No CRO, um raio de liberdade para os que vivem na caixa
“Sim, amor, eu sei”, assente Cátia Martins, enquanto afaga Mimo, um dos 46 cães que habitam o Centro de Recolha Oficial (CRO) de Guimarães. É sábado de manhã, tempo de interromper a rotina que os compartimenta por boxes e que os confina ao jardim interior naquele lugar entre Aldão e Atães. Está sol, e os canídeos passeiam, galgam ou espraiam-se pelo amplo recinto da feira grossista com um ar prazeroso que lhes faz falta.
“Num espaço tão pequeno, eles são uma pilha de energia. E isto acalma. Eles apercebem-se que estão bem e que as pessoas cuidam deles, mas quando voltam lá para dentro, volta o estado de ansiedade”, refere uma das voluntárias que aderiu à iniciativa da Sociedade Protetora dos Animais de Guimarães. “Comecei a vir cá há cerca de mês e meio. Durante a semana, se tiver disponibilidade, sou capaz de cá vir duas vezes e depois ao sábado”, acrescenta.
Terapeuta de formação, Cátia reconhece que a “maior dificuldade” à semana é a de escolher os cães que acedem ao exterior; os voluntários não chegam para os passear a todos. O critério favorece, por norma, os “cães de maior porte ou de mais energia”, que precisam de “libertar o que está acumulado”.
A voluntária pratica reiki e já aplicou esses princípios em Belinha, cadelinha que passou a “caminhar e a conviver com pessoas” depois de um tempo em que nem sequer saía da box. E todas as horas passadas entre paredes, num ambiente escuro, geram problemas que a proximidade aos animais lhe permite identificar. “Ao estarem fechados, muitos cães ficam com as orelhas extremamente secas. Depois, começam a abrir e ficam em carne viva. Outros exibem muita caspa. Uma pessoa passa a mão e não sai”, constata, antes de se voltar novamente para Mimo: “Vais-te sentar aí? Assim está melhor?”.
“Um caos controlado”: as adoções escasseiam e desespera-se por obras
Coordenadora da ação de voluntariado, Isabel Rodrigues está alerta para os problemas de que a infraestrutura padece, principalmente quando as “adoções não são suficientes”. A circunstância bloqueia a rotatividade do CRO – tem cerca de 90 animais, entre cães e gatos – e favorece a proliferação das “ninhadas”, por “animais errantes” à parte das medidas de esterilização. “Um dos nossos objetivos seria que o CRO fosse um centro de bem-estar animal e não um canil que, no fundo, é quase um depósito”, salienta a vice-presidente da SPAG. “Mas as adoções não são as que desejaríamos”.
Confrontada com mais “ninhadas”, a infraestrutura municipal depara-se com mais operações de resgate, alojando os seres que precisam de tratamento. Daí os indícios de “sobrelotação” que tornam o espaço num “caos controlado”. “Não há condições dignas para os animais. Não têm nenhuma liberdade para saírem. Os espaços exteriores que não estão divididos e deveriam estar”, descreve.
Soluções? As obras no canil já faladas em 2014 e em 2017, “urgentíssimas”, mas ainda sem qualquer sinal concreto de avanço. “Isto é de extrema importância. Não se trata de um terreno em que queremos construir qualquer coisa. Tratam-se de vidas”, realça Isabel Rodrigues. “Dizem-nos sempre que havia um projeto, mas já são demasiados anos para resolver isto”.
“Um dos nossos objetivos seria que o CRO fosse um centro de bem-estar animal e não um canil que, no fundo, é quase um depósito”, Isabel Rodrigues, vice-presidente da SPAG
Mas a versão futura do canil e do gatil municipal está mesmo vertida para o papel, adianta ao Jornal de Guimarães a veterinária municipal do CRO, Guida Brito. Enfermaria e zona de recobro para cães, enfermaria para gatos, um acesso exclusivo ao exterior para gatos, um dog park em redor da infraestrutura, para qualquer pessoa “passear os seus animais”, e uma sala polivalente para “espécies não tão comuns”, já que o centro tem a missão de recolher “tudo o que está na via pública”.
“O município ouviu os nossos contributos. É um projeto inovador, com muita qualidade. Preocupa-se não só em alojar os animais, como em dar o salto qualitativo”, diz a responsável por uma equipa de seis elementos que, à semana, presta aos animais uma assistência de 12 horas diárias – 07h00 às 19h00 - e que, ao fim de semana, pugna pela “limpeza, desinfeção e alimentação” dos inquilinos.
A data de arranque da intervenção é, porém, variável que Guida Brito desconhece; e elas são necessárias, porque as dificuldades com que o CRO se debate são exatamente as identificadas por Isabel Rodrigues. “Os espaços são pequenos e nem todos os animais têm a sorte de ser adotados”, reconhece. “Há muitos que permanecem aqui anos”.
Com as adoções “estáveis” ao longo dos últimos anos, a corrente pára: a rotação abranda, o espaço comprime-se e vários animais quedam-se por uma “lista de espera”. E o CRO não pode mesmo esticar a manta por questões de “segurança”: há “animais que não se dão mesmo uns com os outros”.
“Nem todos são compatíveis”, declara. A missão do CRO exige, por isso, mais do que os cuidados “básicos”. “Temos de socializar, de os passear, de os acompanhar o mais possível, com segurança”, descreve a veterinária, elogiando a iniciativa da SPAG. “Com quantas mais pessoas os animais conviverem, melhor”.
A comunidade (com selo Erasmus) tem de retribuir
Os latidos em série prenunciavam um desfile a quatro patas, moldado por cores, feitios e timbres vários. Entre as personalidades que deixaram as boxes, viram-se dois dálmatas, abraçados por cinco jovens que tencionam usufruir o tempo que lhes resta do Erasmus, até junho. “Não estamos como outros estudantes Erasmus. Sou designer de interiores e estou numa empresa desde outubro até junho. Tinha um cão e dois gatos na Letónia”, conta Agnessa Zelinska.
À semelhança de Agnessa, Patricia Graudina cresceu num ambiente rural do país báltico, com cães e gatos. Quando soube da iniciativa da SPAG, aderiu logo. “Gosto de animais. Como vamos embora em junho e não temos muito mais tempo, viemos passear os cães e conhecer gente nova”, confessa.
Um pouco acima, no rebordo da feira grossista, André Alves cumpre o primeiro sábado de manhã como voluntário, passeando Albi. Tem uma cadela em casa, mas deixou de a passear para servir aqueles cães que passam muitas horas presos e que carecem de espaço exterior. “A minha cadela foi resgatada do CRO, e eu sinto que a retribuição da comunidade faz todo o sentido. Tenho tempo livre ao fim de semana e há imenso espírito de comunidade aqui”, descreve o jovem de 25 anos.