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No CRO, um raio de liberdade para os que vivem na caixa

Tiago Mendes Dias
Sociedade \ sábado, abril 16, 2022
© Direitos reservados
Dezenas de voluntários reúnem-se aos sábados no canil para darem espaço a quem dele sente falta: os cães do CRO de Guimarães deixam as boxes escuras enquanto se aguardam as prometidas obras.

“Sim, amor, eu sei”, assente Cátia Martins, enquanto afaga Mimo, um dos 46 cães que habitam o Centro de Recolha Oficial (CRO) de Guimarães. É sábado de manhã, tempo de interromper a rotina que os compartimenta por boxes e que os confina ao jardim interior naquele lugar entre Aldão e Atães. Está sol, e os canídeos passeiam, galgam ou espraiam-se pelo amplo recinto da feira grossista com um ar prazeroso que lhes faz falta.

“Num espaço tão pequeno, eles são uma pilha de energia. E isto acalma. Eles apercebem-se que estão bem e que as pessoas cuidam deles, mas quando voltam lá para dentro, volta o estado de ansiedade”, refere uma das voluntárias que aderiu à iniciativa da Sociedade Protetora dos Animais de Guimarães. “Comecei a vir cá há cerca de mês e meio. Durante a semana, se tiver disponibilidade, sou capaz de cá vir duas vezes e depois ao sábado”, acrescenta.

Terapeuta de formação, Cátia reconhece que a “maior dificuldade” à semana é a de escolher os cães que acedem ao exterior; os voluntários não chegam para os passear a todos. O critério favorece, por norma, os “cães de maior porte ou de mais energia”, que precisam de “libertar o que está acumulado”.

A voluntária pratica reiki e já aplicou esses princípios em Belinha, cadelinha que passou a “caminhar e a conviver com pessoas” depois de um tempo em que nem sequer saía da box. E todas as horas passadas entre paredes, num ambiente escuro, geram problemas que a proximidade aos animais lhe permite identificar. “Ao estarem fechados, muitos cães ficam com as orelhas extremamente secas. Depois, começam a abrir e ficam em carne viva. Outros exibem muita caspa. Uma pessoa passa a mão e não sai”, constata, antes de se voltar novamente para Mimo: “Vais-te sentar aí? Assim está melhor?”.

 

Cátia Martins e Isabel Rodrigues são duas das voluntárias que acompanham os cães do CRO

Cátia Martins e Isabel Rodrigues são duas das voluntárias que acompanham os cães do CRO

 

“Um caos controlado”: as adoções escasseiam e desespera-se por obras

Coordenadora da ação de voluntariado, Isabel Rodrigues está alerta para os problemas de que a infraestrutura padece, principalmente quando as “adoções não são suficientes”. A circunstância bloqueia a rotatividade do CRO – tem cerca de 90 animais, entre cães e gatos – e favorece a proliferação das “ninhadas”, por “animais errantes” à parte das medidas de esterilização. “Um dos nossos objetivos seria que o CRO fosse um centro de bem-estar animal e não um canil que, no fundo, é quase um depósito”, salienta a vice-presidente da SPAG. “Mas as adoções não são as que desejaríamos”.

Confrontada com mais “ninhadas”, a infraestrutura municipal depara-se com mais operações de resgate, alojando os seres que precisam de tratamento. Daí os indícios de “sobrelotação” que tornam o espaço num “caos controlado”. “Não há condições dignas para os animais. Não têm nenhuma liberdade para saírem. Os espaços exteriores que não estão divididos e deveriam estar”, descreve.

Soluções? As obras no canil já faladas em 2014 e em 2017, “urgentíssimas”, mas ainda sem qualquer sinal concreto de avanço. “Isto é de extrema importância. Não se trata de um terreno em que queremos construir qualquer coisa. Tratam-se de vidas”, realça Isabel Rodrigues. “Dizem-nos sempre que havia um projeto, mas já são demasiados anos para resolver isto”.

 

“Um dos nossos objetivos seria que o CRO fosse um centro de bem-estar animal e não um canil que, no fundo, é quase um depósito”, Isabel Rodrigues, vice-presidente da SPAG

 

Mas a versão futura do canil e do gatil municipal está mesmo vertida para o papel, adianta ao Jornal de Guimarães a veterinária municipal do CRO, Guida Brito. Enfermaria e zona de recobro para cães, enfermaria para gatos, um acesso exclusivo ao exterior para gatos, um dog park em redor da infraestrutura, para qualquer pessoa “passear os seus animais”, e uma sala polivalente para “espécies não tão comuns”, já que o centro tem a missão de recolher “tudo o que está na via pública”.  

“O município ouviu os nossos contributos. É um projeto inovador, com muita qualidade. Preocupa-se não só em alojar os animais, como em dar o salto qualitativo”, diz a responsável por uma equipa de seis elementos que, à semana, presta aos animais uma assistência de 12 horas diárias – 07h00 às 19h00 - e que, ao fim de semana, pugna pela “limpeza, desinfeção e alimentação” dos inquilinos.

A data de arranque da intervenção é, porém, variável que Guida Brito desconhece; e elas são necessárias, porque as dificuldades com que o CRO se debate são exatamente as identificadas por Isabel Rodrigues. “Os espaços são pequenos e nem todos os animais têm a sorte de ser adotados”, reconhece. “Há muitos que permanecem aqui anos”.

Com as adoções “estáveis” ao longo dos últimos anos, a corrente pára: a rotação abranda, o espaço comprime-se e vários animais quedam-se por uma “lista de espera”. E o CRO não pode mesmo esticar a manta por questões de “segurança”: há “animais que não se dão mesmo uns com os outros”.

“Nem todos são compatíveis”, declara. A missão do CRO exige, por isso, mais do que os cuidados “básicos”. “Temos de socializar, de os passear, de os acompanhar o mais possível, com segurança”, descreve a veterinária, elogiando a iniciativa da SPAG. “Com quantas mais pessoas os animais conviverem, melhor”.

 

 

A comunidade (com selo Erasmus) tem de retribuir

Os latidos em série prenunciavam um desfile a quatro patas, moldado por cores, feitios e timbres vários. Entre as personalidades que deixaram as boxes, viram-se dois dálmatas, abraçados por cinco jovens que tencionam usufruir o tempo que lhes resta do Erasmus, até junho. “Não estamos como outros estudantes Erasmus. Sou designer de interiores e estou numa empresa desde outubro até junho. Tinha um cão e dois gatos na Letónia”, conta Agnessa Zelinska.

À semelhança de Agnessa, Patricia Graudina cresceu num ambiente rural do país báltico, com cães e gatos. Quando soube da iniciativa da SPAG, aderiu logo. “Gosto de animais. Como vamos embora em junho e não temos muito mais tempo, viemos passear os cães e conhecer gente nova”, confessa.

Um pouco acima, no rebordo da feira grossista, André Alves cumpre o primeiro sábado de manhã como voluntário, passeando Albi. Tem uma cadela em casa, mas deixou de a passear para servir aqueles cães que passam muitas horas presos e que carecem de espaço exterior. “A minha cadela foi resgatada do CRO, e eu sinto que a retribuição da comunidade faz todo o sentido. Tenho tempo livre ao fim de semana e há imenso espírito de comunidade aqui”, descreve o jovem de 25 anos.

 

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