Onde a cruz se faz de povo, vida e cor, há ainda símbolos por assear
O Calvário e a cruz: protagonistas indissociáveis da Paixão de Cristo, episódio culminar dos quatro evangelhos canónicos da Bíblia, âmago da fé de milhões. Ano após ano, a Sexta-Feira Santa reveste-se de luto para os que se afirmam cristãos, mas não é impossível que tais encaminhem o culto religioso para um outro sentido, mais luminoso.
Em Serzedelo, Calvário é o nome de uma capela alpendrada, epicentro de um fenómeno em que a universalidade do calendário da Igreja Católica se embrenha nos ritmos de uma comunidade paroquial. O latim de origem – calvaria, termo que significava colina ou monte arredondado e passou a significar caveira – evoca aridez e esterilidade. E as cruzes são o desenho que mais recorta a envolvente: veem-se as das campas e jazigos do cemitério, as da igreja românica do século XIII ou as da nova, com pouco mais de 20 anos. Mas quando chega o primeiro fim de semana de maio, essas linhas de tensão, despidas ao longo do ano, florescem numa miríade de cores próprias das romarias minhotas e de formas trabalhadas em família por décadas (e até séculos).
Na festa maior daquela vila, as cruzes floridas adornam a procissão de domingo à tarde - a via-sacra que, em 1996, passou a via lucis, por ser posterior à Páscoa. Duas ladeiam a residência paroquial, cinco rasam o muro da igreja paroquial e sete estendem-se pela escadaria que leva à capela. Aí, ostentam-se as duas últimas cruzes, alegadas representações dos ladrões crucificados com Jesus Cristo.
Uma dessas 16, representadas na própria heráldica de Serzedelo, está à guarda de Clementina Ferreira Oliveira há 40 anos. “Mas já vem de um irmão da minha avó. Na nossa família, tem mais de 100 anos”, conta a juíza da cruz, enquanto a expõe à porta de casa, dezenas de metros abaixo da capela, com a chaminé da Calvarex ao fundo.
“As pessoas estão dispostas a continuar, porque passa dentro da família. A Ângela Fontão, com mais de 30 anos, já traz a filha, de sete. Já vem há três anos, para se ir habituando. Já sabe alagar o chorão. Descasca aquilo tudo para lhes entregar”, Clementina Ferreira Oliveira, juíza de uma das 16 cruzes
Na madeira, veem-se cálices, símbolos litúrgicos, de estrelas de seis pontas e de corações, profanos, e ainda martelos, pregos e escadotes, instrumentos do martírio de Jesus Cristo – as três dimensões combinam-se em todos os desenhos, mas em sequências diferentes que cabe florir no dia anterior à procissão; é no próximo 07 de maio que as suas mordomas comparecem para o ritual.
“As minhas mulheres vêm assear às 10h00, dou-lhes de comer lá para as 13h00 e costumam acabar às 15h00, 15h30. Por norma, dou-lhes de comer e compro-lhes os cravos. O resto elas trazem”, descreve.
Aos cravos brancos, amarelos, vermelhos, juntam-se-lhes as margaridas, os pregos de ouro, os chorões, os chorões de seda e os “ais-da-cruz”, num trabalho que requer o auxílio de uma pasta de centeio para as segurar na madeira. “Enche-se isto de massa e depois espeta-se pétala por pétala. A farinha segura. Não há festa desde a pandemia, mas tive-a sempre asseada. Notavam-se as cores das flores”, diz, enquanto mostra o alguidar para a pasta.
Essa reunião de mulheres – já há pelo menos uma cruz com homens como mordomos, refira-se – congrega protagonistas acima dos 60 anos, mulheres na ordem dos 30 e dos 40 anos, e crianças ainda à espera dos 10, onde fervilha a transmissão de conhecimento entre gerações. “As pessoas estão dispostas a continuar, porque passa dentro da família. A Ângela Fontão, com mais de 30 anos, já traz a filha, de sete. Já vem há três anos, para se ir habituando. Já sabe alagar o chorão. Descasca aquilo tudo para lhes entregar”, realça.
Sem qualquer intervenção manual na cruz de que é juíza, Clementina guarda as mãos para o tapete, feito na madrugada de domingo, para a procissão da manhã, a dos Entrevados. Criada no outro lado da capela, habituou-se desde menina a arranjar as flores ou o serrim fino numa faixa de tons garridos que cumprimenta a comunidade.
Com os doentes hoje concentrados noutros lugares, o Calvário ficará de fora do trajeto, e Clementina isenta desse trabalho, algo que estranha. “Passa pelo outro cemitério. (…) A gente nem se sente bem se, no dia da festa, não fizer tapete para passar a procissão”, confessa.
