chifres eram serrados em pedaços e cortados a meio, antes de irem para o calor da forja e “começarem a abrir”. Quando abriam, os pedaços eram submetidos a uma prensa durante uma hora, transformando-se numa “espécie de tábua”. Aí estavam prontos para as máquinas que faziam os dentes dos pentes.
As memórias das “embalagens grandes” que saíam para Espanha ainda permanecem na cabeça de Alfredo. E o uso que os habitantes da rua faziam desses pentes também. “A nossa fartura não era de comida, mas de piolhos e de pulgas. As nossas mães pegavam naqueles pentes e até punham um jornal para apanhar os piolhos”, descreve.
Os resquícios da “Sousa do Cano” ainda se veem no terraço da casa de Jandira de Freitas Pereira, viúva de José de Sousa, o mais novo dos 11 filhos do antigo proprietário da fábrica: ainda se veem as marcas de uma porta e de duas janelas na parede de betão que albergava a produção. Ao lado, repousa uma estrutura que acolhia cinco casas de banho, enquanto no interior da própria casa, havia os vestiários, o atendimento ao balcão e o armazém.
As memórias dos pentes remontam à juventude, antes mesmo de se mudar para aquela casa, há 52 anos. Lembra-se dos “cornos a secar” e das minhocas que infestavam o material usado para os pentes; Alfredo Fernandes também menciona esses bichos, muito procurados para isco pelos pescadores.
Ainda que aquele tenha sido um espaço sobrepovoado na rua (como outros), a família Sousa afirmou-se naquele contexto. “O meu sogro foi a primeira pessoa a ter carro na rua. Quando o meu falecido homem estava na tropa, em Chaves, o meu falecido sogro e a minha sogra íamos levavam-me”, diz a cidadã de 74 anos.
Um “enxame de abelhas” que procurou néctar noutros lados
Jandira deambula pelas memórias numa conversa solta com Maria Teresa de Castro, residente mesmo em frente. “As crianças brincavam todas na rua. Aquele cantinho e este eram um enxame de abelhas”, recorda a habitante de 81 anos, apontando para os pequenos largos junto às antigas fábricas de pentes. Da outra margem da rua, Jandira responde com as fogueiras que ali se faziam quando se celebrava o São João.
Fosse com “canalha”, com o labor dos sapateiros ou dos penteeiros ou simplesmente com o resto do “povo”, a Arcela era quase sempre movimentada na juventude de Maria Teresa. Esse bulício começa, todavia, a perder-se quando o aparecimento de fábricas de calçado como o Campeão Português – fundada em 1955 -, ditam mudanças irreversíveis nos hábitos dos sapateiros. “Houve uma quebra nas tabernas”, resume Alfredo Fernandes.
As tabernas já eram âncora do quotidiano da Arcela décadas e décadas antes desse tempo; reconhecido dinamizador associativo e cultural em Guimarães, Fernando Capela Miguel afirma ter encontrado registos de 31 tabernas na rua durante o século XVIII.
Com a ascensão das novas fábricas, todavia, os sapateiros começaram a trabalhar fora de segunda a sexta-feira, pelo que os ruídos e aromas das tabernas apenas sobreviveram aos fins de semana; Alfredo Fernandes, por exemplo, mudou-se em 1958 para a Oliva, sapataria com fábrica na rua Gravador Molarinho (rua Escura) e loja na rua de Santo António.
À medida que as crianças se tornaram adultas, a Arcela foi perdendo gente. E isso não foi apenas resultado da transformação industrial. “Nos anos 50 e 60, era uma rua muito exposta à falta de saneamento, à falta de água. Era uma rua pobre e desleixada”, refere Amaro das Neves.
Os dois filhos de Maria Teresa e as duas filhas de Jandira mudaram de ares, por exemplo. “Não quiseram ficar aqui e foram para outros lados. Queriam casas modernas”, confirma a moradora na antiga “Sousa do Cano”. Uma das áreas que recebeu os filhos da Arcela foi a do Monte Largo, precisamente no outro lado da circular urbana, especifica Alfredo Fernandes.
Com o povo a envelhecer, certas tradições esmorecem: é o caso das celebrações de Santo António, em torno da capela. Alfredo Fernandes ajudou a manter vivas as festividades na década passada, juntamente com habitantes como Zeca Lobo, também de 83 anos, mas o cansaço venceu-os. “Já nos estávamos a sentir cansados. Não tínhamos quem nos ajudasse para armar barracas e cozinhar, e deixámos”, refere.
Ainda assim, parecem soprar ventos de mudança na Arcela: há imóveis recém-recuperados para alojamento local e outros em transformação. Mesmo Jandira menciona que uma das vizinhas arrenda uma casa a dois estudantes universitários, agora vazia. A onda de juventude com epicentro no campus de Azurém parece abarcar a rua em toda a sua extensão.
Na Cruz d’Argola, Neca Magalhães transformou, com sucesso, uma antiga tasca em restaurante; adaptou-se há cerca de 30 anos, quando a venda de vinho passava mal com a mudança da pipa para o balão e viu a oportunidade de servir mais refeições face aos pedidos dos médicos do antigo hospital. “Começaram a vir mais e, de um momento para o outro, isto ficou logo movimentado”, recorda o proprietário de 81 anos, nascido em Urgezes e habitante da rua desde os nove anos.
O restaurante é motivo de deslocações propositadas à Arcela, também por universitários. “Quem vem almoçar aqui não vem de passagem. Ao meio-dia, continua a trabalhar bem. Recebo muitos universitários e também gente que já trabalha”, resume.
Um futuro cosido com afetos
Há mais gente com a impressão de que os estudantes universitários são parte da hipotética regeneração da Arcela. “Não os sei quantificar, mas tenho a sensação de vários semblantes jovens passarem aqui à porta”, descreve o arquiteto Romeu Ribeiro ao Jornal de Guimarães.
Em parceria com o colega José Pedro Marques, é responsável pelo gabinete de arquitetura REM’A, instalado num edifício que pertenceu ao bisavô e teve mercearia. Ao longo da Arcela, veem-se imóveis em transformação: nalguns casos mantêm a fachada, noutros nem isso. Sem preocupações de maior quanto às operações, já que, na Arcela, “poucos são os edifícios com valor arquitetónico”, Romeu esclarece que a maioria das obras se destina a alojamento – sobretudo para universitários - ou a residência própria.
E muitos dos promotores são “familiares de antigos moradores da rua”, esclarece o arquiteto de 39 anos. “As pessoas têm uma dimensão afetiva para com esta rua e acabam por recuperar os imóveis dos antepassados. Em alguns casos, quando encontram um imóvel devoluto, tentam comprar”, observa.
Em outubro de 2020, Romeu Ribeiro seguiu a receita para fixar o seu local de trabalho, mesmo sendo dos poucos estabelecimentos de serviços na rua. Mas a circunstância não tem de ser má; a Arcela está em plena cidade, mas permite-lhe a fuga do “ambiente mais urbano”, confessa. “Dá-nos um ambiente mais recatado na cidade”.
* com Hugo Marcelo