De Brito para Ílhavo: escola deu “asas” à sensibilidade social de Ana Maria
“Dei umas grandes voltas”, confessa Ana Maria Rocha, quando examina uma vida com 53 anos, repartida pela Guimarães que lhe foi berço, pelo Porto e pelo eixo Ílhavo-Aveiro, o seu enquadramento quotidiano há quase 30; reside na cidade historicamente ligada à pesca do bacalhau e trabalha na capital de distrito, como técnica superior da Câmara Municipal na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens.
O combustível para a rota traçada obteve-o bem jovem, graças a uma decisão crucial dos pais: a de a deixarem estudar. A mãe, Maria Cardoso Peixoto, ainda viva, e o pai, Joaquim Santos Silva, já falecido, partiram de Brito para França quando tinha dois anos e regressaram aquando do 25 de Abril, quando tinha seis. Praticamente sem memórias da aventura por terras gaulesas, Ana Maria crê a emigração pode ter dado aos pais alguma “abertura de mentalidade” para a sua continuidade na escola.
“Depois de regressarem, a minha mãe era doméstica e o meu pai trabalhava na Alfa. Talvez tenha sido a ida para França que os levou a pensar que eu poderia progredir na missão de estudar. Assim foi”, reconhece.
A fasquia em relação à qual se media esse “progredir” era aquela que abarcava muitos dos adolescentes e jovens residentes em Brito – era já “uma freguesia muito populosa” na década de 80, com mais de três mil habitantes, lembra -, na maior parte do concelho de Guimarães e um pouco por todo o Vale do Ave: aqueles edifícios austeros de chaminé laranja ao alto, os barulhos ensurdecedores de máquinas a trabalhar sem parar, a rotina de uma cadeia de produção têxtil.
“Havia muitos adolescentes. Tinha muitos vizinhos da minha idade. Naquela altura, quem fizesse o 6.º ano ia automaticamente trabalhar para as confeções, para as fábricas. Era o futuro praticamente de todos os jovens”, descreve.
“Havia uma apetência para estudar. Era muito idealista e também tinha algumas capacidades. Não queria ser uma simples operária. Queria asas e sair daquele meio”, Ana Maria Rocha
Ana Maria foi uma das poucas britenses a quem se lhe abriram as portas da cidade no início da década de 80: fez o 7.º e o 8.º ano na Escola Secundária Francisco de Holanda e mudou-se depois para a Martins Sarmento, onde viria a conhecer uma pessoa que a ajudou a encontrar a igreja e, mais tarde, o sul. “Tive uma professora de Religião e Moral que desencadeou a minha relação com a igreja. Chamava-se Alzira Fernandes e, na altura, era muito conhecida em Guimarães. Era uma pessoa extraordinária. Era licenciada em Germânicas, mas depois tirou um curso de Teologia. Mais tarde, encontrei-a em Taizé, em França”, lembra.
Essas aulas despertaram-lhe “valores espirituais” e a sensibilidade para “ideais mais humanitários”, motivando-a a ser elemento ativo na paróquia de Brito: “Frequentava movimentos como a Legião de Maria, assumia as leituras nas eucaristias, tinha uma relação muito próxima com as atividades litúrgicas”, enumera.
A “queda” para “ideais humanitários” e a vontade de estudar fizeram-na aperceber-se de que a terra natal não seria o seu futuro. “Havia uma apetência para estudar. Era muito idealista e também tinha algumas capacidades. Não queria ser uma simples operária. Queria asas e sair daquele meio”, reitera.
O problema mais difícil é o “maltrato psicológico” da violência doméstica
A licenciatura em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto para quem demonstrava a “inclinação” de Ana Maria; foi viver para a maior cidade nortenha no final da década de 80, na “casa de umas pessoas que tinham um lar de idosos”, mas desencantou-se com o curso, devido à escassez de opções profissionais no horizonte. “Via que não havia saída. Na altura, fiquei muito desanimada com a situação e acabei por não concluir”, admite.