A juíza limitar-se-á assim a esperar pela melhor hora para erguer a cruz na sua pia, encimada pelo Menino Jesus – “bem cedo”, se “estiver bom tempo”, 11h00 a 12h00 se estiver de chuva. E terá de o fazer, porque é já notório o desgaste da cruz, feita numa “madeira qualquer”, e não em carvalho ou em castanho, tal como a que a família tinha. “Esta cruz tem 38 anos. Vou ver se faço como a do meu tio, mas há meia dúzia de anos queriam 100 contos (500 euros). Agora deve ser ainda mais caro”, sugere.
Uma Casa do Povo, mais do que uma forma de crescer
A par da de Clementina, a área que inclui largo e travessa do Calvário, bem como a rua Padre Manuel Dias Salgado guarda as cruzes da família de Teresa de Castro, de Regina Paiva, Fonseca (Maria Adelaide Faria), Pimenta e Barroso (Glória Faria), indica o livro As cruzes floridas da missão, organizado por Sara Lafuente e Ricardo Cardoso em 2014.
Mas a leitura daquele espaço ultrapassa o papel atribuído à Festa das Cruzes. Veem-se os resquícios da Calvarex, destinados ao futuro centro comunitário da vila, e duas antigas casas, devolutas e degradadas; elas testemunham que aquele é o coração de Serzedelo há décadas, pelo menos. “Havia aqui mercearia. Os donos viviam por cima”, aponta Clementina para o imóvel com detalhes a verde. O posto médico também estava por ali, e o café da Casa do Povo encontrava-se no andar superior do edifício com realce laranja. “Quando subíamos as escadas, era o café”.
Com a igreja românica, as “fábricas a trabalhar”, as “casas cheias”, “outro movimento”, o Calvário já foi mais bonito do que é hoje, crê Alfredo Sampaio, do alto dos seus 86 anos. E as Cruzes eram “um sonho”. “Aquelas pedras onde se depositam as cruzes têm de existir toda a vida. É uma tradição rica”, exclama o homem que foi juiz de uma cruz e juiz da Festa na década de 60, responsável por “pagar todas as despesas”.
Natural de Pevidém e “mestre da fábrica Lameirinho no terceiro turno” em toda a vida de trabalho, mudou-se para Serzedelo aos 24 anos, após casar. “E o padre Manuel Dias Salgado nunca mais me largou”, complementa. É precisamente na artéria de homenagem ao sacerdote que se vê o edifício da Casa do Povo de Serzedelo, empreitada na qual se envolveu a fundo. “Estive mais de 30 anos na Casa do Povo. Toda a gente trabalhou com gosto e vontade, mas uns inspiravam mais do que outros. Perdi ali muitas horas”, aponta o sócio número um da instituição fundada em 1945.
Criadas pelo Estado Novo como a organização corporativa de base do trabalho rural, tuteladas pela Junta Central das Casas do Povo, essas instituições transformaram-se após o 25 de Abril, passando a um estatuto de utilidade pública para “atividades de caráter social e cultural”, num decreto-lei de 11 de janeiro de 1982. Uns meses depois, a 02 de maio, a unidade de Serzedelo inaugurava a sede atual, inacabada.
“Não cantava, nem dançava, mas sabia o que era o folclore. Há grandes treinadores de futebol que nunca jogaram futebol, mas sabem como se joga. Se visse um grupo que não atuasse bem, dizia depois às pessoas que estavam baixas”, diz Alfredo Sampaio sobre o Grupo Folclórico da Casa do Povo
A instituição comprara o terreno onde agora se encontram as portagens da A7 para construir a nova sede, mas a “lei não permitia construção” e teve de o vender, recorda o tesoureiro da instituição à data. Com a receita da venda, a Casa do Povo adquiriu o terreno por “detrás da capela do Calvário” e avançou para a construção, numa fase em que já detinha o grupo folclórico – criado em 1980 -, mas já perdera o posto médico.
Chegada a inauguração, Alfredo sabia que não havia dinheiro suficiente para cumprir o desígnio de Manuel Dias Salgado: a creche e o jardim de infância. Mas o padre disse-lhe que tinha “uma carta na manga”, ao reunir o então presidente da Câmara, António Xavier, o Governador Civil de Braga, Fernando Alberto Ribeiro da Silva, e o então secretário de Estado da Segurança Social, Bagão Felix. Passados 40 anos, o antigo dirigente associativo ainda se lembra do discurso.
“Agradeço-vos muito, mas queria fazer um pedido. Agora que temos a nossa Casa do Povo, queria pedir para Serzedelo uma creche e um jardim de infância. Faz falta em Serzedelo, porque as pessoas vão com as crianças daqui para Riba d’Ave ou para Pevidém”, recita.
Confrontado com o pedido, o governante da então Aliança Democrática disse à comunidade para “pedir”, mas para “pedir rápido”, porque estava prestes a deixar o cargo e, depois, não podia assinar nada. “Foram dias. O padre tinha de ir à Câmara, ao Governo Civil e ao ministro. Tratámos disso tudo, e foi deferida a nossa creche e o jardim de infância”, recorda.
