João Gil Freitas: diplomacia vimaranense numa cidade que é “todo um mundo”
Guimarães e Moscovo: à primeira vista, parece algo bizarro colocar sob a mesma lente estes territórios separados por 3650 quilómetros em linha reta. A fundação oficial de ambos remonta à Idade Média, é certo, mas as escalas são incomparáveis. Em Portugal, existe uma cidade a rondar os 50 mil habitantes e um concelho de pouco mais de 150 mil, dispersamente urbanizado. A capital da Rússia é uma área metropolitana densa e concêntrica com mais de 20 milhões de pessoas, a maior da Europa, e tem um coração que bate a partir de uma trindade bem conhecida: Praça Vermelha, Kremlin e Catedral de São Basílio.
Ainda que díspares, estes dois espaços comprimem-se o suficiente para caberem na vida de João Gil Freitas: Guimarães é o lugar onde nasceu, cresceu e viveu até 2012, ano em que se mudou para Lisboa para trabalhar nos serviços internos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. No verão de 2019, rumou a Moscovo para trabalhar na Embaixada Portuguesa na Rússia. “Foi uma circunstância feliz, uma vez que as temáticas relacionadas com a Rússia e o espaço pós-soviético ocupam há muito um lugar central nos meus interesses”, lembra, em conversa com o Jornal de Guimarães.
Assim se veio a aprofundar uma relação iniciada em 2006, ano da primeira visita à metrópole russa, enquanto frequentava a licenciatura em Relações Internacionais da Universidade do Minho (UMinho) e tirava um curso de língua russa. À época, viu uma cidade “absolutamente extraordinária, de uma enorme riqueza histórica, patrimonial e arquitetónica”, mas, passados 15 anos, considera-a ainda melhor. “Não me canso de a elogiar, pois para além da sua beleza e monumentalidade intrínsecas, é uma grande capital, moderna e vibrante”, descreve. “Uma cidade que merece ser visitada e revisitada”.
Para uma urbe que aparenta incontáveis razões de encanto, a rotina de João Gil Freitas é deveras automatizada, reconhece. Sem “felizmente” precisar do carro para chegar à embaixada, já que a viagem a pé demora cerca de meia hora, o diplomata vimaranense começa a jornada de trabalho entre as 10:00 e as 10:30 e termina-a entre as 21:00 e as 22:00. “Não é nada de muito romântico”, confessa.
O tempo de trabalho, aliás, passa-se quase todo no mesmo local, principalmente desde que a pandemia condicionou os eventos ocasionalmente realizados por outras embaixadas. “Muitas vezes, éramos convidados para irmos a eventos, a receções, jantares, inaugurações de exposições, concertos. Agora temos ido muito menos”, explica.
Enquanto Conselheiro Político e Encarregado da Secção Consular, o vimaranense tem de acompanhar o “quotidiano político, social e económico da Rússia”, bem como o dos restantes países da área de jurisdição do posto: Bielorrússia e Arménia, na Europa, e Quirguistão, Uzbequistão e Tajiquistão, na Ásia, todos ex-membros da União Soviética (URSS). Entre as tarefas a desempenhar, incluem-se a “emissão de vistos e demais atos consulares”, a “assistência consular a qualquer cidadão nacional na área de jurisdição”, residente na Rússia ou “de passagem por motivos de negócio ou lazer”, relata.
Este trabalho de diplomacia, que João considera “acima de tudo uma missão de serviço público”, está ancorado na relação que começou a desenvolver com aquela geografia ainda na universidade. Após ter entrado na licenciatura em Relações Internacionais, em 2003, o então aluno teve de escolher duas línguas para estudar no segundo ano. Decidiu-se pelo inglês e pelo francês, mas arrependeu-se da segunda opção. “Queria uma língua diferente. E a oferta de línguas da UMinho tinha russo”, lembra.
A centelha na origem dessa escolha foi o interesse pela “história e a cultura” do país. A partir daí, fez quatro níveis de língua russa, aprofundou o conhecimento sobre o país e aproveitou esse lastro para o estudar o espaço pós-soviético no âmbito das relações internacionais. Em julho de 2012, defendeu uma dissertação de mestrado em Estudos Europeus, intitulada “A União Europeia no espaço pós-Soviético: o poder normativo de Bruxelas na "vizinhança comum" face à Rússia”, que explora precisamente o tema. “A minha tese é sobre a Política Europeia de Vizinhança. O meu caso de estudo foi a Ucrânia,”, detalha.
