Em torno do CIAJG, os ritmos do mercado serão lembrados e a palavra falada
O entroncamento entre a Avenida Conde de Margaride e a rua Paio Galvão alberga hoje uma praça ampla circunscrita pelas fachadas de Marques de Silva e pelos prismas que compõem o Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG); sobra espaço para as pessoas atalharem caminho ou se estenderem ao sol num dos bancos. Há 20 anos, as mesmas coordenadas indicavam um labirinto atafulhado de comida, flores e animais, inevitavelmente desenhado para o encontro (e para o confronto) de clientes e vendedores, por entre aromas e sons.
A segunda open call para a animação do espaço público do Bairro C – Cruzar Mundos, Cruzar Caminhos - promete aproximar aquela geografia do seu passado, mas também de possíveis futuros; no final do verão, a Plataforma das Artes e Criatividade (PAC) vai acolher Fórum, o projeto vencedor na categoria de Arte Pública, evocação do mercado que ali habitou, segundo uma estrutura longitudinal com panos e sombras, alicerçada na madeira, tal como as estacas de outrora, e duas iniciativas de programação cultural. São elas Sem Espinhas, convite à reflexão sobre processos de cultivo e de consumo, e Minha Poetry Slam, oportunidade para a palavra falada ocupar o espaço público vimaranense.
Desses três projetos, dois são da autoria de Andreia Garcia; arquiteta e investigadora, nasceu e cresceu em Guimarães. E a “vontade de observar a relação com o passado”, que é também parte da “sua história”, sustenta a instalação que ali se vai erguer. “Haverá um confronto com o cenário urbano pré-existente, que serviu para as pessoas comprarem comida e flores”, adianta ao Jornal de Guimarães. “Há aqui um papel de fórum na representação do legado do mercado, que deu origem não só à narrativa, mas também ao título”.
Para a esperada “imersão na memória do antigo mercado”, a arquiteta propõe uma estrutura longitudinal em madeira, “aparentemente simples”; cabe a essa “rememoração das estacas colocadas nos mercados” suportar os panos que “proporcionam o sombreamento”. A instalação pode evocar “uma mesa de refeição ou de venda de produtos”, mas também um banco – “o tal lugar da permanência e da conversa” – ou “uma mesa mais alta”, para promover um outro tipo de relação com a comida.
“Queria desenhar novos palcos de conversa, novas situações de paisagem, novas formas de permanência, mas também novos lugares de comensalidade naquele já foi um lugar de venda de comida (…) Propõem-se vários usos quase que camuflados neste panejamento branco que o envolve”, descreve ao Jornal de Guimarães a também vice-presidente da Faculdade de Engenharia da Universidade da Beira Interior.
Espaço com “características comuns” entre várias cidades europeias, o mercado pode funcionar como uma “espinha dorsal” de uma urbe, “não só no desenho urbano, mas também no desenho social dos cidadãos”, daí o “interesse em recuperar a herança” daquele que habitou, em Guimarães.
“O lugar do mercado não deixa de ser o lugar do drama, o lugar do encontro, o lugar do entretenimento. Muito se relaciona com este lugar da cultura. A cultura pode (e deve) olhar para esta geografia preexistente, antecessora, e perceber como é que o discurso ou o progresso desse discurso pode recuperar esse pensamento popular e identitário”, reitera ainda.
Encarar o futuro com poesia para todos, “sem espinhas”
Se a ideia de “espinha dorsal” é chave para a arquitetura, a curadoria proposta por Andreia Garcia rasga futuros Sem Espinhas; na articulação com a dimensão “ecológica”, esse projeto quer dar um novo cunho à “identidade não só visível, mas também alimentar” daquela praça.
Um dos itinerários para o fazer é desencadear a conversa entre artistas, arquitetos e investigadores que trabalharam para “se recuperar a consciência dos vários sistemas alimentares”, quase com “num mapeamento da cidade a partir da comida”. “Vivemos numa era em que os mais novos até acham que as alfaces nascem nas estantes do supermercado. Falamos também da escassez do cereal; temos silos parados, que acusam a escassez dos alimentos”, realça, a título de exemplo.
Através de outros momentos, como a recriação de um mercado de comida ou “um exercício de showcooking”, Sem Espinhas quer pôr na mesa a reflexão sobre “processos do cultivo, mas também do consumo” e abrir “novos cenários, possivelmente mais sustentáveis”, através, por exemplo, da recuperação da “memória perdida das plantas”. “Aquelas plantas para as quais olhamos com desdém, como as ervas daninhas, podem ser transformadas num chá”, dá conta.
A curadoria, realça a coordenadora artística do CIAJG, Marta Mestre, é uma via para “ressignificar a praça, deslocando-a da memória para outras possibilidades de vivência”. Um dos tópicos que emergiram no debate sobre o CIAJG, decorrido em maio, foi a relação entre o museu e o espaço que o ladeia: na primeira década, a PAC foi palco de celebrações coletivas – tão díspares como a inauguração da exposição de Ann Hamilton para a Contextile, a transmissão de jogos da seleção nacional masculina de futebol no Euro 2016 ou a apresentação de plantéis do Vitória – ou de exposições ocasionais, como a da Agência Espacial Portuguesa.
No entretanto, é lugar de atravessamento ou de recreação, sobretudo para os alunos da Escola Secundária Francisco de Holanda, nas suas horas livres. Esse uso da população adolescente enquadra-se precisamente no outro projeto de curadoria escolhido na open call.
Depois de Feira Paisagem, iniciativa do Centro para os Assuntos de Arte e Arquitetura (CAAA) decorrida em junho, Caroline Bampa, gestora e consultora de projetos culturais que já passou pela secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, voltará à cidade-berço para a Minha Poetry Slam - Batalha de Poesia das Mulheres do Minho, curadoria que vai dar palco à poesia falada, fenómeno artístico em forma de concurso que se considera ter nascido em 1984, na cidade norte-americana de Chicago.
A descrição do projeto atesta que o slam, “tradição literária dissonante e potente”, que é, em simultâneo, “ocupação do território, resgate da oralidade, palavra-arma-de-fogo, poema, corpo, performance e dessacralização da literatura”, é “uma semente na direção de um circuito literário mais democrático e plural, onde a poesia não seja uma exclusividade de poucos, mas uma possibilidade para todas as pessoas”. No final do verão, Guimarães vai-se, pela primeira vez, deparar com essa manifestação artística.