Ora presidente, ora vice-presidente até ao fim do seu contributo à instituição, na década anterior, o dirigente nutriu outra paixão enquanto esteve na Casa do Povo: o grupo folclórico. A sede de conhecimento sobre folclore minhoto levou-o a uma formação de três dias em Lisboa, e a três cursos em Braga. “Não cantava, nem dançava, mas sabia o que era o folclore. Há grandes treinadores de futebol que nunca jogaram futebol, mas sabem como se joga. Se visse um grupo que não atuasse bem, dizia depois às pessoas que estavam baixas”, compara.
Em quatro décadas, Serzedelo criou um festival de folclore, deu-se a conhecer em Espanha, França e Suíça, sempre em busca da performance o mais depurada possível. “Quando era presidente, podia estar a perder, mas estava sempre com eles e era sempre o responsável. Se vejo que o outro é melhor, devo é melhorar para chegar ao ponto do outro ou acima dele”, diz, continuando o paralelismo com o desporto.
Agradado com a direção que tutela a Casa do Povo, liderada pelo também presidente da Junta de Freguesia, Cristiano Ferreira, Alfredo Sampaio confessa apenas o desejo de ver a instituição “subir” um pouco mais para lá do que é, ainda exija “perder muito tempo”. “Se viemos até aqui, porque não dar mais um passo?”, interroga-se. “Mas o não deixar acabar já é muito bom”, assinala.
Dois dedos de conversa… ao ritmo de um artífice
À face da Estrada Nacional EN 310, que liga a Póvoa de Lanhoso a Santo Tirso, sobressaem, de um lado, as igrejas, e, do outro, o cemitério. Desse lado, há um cubículo que relembra os quiosques, com um largo anexo e bancos. Naquele ponto de encontro para os habitantes de Serzedelo, o Jornal de Guimarães fala com Joaquim Castro Oliveira e Fernando Alves sobre o passado do Calvário.
Joaquim entrou para os teares da Calvarex aos 18 anos, no final da década de 60, quando aquilo era ainda dos Faria, a família que ergueu a fábrica. “Não sei ao certo quantas pessoas lá trabalhava, mas as fábricas antigas exigiam muita gente. Numa parte, já se trabalhava com 12 máquinas automáticas. Nos teares antigos, tinha dois, três, quatro pessoas, tudo à mão”, recorda.
Fernando lembra que a fábrica teve tecelagem, produziu atoalhados de xadrez, criou malhas para t-shirts e polos e dispôs de jatos de água para cetim, antes de fechar. O cidadão lamenta alguma estagnação daquela vila “de sete quintas”, com “muitas zonas consideradas verdes e agrícolas”, ao mesmo tempo que discorre sobre as cruzes e os tapetes de Serzedelo, “muito melhores do que os de Barcelos”, uma das hipóteses atribuídas para a origem da romaria, já que Serzedelo pertenceu ao termo de Barcelos até 1834.
Volta e meia, Carlos Lopes deixa o cubículo e prossegue algum do trabalho cá fora. Ali não se vendem jornais, nem revistas. Conserta-se o calçado. “Sempre trabalhei no calçado, em fábricas. Comecei a trabalhar aos 14 anos e vim para aqui há 11. Era um quiosque”, conta o artífice de 51 anos.
Natural de Polvoreira, aprendeu “um pouco de tudo” sobre a arte e trabalhou como “polivalente” no Campeão Português, mas também em Felgueiras e até em São João da Madeira e Oliveira de Azeméis. Ainda regressa às fábricas para “ensinar os mais jovens a trabalhar nas máquinas”, mas o facto de ter uma perna mais comprida do que a outra – dismetria – impediu-o de lá continuar.
“Não conseguia estar de pé. Tinha de andar para trás e para a frente e já não estava a conseguir. Vim embora. Quando saí, já estava isto em vista. O meu irmão tinha uma empresa aqui perto, e passava todos aqui”, explica.
Soube que a Câmara Municipal de Guimarães era a proprietária do espaço e arrendou-o para consertar, em média, 10 a 15 pares de calçado por dia. Os clientes são de todo o concelho de Guimarães, também de Vizela, e, quando chega agosto, com as vagas de emigrantes para as férias, não “tem mãos a medir”.
“Eles trazem tudo, às sacadas, e vêm sempre aqui. Agosto não é mês de férias. Não tiro nada ao longo do ano. Só os fins de semana. Trabalho de segunda até sábado, ao meio-dia. É preciso para descansar um bocado, antes de começar a outra semana”. É assim a rotina de Carlos Lopes, quando já reservou uma loja no novo centro comunitário, um outro Calvário à espera de florescer.