A britense chegava a uma fase da vida em que precisava de alicerces mais práticos para a sensibilidade social e encontrou-a novamente a sul: concluiu a licenciatura em Administração Pública, na Universidade de Aveiro. “O curso deu-me as ferramentas e os conhecimentos para ter o melhor desempenho possível na minha área profissional. Foi bom concretizar isso”, esclarece.
A vocação profissional não foi o único motivo que a levou à Veneza portuguesa; na primeira metade da década de 90, conheceu o marido, António Rocha, casou e mudou-se do Porto para Ílhavo. Viu a sua única filha, Maria do Rosário, nascer em 1995, já depois de ter ingressado na Câmara Municipal de Aveiro.
Trabalhou desde logo na área social, sendo um dos elementos da autarquia na CPCJ, juntamente com representantes de instituições como o Ministério da Educação, o Ministério da Saúde, o Instituto de Segurança Social, a GNR e a PSP. Qualquer criança é “sinalizada”, mal esteja envolvida numa “situação de perigo”, realça. “Isso está estabelecido na lei. Depois temos de avaliar essas situações e de ver o que é preciso fazer. Há todo um trabalho administrativo e depois o acompanhamento junto das famílias”, resume.
Como técnica da Câmara de Aveiro, Ana Maria Rocha sempre teve de lidar com problemas como o absentismo ou o abandono escolar, mas o “mais difícil” de todos, de “há dois ou três anos a esta parte”, é a violência doméstica. O flagelo esteve algo “escondido” durante o confinamento, mas, nos últimos meses, a CPCJ tem recebido notificações de situações desse teor “praticamente todos os dias”. “É um grande problema do nosso país e não só desta zona”, descreve.
Raramente “agredidos fisicamente”, as crianças e os jovens padecem do “maltrato psicológico” do sucedido entre os pais. Especialista em assistência social, Ana Maria Rocha refere ainda que o efeito da violência psicológica nos mais jovens é um “assunto complexo”, num tempo com “grandes mutações” nos modelos de família. “Não podemos chegar a conclusões rapidamente, para não corrermos o risco de formar algum radicalismo”, sugere.
“As pessoas aqui são mais formalistas. Aí, mais dadas”
É precisamente na dimensão social que vislumbra a diferença mais notória entre a terra que a viu nascer e aquela que escolheu para viver. “Quer Ílhavo, quer Aveiro são ambientes sociais diferentes daqueles pelos quais passei quando era mais nova, em Guimarães e, mais especificamente, em Brito. As pessoas aqui são mais formalistas. Não tem nada a ver com a forma singela das pessoas aí de cima, mais dadas”, compara.
Apesar das diferenças no “comportamento social”, diz-se “bem acolhida pela família do marido” e “mais do que integrada” em Ílhavo, comunidade onde foi mantendo a relação com a igreja, ao dar catequese na paróquia de São Salvador. A meros seis quilómetros do trabalho, Ana Maria Rocha desfruta ainda de uma cidade com “sítios lindíssimos”: há o braço da ria de Aveiro que ali passa, “qualquer coisa de extraordinário”, e as “esplendorosas” praias da Costa Nova e da Barra, com as casas típicas de olhos no mar.
Falta, porém, a “história e os monumentos de Guimarães”. E também “os cheiros, as cores e o verde”, traços que ainda polvilham as recordações, mesmo que distantes. A gastronomia ainda é um dos vestígios da região natal que procura manter vivos: apesar do marido cozinhar com mais frequência, gosta de “reproduzir os sabores” que apurou enquanto criança, nomeadamente as tripas farinheiras que acompanham os rojões. O consumo do bacalhau é outro dos traços que distingue o ponto de partida e o ponto de chegada: enquanto em Guimarães se come simplesmente a posta, em Ílhavo, terra cuja identidade está associada à pesca, usa-se também os derivados para as receitas.
Com a vida estabilizada, o regresso definitivo a Guimarães está fora de questão. Mas as visitas com “mais alguma regularidade” ao berço é algo que pondera. “Habituei-me às minhas rotinas e só pontualmente me desloco a Brito para estar com a minha mãe e os meus familiares. Talvez precise de voltar com mais regularidade”, perspetiva.