“O metro é como um organismo vivo”
Assim que tem tempo, o diplomata não se coíbe de fruir de uma cidade que é “todo um mundo” e tem “tantos locais espantosos” para oferecer. Além da Praça Vermelha, referência “óbvia e indispensável”, João Gil Freitas aconselha também a passagem pela avenida Tverskaya, a mais movimentada de Moscovo, por Novodevichy, convento que é Património Mundial desde 2004, por Tsaritsyno, palácio fundado por Catarina, a Grande no século XVIII, ou pela universidade Lomonosov, reflexo da arquitetura soviética. E não esquece os museus, sejam os do Kremlin, o da Vitória, referente à Segunda Guerra Mundial, ou os lugares das artes – museu Pushkin e galeria Tretyakov.
A língua poderá ser a “grande dificuldade inicial” para um português que se desloque pela primeira vez à capital russa. João Gil recomenda o uso de “algumas palavras básicas em russo”, já que o “esforço é bastante apreciado” pelos locais, mas, para lá disso, considera a questão linguística um “obstáculo contornável”, até porque a “matriz cultural” russa é europeia. “Não estranhamos nenhuma tradição russa. Nem mesmo a gastronomia. Pelo contrário, há até um sentimento de proximidade bastante espontâneo”, descreve.
Para as eventuais barreiras aos visitantes se esbaterem, a cidade disponibiliza sinalética pública em inglês nas “zonas mais centrais ou turísticas” e nos sistemas de transporte. É precisamente nos transportes, nomeadamente o metro, que o vimaranense encontra a principal maravilha da cidade. Com 412 quilómetros de linhas e 241 estações, esse corpo subterrâneo fundado em 1935 distingue-se pela “funcionalidade”, graças à “pontualidade e regularidade impressionantes das carruagens”, e pela majestade de algumas das estações mais antigas, revestidas a mármore, a granito e até a ónix. "Em Moscovo, o metro é como um organismo vivo", descreve.
Um sistema de transportes assim não é “replicável” em nenhuma cidade de Portugal, mas poderia “servir de inspiração para dotar Guimarães e as cidades envolventes de pequena e média dimensão de melhores interligações, mais adaptadas e mais amigas do utilizador”, considera.
Um almoço nos pais, um bolo de arroz das Trinas e Vitória
A menção ao funcionamento dos transportes de Guimarães não surge por acaso; João Gil Freitas não se esquece da terra-mãe. A companheira com quem vive em Moscovo, também vimaranense, ajuda-o a “ultrapassar as saudades de casa”, mas continua a sentir “falta” das origens. “Tudo em Guimarães me faz falta. Desde logo a família, os meus pais e a minha irmã, que felizmente conseguiu ficar em Guimarães a trabalhar. É o que mais me custa, mas não se pode ter tudo”, assume.
Ao diplomata, faltam ainda “pequenas coisas”: ver as “pessoas nos cafés, nas ruas e praças de sempre”, contemplar a Colina Sagrada ou tão só comer um bolo de arroz da padaria das Trinas. “São coisas aparentemente tão insignificantes e tão preciosas. Quem é de Guimarães acho que me entenderá”, espera.
Falta-lhe também ver o Vitória no Estádio D. Afonso Henriques, como “fez regularmente toda a vida”. Já aconteceu ver um jogo da equipa de futebol através da televisão russa, mas “não é a mesma coisa assistir à distância”, assume. Se por um qualquer fenómeno pudesse regressar a Guimarães apenas umas horas, regressar ao estádio era uma das coisas que faria. A outra seria almoçar em casa dos pais.
O futuro “imediato”, esse, “deverá continuar a passar por Moscovo”, assume João. A longo prazo, a carreira na diplomacia, quanto “ao local de trabalho e residência”, é mais incerta, não sendo de descartar um “eventual regresso a Lisboa”. Mas por muito que varie a rota do vaivém, há sempre uma constante. “Foi em Guimarães que passei a maior parte da minha vida. É lá que está a minha família, os meus amigos, as minhas memórias e o meu coração. Volto sempre que posso”.